Nas imagens de satélite do Google, as sedes dos municípios de Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso, no sudoeste do Pará, formam um triângulo ainda bem verde na Floresta Amazônica. Num dos lados, corre o Rio Tapajós. O outro lado segue a linha da BR-163. O triângulo abriga parcela do território Munduruku, parte da antiga Reserva Garimpeira do Tapajós e unidades de conservação federal criadas depois, para conter o desmatamento. É cenário também de lances da política pró-garimpo do governo Bolsonaro, já responsável pelo aumento tanto da produção de ouro como do desmatamento causado pela mineração. São 200 km2 de floresta devastada pela mineração desde que Bolsonaro tomou posse, de acordo com dados de alertas de desmatamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Enquanto garimpeiros voltavam a paralisar a BR-163 no início de outubro, agora com apoio de indígenas desautorizados por lideranças Munduruku e Kayapó, um lobby mais discreto conta os dias para ver liberada a mineração em Florestas Nacionais (Flonas), um tipo de unidade de conservação de uso sustentável. O obstáculo ao garimpo nessas áreas está num parecer da Advocacia Geral da União (AGU) de 2014, que interpretou não ser possível minerar nas Florestas Nacionais criadas depois de 2000, ano de criação, por lei, do Sistema Nacional das Unidades de Conservação (SNUC).
A revisão do parecer da AGU foi proposta ao Ministério de Minas e Energia pela Associação Nacional do Ouro (Anoro), entidade que reúne instituições do mercado financeiro e garimpeiros. A piauí obteve, por meio da Lei de Acesso à Informação, o parecer do ministério favorável à revisão. No documento, o ministério avalia que o entendimento da AGU impede a mineração em 29 Florestas Nacionais e calcula que, em três dessas unidades de conservação, localizadas na bacia do Tapajós, tenham sido prejudicados 1.386 processos minerários, entre pedidos de autorização de pesquisa, permissões e concessões de lavra. O texto se refere ao Tapajós como “uma das principais regiões auríferas do Brasil”. Das três Flonas, duas encontram-se no triângulo verde do sudoeste do Pará: Crepori e Jamanxim. A terceira, Amana, faz fronteira com um dos seus lados. Questionado, o ministério afirmou que o documento expressa o que tem a manifestar sobre o assunto.
Procurada pela piauí, a AGU diz que qualquer mudança em seu entendimento sobre mineração precisa aguardar a palavra do ICMBio, órgão que administra as unidades de conservação. O novo presidente do ICMBio, o oficial da polícia militar de São Paulo Fernando Cesar Lorencini, foi procurado, mas não quis se manifestar. Um estudo do instituto reconhece que atividades minerárias já estavam previstas nos decretos de criação das florestas nacionais do Tapajós, editados em 2006. Chefe de Lorencini, o ministro Ricardo Salles defendeu a proposta em entrevista ao jornal Correio Braziliense. “Por que é preciso ter exploração em outras áreas sensíveis do mundo e o Brasil não pode nem discutir isso na Amazônia?”, declarou o ministro em julho, uma semana antes de visitar pessoalmente a região, interromper a ação de fiscais e se encontrar com garimpeiros que exploram ilegalmente o território Munduruku.
A exploração mineral que já ocorre hoje nas Florestas Nacionais dos Carajás e de Saracá-Taquera, criadas antes da lei do SNUC e também localizadas no Pará, tem sido usada como argumento pelos defensores da mudança do parecer da AGU, que ignoram as diferenças entre a extração de minério de ferro e de bauxita nessas unidades e a mineração do ouro no Tapajós. Na região, a lavra é geralmente feita a céu aberto, por jatos d’água com pressão, num método chamado de desmonte hidráulico, que gera muita lama e, na sequência, usa mercúrio para formar uma amálgama e extrair o ouro. O mercúrio causa danos cerebrais e pesquisas já detectaram a contaminação de peixes e populações ribeirinhas. Laudo da Polícia Federal deu a dimensão do desastre ao calcular, em 2018, que o garimpo lançava no Rio Tapajós em onze anos quantidade de sedimentos equivalente aos rejeitos lançados pelo rompimento da barragem da Samarco em Mariana, Minas Gerais, em 2015. Por isso as águas do Tapajós perderam sua coloração mais clara. Documento do Ministério Público Federal estima que cobrir o dano ambiental provocado pela extração de 1 quilo de ouro saia mais caro do que a cotação da mesma quantidade de ouro no mercado.
Outro argumento usado para liberar a mineração nas Florestas Nacionais do Tapajós é que a extração de ouro já ocorre nessas áreas sem autorização do governo e, consequentemente, sem pagamento de tributos. O secretário de Meio Ambiente de Itaituba, Bruno Rolim da Silva, estima que 20% da produção de ouro no município aconteça fora da Área de Proteção Ambiental (APA) do Tapajós, que admite a mineração, ou de “áreas brancas”, como designa as áreas não protegidas. Mas ele prefere chamar de irregular, em vez de ilegal, a mineração nas Flonas locais. “A questão é que eles (os garimpeiros) já estavam lá antes da criação das Flonas, é preciso resolver o problema”, defende.
