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Ouça e fale

Dois filmes dirigidos por mulheres tratam de escutas e silêncios

Eduardo Escorel
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Ouça (Listen, 2020) e Sol (2021), exibidos na 45ª Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo, são filmes dirigidos por mulheres – Ana Rocha de Sousa e Lô Politi, respectivamente – e guardam outro traço identitário em comum que os aproxima de maneira tão imprevista quanto profunda, o primeiro sendo uma produção do Reino Unido e de Portugal, enquanto o segundo é brasileiro.

Ouça traz no título um apelo em favor da escuta na relação do serviço social britânico com a família de Bela (Lúcia Moniz) e Jota (Ruben Garcia), casal de imigrantes portugueses que sobrevive precariamente nos arredores de Londres com o filho adolescente Diego (James Felner) e duas crianças – Lu (Maisie Sly), filha do meio deficiente auditiva, e Jessy, bebê de colo.

Cena do filme ‘Ouça’ – Foto: Divulgação

 

Em Sol, por sua vez, Theodoro (Everaldo Pontes), viúvo recente do segundo casamento, desencantado com a vida, silencia de motu próprio – na primeira cena ele caminha água adentro em direção ao Sol, até afundar. Ao receber a notícia de que ele está à morte, seu filho Theo (Rômulo Braga) reluta em acudir o pai que diz não conhecer e de quem não ouvia falar há mais de 30 anos. Apesar disso, parte de avião para o interior da Bahia, levando sua filha, a menina Duda (Malu Landim), neta de Theodoro. Informado sobre as condições precárias do asilo local – segundo dois moradores: 1º) “Asilo, tem. Mas você não vai querer deixar seu pai lá, não”; 2º) “O asilo daqui, só se for para cachorro, né? Aliás, nem cachorro merece” – e advertido de que o pai não pode viajar de avião, Theo é forçado a fazer a longa viagem de volta de carro. O núcleo familiar formado por força das circunstâncias, reunindo pai, filho e neta, leva também a estátua de madeira de uma mulher em tamanho natural rumo a Salvador, onde Theo pretende internar o mudo Theodoro.

Cena do filme ‘Sol’ – Foto: Divulgação

 

Temos, em Ouça, a tragédia provocada pela ignorância e postura autoritária de uma professora primária inglesa, mas causada de modo mais direto pela inépcia e rigidez burocrática do tão louvado serviço social britânico – a família de Bela e Jota é dilacerada pela incapacidade geral de ouvir e levar em conta as razões do que ocorre.

A mesma deficiência auditiva acomete Theo, em Sol. É Duda quem estabelece um elo com seu avô, Theodoro. Mas a precariedade de condições no interior e a rigidez burocrática na capital, que impede Theodoro de ser internado no horário em que o trio chega a Salvador, se sobrepõem e levam ao desfecho trágico previsível desde a abertura do filme, revista em flashes ao longo de seu decurso. 

Cena do filme ‘Sol’ – Foto: Divulgação

 

Ouça recebeu o prêmio de melhor longa-metragem de estreante e o Prêmio Especial do Júri da mostra Horizontes no Festival de Veneza de 2020. Está disponível na plataforma Mubi com cotação média (5.7/10) e alguns comentários implacáveis dos espectadores. Sol, de seu lado, tem lançamento previsto para o início de 2022.

Não creio que Ouça e Sol tenham grande possibilidade de receber a atenção que merecem e se destacar entre os mais de 260 filmes apresentados na 45ª Mostra Internacional de Cinema. São filmes bem narrados que primam pela simplicidade, com alguns bons atores e outros nem tanto, mas sem atrativos espetaculares. Essa é a contingência dos grandes festivais – apresentar títulos para todos os gostos, mas que dada a quantidade parecem excessivos, terminando por serem pouco vistos, dificultando captar tendências e conhecer novidades. Perde-se assim a possibilidade de valorizar devidamente títulos menos conhecidos.

Quanto você aguenta? (How much can you handle?) é a pergunta da frase promocional do IDFA – Festival Internacional de Documentários de Amsterdam, divulgada com grande orgulho há uns anos. Há algo perverso nesse propósito deliberado de levar o espectador à exaustão. E é inevitável haver títulos que não recebem a atenção merecida. Esse parece ser o caso do documentário O Garoto Mais Bonito do Mundo (2020), de Kristina Lindström e Kristian Petri, também exibido na 45ª Mostra, que termina hoje (3/11), após ter estreado no Festival de Sundance, em janeiro de 2021. Eu mesmo fui alertado na última hora por um bom amigo de que o filme valia a pena ser visto e estava disponível na Mostra Play.

Codirigido por uma mulher, o documentário tem um elo com Ouça e Sol – a mudez é tema dominante na história trágica de Björn Andrésen, escolhido aos 15 anos por Luchino Visconti para o papel de Tadzio em Morte em Veneza (1971) e descrito depois pelo diretor como o menino mais bonito do mundo.

Luchino Visconti em ‘O Garoto Mais Bonito do Mundo’ – Foto: Divulgação

 

Na novela de Thomas Mann, a relação do compositor Gustav von Aschenbach com Tadzio, em meio a uma epidemia de cólera, é baseada em olhares, não em palavras. Aschenbach segue e observa o menino, mas eles nunca se falam.

A tristeza do olhar de Andrésen quando menino, que, além de sua beleza, tanto encantou Visconti, tinha origem em traumas pessoais que a participação em Morte em Veneza e as suas decorrências imediatas acentuaram. Passadas mais de quatro décadas, ao ser filmado para o documentário, a beleza do menino se fora e o silêncio do ator adulto só parece ter sido rompido a muito custo.

Foram precisos cinco anos para ganhar a confiança de Andrésen, dizem Lindström e Petri, para os quais Morte em Veneza “lhe roubou a felicidade, destruindo-lhe a vida”. “O circo começou na estreia, em Cannes”, relembra o ator. “Eu estava com medo, os jornalistas pareciam morcegos à minha volta.” Da festa gay para a qual foi levado após a exibição do filme, ele diz: “Só me lembro das paredes de veludo vermelho, da tinta preta brilhante, das línguas vorazes…” Ele se lembra de ter bebido naquela noite “até conseguir deixar de se sentir um pedaço de carne, um estranho objeto de desejo, e não se lembra como voltou para o hotel” (íntegra da matéria citada disponível em https://www.jn.pt/artes/quem-roubou-a-felicidade-ao-rapaz-mais-bonito-do-mundo-13301638.html ). 

Além do dramático perfil de Andrésen, O Garoto Mais Bonito do Mundo nos mostra Visconti em ação, durante os testes feitos em Estocolmo, em 1970, para escolher o ator que faria Tadzio, e depois em Veneza, durante as filmagens. São registros preciosos de um grande artista em ação, para o qual, como fica claro, o filme está em primeiro lugar, acima de tudo, inclusive de considerações relativas ao bem-estar de um menino indefeso.

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No próximo domingo, 7 de novembro, como sempre às 11 horas, Piero Sbragia, Juca Badaró, Vanessa Oliveira e este colunista conversam com Marcelo Brennand, diretor de Curral (2020), e os integrantes do elenco Thomás Aquino e Carla Salle, no programa #DomingoAoVivo do canal de YouTube 3 Em Cena. Inspirado no documentário Porta a Porta (2008), dirigido por Brennand, o filme estreou na 44ª Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo, e chega aos cinemas em 11 de novembro. O acesso à conversa do próximo domingo pode ser feito através do link https://youtu.be/oYAkkr6Y894 .

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