Bruno Jorge, diretor de Inutensílios, leu a coluna do dia 8 de maio na Amazônia, em um barco de pesca dotado de Starlink. Mandou de lá por e-mail a versão completa, reproduzida abaixo, do texto publicado em versão resumida no catálogo do 29º Festival É Tudo Verdade, realizado entre 3 e 14 de abril. Antes de se despedir, avisou: “Acabaram de me passar o rádio que mataram uma paca aqui na beira, tô embarcando na canoa pra ir lá filmar. Segue o jogo!”
Antes de meus filhos nascerem [um em 2013, outro em 2015], decidi que sairia da capital de São Paulo e viveria com eles numa pequena cidade rural no interior de Minas Gerais, Serra da Mantiqueira. E assim foi durante os primeiros cinco anos de nossas vidas imersos nesse novo contexto, agora com a presença ostensiva de uma Natureza mais protagonista. Nesse período passei a filmar esporadicamente diversas situações e personagens que cruzei nessa trajetória de descoberta, incluindo minha própria nova família que nascia. Fazia imagens espaçadas no tempo, mas sempre buscando nelas algum tipo de ligação numa tentativa de compreender que filme eu poderia estar vivendo. Aos poucos, com recuo, foi aparecendo uma busca muito íntima, algo ligado à dor, ternura e selvageria, e que me conectava a todas aquelas situações filmadas. Mas a verdade é que o filme em si não precisava existir, nunca precisou. As imagens não estavam a serviço de nada, não tinham um “propósito”. Eram imagens inúteis. Inúteis como um poema, como a felicidade, o sexo sem procriação, os emocionados. Sustentar o desnecessário hoje em dia não é simples, sabendo que vivemos num mundo estridentemente utilitário – de metas e ferramentas – onde não há espaço para nada que não seja instrumento, muito menos na arte. Sem lugar para o que não educa, não luta contra nenhum pecado e nem serve como terapia. Agora, se o que você faz não vale nada, logo tem tudo o que precisa para inverter essa lógica e tentar frequentar um lugar de liberdade para além da necessidade. Como por exemplo, o que faz uma criança, ainda pouco contaminada por valores e exercícios mentais. Quem não tem ferramenta suficiente para pensar, inventa. Na vida me sobrou ser uma mistura de artesão rústico com mentiroso emocionado, a quem esse tal real nunca satisfaz e se faz preciso esculpir um mundo imaginado. Foi desses e outros despropósitos que nasceu o retrato autoetnográfico Inutensílios, meu quinto longa-metragem…
Quatro horas depois, chegou outro e-mail, dessa vez com uma foto improvisada da “paquinha” para “complementar a dos jaraquis”, o peixe mais consumido na Amazônia Central, conforme fiquei sabendo.
Quem ousaria fazer um filme baseado nesta “coisa aí” – A Hora da Estrela, assim nomeado na “DEDICATÓRIA DO AUTOR (na verdade Clarice Lispector)”? Esse é o início do romance: “Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou.”
Suzana Amaral ousou “transmutar” ou “recriar” o livro de Lispector, conforme disse na entrevista publicada em 2018, e o filme que fez estreou, em 1985, no 18º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Nessa entrevista ela declarou ser “de natureza transgressora” e que “falta coragem no cinema brasileiro. As pessoas só pensam em sucesso garantido. As pessoas não fazem questão de ousar, de aprender, de falar para a alma das pessoas. Falta fidelidade a si mesmo. Falta Ser. Se a pessoa não sabe ousar, não há nada a fazer. Falta ser com ‘S’ maiúsculo”.
Os jurados da mostra competitiva do Festival de Brasília daquele ano ficaram desanimados, após assistirem aos cinco primeiros longas-metragens em competição, sem saber qual deles merecia ser premiado. Integravam o júri, entre outros, Pedro Vasquez, Mário Carneiro, Siron Franco, Geraldo Sobral, Oswaldo Caldeira e eu. Quando assistimos ao único filme que faltava ver – A Hora da Estrela – ficamos deslumbrados e contrariamos a tradição festivaleira de ratear os prêmios entre mais de um concorrente. Decidimos atribuir nove das doze láureas (melhor filme, ator, atriz, diretor, roteiro, fotografia, cenografia, montagem e trilha sonora) à estreia de Suzana Amaral em um longa-metragem de ficção, que recebeu também os prêmios do Júri Popular, da Crítica e da Organização Católica Internacional de Cinema (Ocic).
A trajetória vitoriosa de A Hora da Estrela em festivais prosseguiu pouco depois, em fevereiro de 1986, quando o júri do 36º Festival Internacional de Cinema de Berlim, presidido por Gina Lollobrigida, premiou Marcélia Cartaxo, em seu primeiro papel no cinema, com o Urso de Prata de Melhor Atriz, ex aequo com Charlotte Valandrey, por Rouge Baiser, de Véra Belmont. Ainda em Berlim, o filme recebeu os prêmios da Ocic e da Confederação Internacional de Cinemas de Arte e Ensaio (Cicae).
