A sessão da Câmara que autorizou o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff expôs um parlamento pouco qualificado para tratar de tema de tamanha magnitude. Assistiu-se a uma sucessão de discursos que dedicavam o voto a filhos, mulheres, maridos, mães, falas que nada tinham a ver com a gravidade do momento. Goste-se ou não, são estes deputados que discutirão e aprovarão medidas cruciais nos próximos meses, sejam elas encaminhadas por Dilma Rousseff, cujo futuro está agora nas mãos do Senado, seja por um eventual governo Michel Temer. O modelo da representação política adotado no país, com uma miríade de pequenos partidos cujo principal objetivo é oferecer apoio em troca de cargos, faz com que o Executivo fique refém do Congresso. Dependendo das relações do comandante do Executivo com o presidente da Câmara – no caso, o poderoso Eduardo Cunha, com enorme ascendência sobre o baixo clero –, é possível paralisar a pauta de votações inviabilizando completamente um governo.
A tentativa frustrada de Dilma Rousseff de se acertar com sua base parlamentar transformou seu governo num balcão de negócios: ministérios foram entregues de bandeja, criando um caos na administração pública. Por isso, diante de um Congresso com poderes para atormentar o Executivo a ponto de arrancar um presidente do posto, torna-se imprescindível blindar a burocracia estatal contra os terremotos políticos. Ou seja, a máquina pública precisa ser protegida, ainda que o Executivo e o Legislativo fiquem em pé de guerra, como acontece agora.
O emperramento da máquina pública começou logo no início do segundo mandato de Dilma Rousseff e atingiu o paroxismo nas últimas semanas, beirando a anomia. Segundo alguns consultores externos que prestam serviço aos ministérios, parte da burocracia concursada já se comporta como se o governo tivesse chegado ao fim. E, disse-me um deles, uma burocracia desmotivada, apática, com má vontade, é capaz de paralisar o governo tanto quanto um Congresso sublevado, um judiciário desconfiado e uma população insatisfeita. É o que acontece hoje em Brasília. Técnicos de alta competência, que precisam responder a comandos despreparados graças a um descarado toma-lá-da-cá, não têm como se sentir motivados. O quadro se agrava quando sequer é possível saber por quanto tempo o ministro a que estão subordinados continuará à frente da pasta.
Não é muito diferente do que acontece nas empresas privadas quando os empregados, cientes de que o empregador perdeu o rumo, tratam de buscar saídas para salvar a própria pele. A sensação de boa parte do funcionalismo é de que o governo é um barco à deriva. Por causa disso, dizem os consultores, tudo tem andado em ritmo mais lento. Ordens dos ministros custam a ser atendidas, informações não chegam, relatórios atrasam, providências não são tomadas. O ritmo do Executivo está sendo ditado pelo ânimo geral de uma burocracia que atua com má vontade e negligência.
Este não é um fenômeno exclusivo do governo Dilma. No final de seu segundo mandato, o presidente Fernando Henrique Cardoso também foi vítima de sua burocracia, no momento em ficou patente que o PSDB deixaria o poder. Nessas situações, quadros de confiança começam a se sentir isolados e logo tratam de concentrar seus esforços em identificar quem os ajudará a ficar bem com a nova administração. Seus interesses se voltam para o futuro, o presente fica vacante, um terreno baldio.
Uma máquina eficiente e colaborativa é o bem mais precioso de qualquer governante. Especialistas em gestão recomendam que tal burocracia esteja cada vez mais azeitada, de modo a impedir que o funcionamento emperre em momentos de crises políticas. Cargos-chave nos ministérios deveriam ser ocupados apenas por quadros técnicos permanentes, a salvo de nomeações políticas. É isso que ocorre em países cuja burocracia tem autonomia para agir em situações de rotina, independente do ministro da vez.
Em seu livro Piloto de Guerra, o escritor e aviador francês Antoine de Saint-Exupéry narra o rápido desmonte da aviação francesa ao se dar conta de que não venceria a esquadra alemã durante a Segunda Guerra Mundial. Com precisão, ele descreve o descontrole emocional da equipe diante da derrota iminente. “A vitória organiza. A vitória constrói. Mas a derrota leva os homens a mergulhar numa atmosfera de incoerência, aborrecimento e, acima de tudo, de futilidade.” Qualquer semelhança com a atmosfera que hoje se respira na Esplanada dos Ministérios não é mera coincidência.