Concorda com ele o presidente da Anoro, Dirceu Santos Frederico Sobrinho, dono da instituição financeira que mais compra ouro de garimpo, a F D’Gold, que também atuou como garimpeiro e secretário de Meio Ambiente de Itaituba: “A atividade garimpeira foi empurrada para a marginalidade, mas o garimpo é persistente, ele não desiste; não é possível parar, e a solução é educar para conter o dano ambiental.”
No ranking nacional de produção de ouro, o município de Itaituba só perde neste ano para Paracatu, cidade de Minas Gerais onde está instalada a canadense Kinross, maior mineradora de ouro do país. Os dados da arrecadação da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM) são atualizados diariamente pela Agência Nacional de Mineração (ANM). Até 8 de outubro, Itaituba havia produzido, com base na atividade garimpeira, o equivalente a 2,5 bilhões de reais em ouro, o dobro o valor da produção de 2019, e três vezes o da produção de 2018.
O aumento da arrecadação do tributo foi acompanhado por maior rapidez na concessão de permissões de lavra garimpeira desde outubro do ano passado, quando garimpeiros paralisaram pela primeira vez a BR-163 contra a fiscalização ambiental de suas atividades. Nos primeiros nove meses de 2020, foram concedidas 123 novas permissões só em Itaituba, número maior que as permissões concedidas em todos os demais municípios brasileiros juntos, dentro e fora da Amazônia. Uma única pessoa física recebeu 28 permissões no município, que totalizam uma área de exploração de 1,3 mil hectares. Localizada pela piauí, Lilian Rodrigues Pena Fernandes, a dona das permissões, se recusou a falar. Claramente não é uma garimpeira pobre, que o governo alega defender quando estimula a extração de minérios no Tapajós. Ela é sócia da Pena e Mello, Comércio e Exportação Ltda, que ocupava na quinta-feira, 8, a 56a posição no ranking dos maiores arrecadadores da CFEM em 2020.
Após um ano de discussões no Ministério de Minas e Energia, o Grupo de Trabalho do Garimpo, formado por servidores do ministério e da agência reguladora do setor, entregou seu relatório final no último dia de setembro. O documento do GT recomenda que a ANM só conceda uma permissão de lavra garimpeira por CPF. Essa já havia sido uma das recomendações feitas pela força-tarefa Amazônia do Ministério Público Federal em março, por entender que mais de uma permissão por pessoa sugere a exploração empresarial da garimpagem e uso de maquinário caro e pesado, que não poderia se beneficiar do regime que dispensa a pesquisa mineral e o licenciamento ambiental mais complexo.
O Ministério Público Federal também recomendou, na ocasião, a revisão da portaria do Ministério de Minas e Energia de criação da Reserva Garimpeira do Tapajós, editada em 1983 para proteger garimpeiros do conflito com mineradoras. Os procuradores entendem que a criação de unidades de conservação no local, em 2006, teria o efeito de revogar a reserva. Mas a recomendação sem sequer foi considerada.
O documento do GT do Garimpo apoia a mineração nas Florestas Nacionais e recomenda que sejam adotadas ações de “conscientização ambiental” dos garimpeiros para o uso “controlado, racional e tecnicamente adequado” do mercúrio e do cianeto. O grupo de trabalho endossou medidas para maior controle da comercialização do ouro, de forma a conter a entrada no mercado de ouro extraído ilegalmente.
Ao mesmo tempo, se opôs à destruição de máquinas usadas na mineração ilegal, prevista em regulamentação da Lei de Crimes Ambientais. O relatório final defende dar “a oportunidade” ao dono dos equipamentos de retirá-los das áreas de garimpo ilegal e ficar responsável por eles, na condição de “depositário fiel”. Caso os equipamentos fossem novamente encontrados em atividade ilícita “aí então estaria autorizada a medida extrema pela autoridade fiscalizatória”. É exatamente o que pedem os garimpeiros que extraem ouro ilegalmente.
Nos últimos dias de setembro, Bolsonaro participou do lançamento do Programa Mineração e Desenvolvimento, com metas até 2023. No capítulo de combate à ilegalidade, a meta número um é criar e ampliar oportunidades para a atividade minerária regular. A maior dessas oportunidades seria a regulamentar a mineração em terras indígenas, proposta por meio de projeto de lei (número 191) encaminhado ao Congresso Nacional em fevereiro. Enquanto a proposta não é votada, o governo se prepara para remover mais um obstáculo à mineração em áreas protegidas, por meio da liberação do garimpo nas Florestas Nacionais. O programa lançado com a presença de Bolsonaro traz o slogan: Brasil, uma mina de oportunidades.
Na quinta-feira, 8, índios das etnias Munduruku e Kaiapó suspenderam o bloqueio no entroncamento da BR-163 com a Transamazônica, em Itaituba, num dos vértices do triângulo do ouro na Amazônia. A manifestação começara no dia 2, em protesto contra a destruição de equipamentos apreendidos por fiscais e em defesa da regulamentação da mineração em terras indígenas. O movimento na rodovia não conta com o apoio de lideranças indígenas, como afirma carta aberta divulgada pelos caciques do povo Munduruku durante a semana. A carta reitera a oposição ao projeto de lei 191 e acusa os “pariwat”, como a etnia chama os não indígenas. “Não aceitamos os poucos que são enganados pelos pariwat e usam o nome do nosso povo. Não queremos regularizar atividades de destruição no nosso território.” Lideranças Kayapó também divulgaram manifesto contra a mineração em suas terras.