João Saldanha tem sido pouco citado aqui no blog, o que é imperdoável. Todo blog de futebol no Brasil deveria citar João Saldanha pelo menos uma vez por mês, porque é impressionante como as coisas que ele dizia lá na década de sessenta continuam atuais. Sendo assim, vamos ao mestre.
Eu era um moleque que adorava futebol e me divertia com a , onde os botafoguenses João Saldanha, Luiz Mendes e Armando Nogueira, o vascaíno Vitorino Vieira, o tricolor Nelson Rodrigues e o rubro-negro José Maria Scassa formavam o time-base. Minha lembrança é muito clara: sempre que nossos dirigentes esportivos perpetravam suas habituais sandices, Saldanha desviava os olhos de seu interlocutor na mesa, mirava a câmera e mandava um recado direto: “Cuidado, senhores dirigentes do nosso futebol. Os senhores estão matando a galinha dos ovos de ouro.” A frase vinha carregada de ironia, como se ele avisasse: abram o olho, porque os seus privilégios podem acabar.
O futebol brasileiro só começou a virar uma verdadeira galinha dos ovos de ouro recentemente, mas Saldanha já alertava quanto à possibilidade de o público se afastar dos estádios, reclamava do calendário que pouco se lixava para os riscos físicos aos jogadores e não se cansava de denunciar um monte de coisas que, cinquenta anos depois, continuam do mesmo jeito. Ou pior.
Também lembro do Saldanha prevendo o fim da Copa do Mundo entre seleções e sua futura substituição por uma Copa disputada pelos clubes. Alguém pode discordar: qual é, Murtinho, pirou? A Copa do Mundo virou um negócio estrondoso e está cada vez mais forte. Sob o ponto de vista financeiro, é inegável; sob o ponto de vista do esporte, nem tanto. E, obviamente, o exercício de João Saldanha precisa ser visto em perspectiva. É claro que, há cinquenta anos, ninguém poderia imaginar que a Copa virasse a obesa galinha dos ovos de ouro que é hoje. Mas, se em termos econômicos ela ganhou proporções incalculáveis (uso aqui, mais uma vez, o recurso de enviar os leitores para a reportagem de Daniela Pinheiro publicada na edição 44 da piauí, sob o título A Copa do Cabo ao Rio), em termos esportivos ela praticamente perdeu sua razão de existir.
A Copa foi criada para confrontar os diversos estilos de futebol praticados. Brasileiros sempre foram habilidosos e surpreendentes. Alemães permanecem organizados e pragmáticos. Argentinos tocam e se vão. Ingleses inventaram a brincadeira, mas depois perderam o jeito e passaram a disputar um estranho esporte que se limitava a levantar bolas na área. Um dia, alguém teve a ideia de botar uns contra os outros, para ver qual desses estilos melhor interpretava o jogo.
Com dez dos titulares da seleção brasileira atuando no exterior, é possível afirmar que a nossa seleção representa o estilo brasileiro de jogar? Desde os 12 ou 13 anos vivendo na Espanha, Messi pode ser considerado um representante do futebol que se joga na Argentina? Por outro lado, com a corajosa e bem-sucedida exceção do Barcelona, os grandes clubes europeus se transformaram numa imensababel futebolística. No time do Bayern de Munique que ganhou a última Champions League havia um brasileiro, um espanhol, um holandês, um francês, um austríaco e um croata. No jogo do último sábado, contra o Tottenham, o Chelsea entrou em campo com apenas três nativos – algo que virou regra entre os clubes britânicos e conseguiu devolver ao campeonato inglês a condição de competição de futebol, mas não ajuda em nada na hora de montar uma seleção nacional.
Ainda na linha do pensamento de João Saldanha, creio que só não podemos considerar a Champions League mais importante que a Eurocopa por causa da periodicidade: o fato de ser disputada de quatro em quatro anos garante a expectativa e o charme da competição, mas desconfio que a maioria dos torcedores europeus já se importa mais com o torneio anual entre seus clubes. Não estranharia se viesse a acontecer o mesmo com a Copa do Mundo, confirmando as previsões de Saldanha.
E se essa história do nosso calendário para 2014 tivesse acontecido na década de sessenta, certamente ele olharia de forma teatral para a câmera e repetiria sua sentença sobre a morte da galinha rica. Uma hora a coisa ia estourar. Cansados de tabelas malfeitas, de competições capengas – o que é a Copa Sul-Americana? –, de clubes geridos sem um pingo de responsabilidade, de campos de jogo que lembram minha adolescência disputando o saudoso Campeonato de Pelada do Aterro do Flamengo, a paciência de 75 dos nossos jogadores se esgotou com a divulgação do absurdo calendário, e eles botaram o bloco na rua. O Bom Senso F.C. (nome muito bom) pode, enfim, trazer um pouco de vergonha à caricatacara do futebol brasileiro. Por exemplo: a envelhecida e velhaca Federação Carioca de Futebol já anunciou uma redução nas datas do campeonato estadual.
E os 75 fundadores do Bom Senso estão com os próximos passos devidamente programados: após o questionamento do calendário, pretendem atacar a péssima qualidade dos gramados e pôr em debate o que a UEFA conceituou como fair play financeiro – o compromisso que os dirigentes são obrigados a ter com a saúde financeira de seus clubes. Ou seja, a discussão sobre o calendário equivale aos vinte centavos das manifestações de junho. É só o começo. E seria bem legal se, no próximo domingo, todos os times do Campeonato Brasileiro entrassem em campo carregando uma faixa com o texto: Torcedores, desculpem o transtorno. Estamos mudando o futebol no país.
Lá do alto, João Saldanha acenderia um cigarro, cravaria seus olhos na câmera e tripudiaria em cima dos dirigentes: “Eu avisei.”