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Os sambas urbanos de Caymmi

Um outro modo de compor surgido na obra do compositor baiano

Paulo da Costa e Silva | 08 jul 2016_18h45
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Na virada dos anos 1950, um novo núcleo poético ganha definição na obra de Caymmi. Os “sambas urbanos” criaram um espaço próprio entre as canções do compositor. Parte deles seria reunida no lado A de seu segundo LP, de 1955, sendo o lado B destinado aos famosos “sambas sacudidos”, mais associados aos tradicionais temas e personagens de sua atemporal Bahia. À divisão no disco correspondia uma bifurcação mais ampla no projeto estético do baiano. É indicativo que a primeira faixa tenha sido Sábado em Copacabana: a nova fase de Caymmi está intimamente associada à vivência, de quase uma década, na cidade que, ainda capital federal, ditava as normas da modernidade no Brasil. Conjugando natureza e progresso, o bairro de Copacabana tornou-se o principal laboratório do que mais tarde Tom Jobim chamaria de “civilização de praia”. Sábado em Copacabana anunciava o sofisticado estilo de vida da classe média da Zona Sul carioca, com seus bares à meia-luz, passeios à beira-mar, restaurantes e boates. Ao mesmo tempo, Caymmi sabia que nem só de prazeres era composto esse novo mundo. Logo no primeiro verso – “Depois de trabalhar toda a semana, meu sábado não vou desperdiçar” –, introduziu a divisão que fundamenta e organiza a vida na cidade moderna, a divisão entre trabalho e lazer. É angustiante constatar que “a noite (de sábado) passa tão depressa”. De algum modo, o tempo é seccionado, comprimido. Desgarrado do tecido da vida, o trabalho não mais encontra aquela representação animada, quase festiva, que notamos em muitas das canções praieiras. Sutilmente, passa a ser visto como o oposto do prazer, da satisfação, ou seja, como “desperdício”.

Com os “sambas urbanos”, surge também outro modo de compor. O violão se torna mais discreto, menos cenográfico. No lugar do movimento circular dos bordões e dos dedilhados, as músicas se desenvolvem em torno de sequências de acordes alterados, acordes até ali pouco usados na música brasileira, oriundos do jazz e da tradição erudita. Evitam-se grandes contrastes melódicos, e com isso atenuam-se as tintas dramáticas. Nas letras, a veia lírica dos sambas urbanos faz prevalecer a primeira pessoa. O compositor não é mais aquele que observa, de fora, as vidas de Chico Ferreira e Bento. As imagens de Caymmi, de impressionante claridade e definição – a rosa no cabelo de Rosa, o vestido grená da vizinha, a jangada voltando só – tendem a ser substituídas por divagações mais abstratas sobre a natureza do amor. Há, nesses sambas-canções, a introspecção solitária, urbana, de quem canta baixinho, no último banco do bonde, a perplexidade de um novo amor, enquanto a paisagem do Rio desfila pelos olhos.

O amor simplesmente acontece, assim como pode simplesmente se esvair. Mais do que tudo, Caymmi celebrou nesse conjunto de canções a mobilidade dos afetos. O modo como estes escapam, inevitavelmente, aos nossos anseios de controle – Não Tem Solução. Mas ao invés de transformar isso em peso, em dramático destino, o baiano saiu-se com um sorriso: eximiu-se logo de qualquer culpa (“Quem inventou o amor não fui eu”), ressaltou a importância do acaso, e revelou a graça ingenuamente sábia no modo como “de nossas vidas, a vida fez um brinquedo também”.

Os “sambas urbanos” estão na base do que mais tarde seria a bossa nova. Mas tudo começou ali, em Copacabana, quando Caymmi urbanizou sua poética e sonhou com uma conciliação possível entre o tempo da modernidade e do progresso, e o tempo dos pescadores de Itapoã.

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