Após ter participado da mostra competitiva do Festival de Cannes, em 2021, A História da Minha Mulher, de Ildikó Enyedi, foi exibido na Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo. Passados dois anos, teve afinal lançamento no Brasil em 15 de junho e continua em cartaz nesta quarta-feira (12/7), embora com apenas uma sessão por dia – em um cinema no Rio de Janeiro e em três salas de São Paulo.
Segundo Enyedi, diretora e roteirista do filme, a reação fria da crítica no Festival de Cannes foi como “estar em meio a um desastre de automóvel”. A impressão dela é que houve “um enorme, enorme mal-entendido” causado pelo uso deliberado de “convenções da adaptação literária tradicional”. Ter adotado procedimentos narrativos que “na superfície parecem clássicos” resulta, no entanto, ser justamente um dos méritos de A História da Minha Mulher, dada a adequação perfeita do estilo ao roteiro. Outro exemplo do valor de lançar mão de recursos consagrados é a ousadia de incluir repetidas vezes na trilha musical, pontuando a narrativa, o segundo movimento do Concerto no.5 para piano e cordas, em Fá menor, de J.S.Bach, uma maravilha apesar de banalizada pelo uso recorrente em diversas produções.
Mais relevante a levar em conta, porém, é o fato de os temas do filme, para Enyedi, “ressoarem fortemente com os debates contemporâneos sobre gênero, misoginia e masculinidade ‘tóxica’”. Ela acha “que nós temos, não somente os homens, padrões realmente tóxicos. Estamos mudando-os, não apenas na maneira como nos comunicamos entre os sexos, mas no modo como lidamos com o globo. Estamos queimando o globo porque não abandonamos essa ideia de que temos de controlar tudo em vez de fazer parte de tudo”.
Apesar da premissa e da proposta formal do filme serem claras, o “enorme mal-entendido” da crítica no Festival de Cannes que Enyedi supõe ter ocorrido parece ter se repetido em alguns comentários feitos por ocasião do lançamento de A História da Minha Mulher, devendo ter influído, em certa medida, no seu fracasso comercial – produzido com orçamento pouco acima de 10 milhões de dólares, rendeu apenas cerca de 300 mil dólares no mercado mundial de cinemas.
Ao adaptar para o cinema o romance de Milán Füst, escrito na década de 1940, e editado em inglês, em 1988, com o título The Story of My Wife: Reminiscences of Captain Storr, o subtítulo do filme foi alterado para The flounderings of Jakob Störr in seven lessons (Os tropeços de Störr em sete lições). A mudança indica que os desastres do personagem principal masculino são o fio condutor do que é narrado. O “imenso e desconexo monólogo interior” de Füst, nas palavras de Enyedi, no qual o capitão de um navio cargueiro relata suas memórias, é preservado apenas na abertura e ao se aproximar o encerramento do filme, que é subdividido em capítulos, ou lições, numeradas e com títulos (1 Sobre resolver problemas práticos; 2 Naquele labirinto chamado vida social etc.). Ao longo das cerca de 2h45min restantes, o ponto de vista narrativo do filme deixa de ter a subjetividade característica de uma reflexão pessoal e passa a ser objetiva e impessoal.
No início, Störr (Gijs Naber) pergunta em voz off: “Se eu tivesse um filho, o que eu lhe diria como boas-vindas a este mundo? Talvez eu descrevesse uma noite, nada mais. Uma noite no meu barco, este pesado e bem construído cargueiro… Eu lhe contaria sobre esse estado de alerta constante, as menores mudanças das ondas errantes que podem tirar sua vida tão facilmente, sem má intenção. Eu lhe contaria sobre a nossa vida, tentando controlar o incontrolável.”
Próximo ao final da sétima e última lição, o solilóquio é retomado. Começa com uma pergunta semelhante à anterior: “Se eu tivesse um filho, o que eu lhe diria de despedida? Eu descreveria esta manhã, talvez, nada mais. Isso deveria bastar. É melhor não dar conselhos. Falaria com ele sobre a evanescência. Que a vida não é nada mais do que variações lúdicas. Que é inútil buscar algo sublime por trás dela: um propósito ou um objetivo superior, porque não há nada por trás dela… Então, o que eu diria ao meu filho? …”
Ainda no prólogo, a premissa que define o perfil de Störr e o propósito de sua acidentada jornada é sugerida em breve diálogo com Habib (Nayef Rashed), cozinheiro do navio. O capitão diz estar outra vez com dor de estômago e que a sensação é de ter engolido uma pedra: “É a doença do marinheiro?”, pergunta. Cozinheiro: “Receio que sim, senhor. Sinto muito, mas não é de admirar depois de todos esses anos.” Störr: “Você continua em forma?” Cozinheiro: “Mas eu sou casado.” Störr: “E daí?” Cozinheiro: “Isso ajuda.”