Marcélia Cartaxo no papel de Macabéa, em A Hora da Estrela (Foto: Divulgação)
No final de 1986 foi a vez do Festival Internacional do Novo Cinema Latinoamericano, em Havana, consagrar A Hora da Estrela com seu principal prêmio, o Gran Coral, ex aequo com a produção cubana Un Hombre de Éxito, de Humberto Solás.
Em versão restaurada, A Hora da Estrela voltou na semana passada, em distribuição do projeto Sessão Vitrine Petrobras, às telas de cinema de cerca de vinte cidades, entre elas São Paulo, Rio de Janeiro, Belém, Belo Horizonte, Brasília, Campinas e Curitiba.
Revisto A Hora da Estrela agora, pela primeira vez após a sessão para o júri no Festival de Brasília de 1985, confirmei o vigor do filme despojado feito a partir do estilo intrincado de Clarice Lispector e a comoção provocada pela figura de Marcélia Cartaxo. Atriz que transmuta de maneira mais que perfeita o texto literário em imagens.
Entre vários exemplos possíveis, basta lembrar de quando o narrador diz que “numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina;” e depois que “a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém;” e mais à frente que “limito-me a contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela. Ela que devia ter ficado no sertão de Alagoas com vestido de chita e sem nenhuma datilografia, já que escrevia tão mal, só tinha até o terceiro ano primário. Por ser ignorante era obrigada na datilografia a copiar lentamente letra por letra – a tia é que lhe dera um curso ralo de como bater à máquina. E a moça ganhara uma dignidade: era enfim datilógrafa. Embora, ao que parece, não aprovasse na linguagem duas consoantes juntas e copiava a letra linda e redonda do amado chefe a palavra ‘designar’ de modo como em língua falada diria: ‘desiguinar.’”
Na quinta-feira, 23 de maio, um filme inusitado estreia no Estação NET Botafogo com duas sessões por dia – Ospina Cali Colombia, de Jorge de Carvalho. O lançamento não podia ser mais discreto e corre o risco de se manter semiclandestino. Confirmada a previsão, terá sido desperdiçada a oportunidade de conhecer o cineasta colombiano Luis Ospina (1949-2019).
Seus inúmeros filmes incluem pelo menos três destaques: Os Vampiros da Miséria (Agarrando Pueblo), crítica precursora feita, em 1977, à vertente miserabilista do cinema documentário; Um Tigre de Papel (2008), que recupera a vida de Pedro Manrique Figueroa, precursor da colagem na Colômbia, de 1934 até 1981; e seu último e mais pessoal filme Tudo Começou Pelo Fim (2015) que, além de retratar os amigos apaixonados pelo cinema, conhecidos como Grupo de Cali, registra seu próprio grave estado de saúde durante a filmagem.
Cena de Vampiros da Miséria (Foto: Divulgação)
Em Ospina Cali Colombia, filmado durante o Festival Internacional de Cinema DocLisboa de 2018, o diretor colombiano rememora sua trajetória e explica a concepção que tinha do cinema. A entrevista, conduzida por Carvalho, tem o mérito de ter aproveitado a presença de Ospina em Portugal, por ocasião da retrospectiva dedicada a seus filmes no Festival, e de ter feito o que veio a ser a comovente despedida final do entrevistado.
Ela Bittencourt publicou no Mubi, em novembro de 2019, Documentary in the Age of Media: The Legacy of Luis Ospina. Longo texto, resumido a seguir, ao qual não é preciso acrescentar nada:
…como Ospina confessa no documentário Tudo Começou Pelo Fim, ele foi assombrado pela morte desde sua tenra idade – já imaginando quando criança que encontraria um fim sombrio… E, no entanto, [o filme] é muito mais do que o aprendizado de um homem de que a sua doença pode ser terminal. Pois em sua tragédia sincera e na coragem de continuar a filmar a si mesmo, mesmo quando está mais vulnerável… há também uma grande dose de lembranças, não apenas de seu início como cineasta, mas de toda a geração artística de Cali. É, pois, um retrato múltiplo, tendo como pano de fundo a Guerra Fria e a ditadura. E a inflexão deste retrato, o seu próprio cerne, é utópico… Ospina nos leva de volta à maneira como seus amigos e colaboradores se apaixonaram e desapaixonaram pelo comunismo e descobriram o amor livre, as drogas e o rock ‘n’ roll, mas também a melancolia que vem de querer permanecer para sempre rebelde e jovem – uma impossibilidade que endureceu alguns, enquanto amargurou e devastou outros… E, no entanto, por mais importante que seja o tema, Ospina dá a mesma ênfase ao cinema como prática festiva e comunitária. Uma cena central do filme, à qual Ospina volta repetidamente, reúne seus amigos e colaboradores na sua casa, primeiro na cozinha, cozinhando, e depois rememorando e filmando durante o jantar. Assim, o tema central é o cinema feito por amigos e amantes, com poucos recursos, mas muito companheirismo, muitas ideias e coragem.