A partir do sutil toque de humor desse diagnóstico de Habib, o destino de Störr está traçado. A seguir, em um café elegante, ele anuncia a seu amigo Kodor (Sergio Rubini) que resolveu se casar: “Não sei ainda com quem. Uma mulher. Ela não vai me ver muito de qualquer forma… Eu poderia me casar com a primeira mulher que entrar por aquela porta.” Pouco depois vemos, primeiro os pés, e em seguida as costas de uma mulher usando chapéu. Ela se senta, lê o cardápio, fuma, olha as horas no seu relógio de pulso e, finalmente, Lizzy (Léa Seydoux) vira a cabeça, encara Störr, que se aproximara de sua mesa, e assume, ao lado dele, seu lugar como protagonista. “Perdoe minha intromissão”, diz Störr. “Está bem. Mas seja breve”, ela responde. “Por favor, seja minha esposa”, ele completa. Passaram-se os cerca de 11 minutos iniciais de A História da Minha Mulher e a primeira lição prossegue.
Longo, sem dúvida, por vezes simplório e demonstrativo, A História da Minha Mulher, apesar disso, tem aspectos interessantes, alguns até primorosos. Destacam-se a personalidade autoritária e a fragilidade emocional do capitão Störr em confronto com a postura melíflua de Lizzy; a recriação de época com locações, cenografia e figurinos impecáveis; elenco de alto nível e planos sempre bem compostos e articulados entre si. Quantos filmes fracassados na bilheteria oferecem espetáculo desse quilate?
No final da quinta lição, a quarenta minutos do fim de A História da Minha Mulher, Störr é socorrido após ter pulado da ponte no rio que cruza a cidade e afundado na água ao som do já mencionado concerto de Bach. Ao médico que o atende e pergunta como ele está se sentindo, o capitão responde: “Simplesmente miserável. Por quê? Não fui capaz nem de me afogar direito… Diga-me por que não consigo criar alguma ordem na minha vidinha miserável? Aparentemente, quase todos conseguem.”
Enyedi afirma não ter medo da simplicidade: “Talvez, de certa forma, meu passado como artista conceitual tenha influenciado meus filmes… Aprendi que, na sua forma correta, a simplicidade é muito poderosa. Basta escolher o material certo ou o espírito certo. É assim que as coisas funcionam melhor. Talvez seja por isso que também não tenha medo de trabalhar com atores amadores, mesmo que isso exija uma abordagem diferente, porque eles não estão no mesmo plano que os artistas profissionais”; ela conta ainda que passou “anos muito, muito amargos”, mas nunca deixou de querer fazer filmes: “Quando começou esse período ruim [de dezoito anos], eu tinha dois roteiros completos e um pela metade, muito bem recebidos por produtoras. Portanto, não havia razão para abandoná-los. E eu trabalhei e trabalhei, e isso simplesmente não aconteceu. Eu trabalhei dia e noite e fins de semana para fazê-los acontecer. Eu senti que estava sempre com pressa. Eu senti que se eu não pudesse fazê-los naquele momento eu nunca os faria. Havia muito em jogo. Eu vivia tensa. Sofri muito. Quando finalmente os abandonei, então o mundo veio a mim, surpreendentemente rápido. Eu queria controlar tudo e perdi vários anos com isso. Mas houve uma bela contrapartida para esse tempo: pude estar com meus filhos, e eles me ensinaram a brincar de novo, a relaxar e a estar completamente aberta para o que estava por vir. Foi um privilégio especial poder brincar, e isso era algo que eu tinha esquecido.”
Ildikó Enyedi, nascida em Budapeste, recebeu o Urso de Ouro, principal prêmio do Festival de Berlim, em 2017, pelo filme Corpo e Alma, lançado no Brasil em dezembro do mesmo ano. Seu filme anterior, O Meu Século XX recebeu o prêmio Caméra D’Or no Festival de Cannes de 1989. Até 2021, ela foi professora da University of Theatre and Film Arts (as citações de Enyedi feitas acima provêm de entrevistas disponíveis na íntegra em Cineuropa, Screendaily e Festival Sevilla.