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    Ilustração de Carvall

questões de polícia

Ovo indiciado

Delegada qualifica arremesso de ovo como tentativa de homicídio e prende acusada de atacar Marcha pela Família Cristã

Felippe Aníbal | 15 abr 2021_15h22
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A psicóloga Daniela Ribeiro Matheus, de 52 anos, almoçava em casa, com a família, no início da tarde do último domingo (11), no bairro Batel, em Curitiba, quando ouviu o caminhão de som e as buzinas dos automóveis que participavam da Marcha pela Família Cristã – ato convocado por grupos religiosos e de direita contra a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de manter fechados templos religiosos. Lá embaixo, alguns manifestantes que acompanhavam o cortejo a pé viram ser arremessados contra si alguns objetos. Uma idosa de 73 anos, que participava da manifestação, caiu e se machucou. Minutos depois, a Polícia Militar (PM) entrou no prédio. Os manifestantes apontaram o 13º andar como origem dos objetos, e o síndico levou a polícia até o apartamento da psicóloga. Aos policiais, ela disse ter atirado dois ovos pela sacada de seu apartamento, no 13º andar. Foi presa em flagrante e indiciada por tentativa de homicídio. Passou o resto do domingo presa em uma cela do 8º Distrito Policial, separada dos demais detentos. Foi posta em liberdade provisória na manhã de segunda-feira (12), após pagar fiança de 3,3 mil reais, arbitrada pela Justiça.

A piauí teve acesso ao inquérito policial do caso, que passou a tramitar na Justiça sob sigilo. A delegada Hastrit Greipel indiciou Daniela Matheus com base no depoimento de três testemunhas – dois organizadores e um participante da manifestação – que afirmaram que a idosa foi atingida por um maracujá e disseram ter reconhecido a psicóloga. Também prestaram depoimento dois policiais militares que não presenciaram o incidente. Para a delegada, “ficou claro que a conduta se deu por motivos políticos”. Não houve perícia no local. Os manifestantes recolheram pedaços de frutas e entregaram à polícia.

Um vídeo que consta dos autos coloca em dúvida se a idosa foi atingida por algum objeto ou se caiu após tropeçar no pé de outro manifestante. A imagem mostra a mulher se desequilibrando e caindo de costas perto do meio-fio e, quando ela já está no chão, é possível ver um objeto caindo perto do local onde ela permanece estirada. A vítima, Eva Teresinha dos Santos, não foi ouvida no inquérito – segundo a Polícia Civil, pelo fato de estar hospitalizada no instante da prisão em flagrante. A idosa foi encaminhada ao Hospital Evangélico Mackenzie, onde foi atendida, levou três pontos na cabeça e recebeu alta ainda na noite de domingo.

Na análise em que converteu a prisão de Daniela em liberdade provisória, o juiz Thiago Flôres Carvalho apontou a dúvida suscitada pelo vídeo. Ele avaliou que “não há como, ao menos neste momento, em que se perfaz análise superficial, chegar à conclusão de que a queda não teria se dado pelo arremesso de um objeto, mas de uma colisão entre a vítima e terceiro”. O magistrado menciona a declaração das três testemunhas destacadas pela delegada, que disseram que “frutas foram lançadas do prédio e que atingiram a ofendida”. Flôres Carvalho observou ainda que, apesar de “reprovável”, o fato “não se revestiu de gravidade concreta”, destacando que Daniela não tinha passagens pela polícia e não oferece riscos à sociedade.

 

Em entrevista concedida à piauí na quarta-feira (14), a aposentada Eva Teresinha dos Santos afirmou que foi à marcha sozinha e que seguiu todo o trajeto a pé, do Centro Cívico ao Batel, quando ocorreu o incidente. Ela própria, no entanto, se diz incapaz de apontar o que aconteceu. Considera que tanto pode ter tido um mal súbito e se desequilibrado, quanto pode, de fato, ter sido atingida por algum objeto. “Eu não sei o que aconteceu. Eu não me lembro de nada”, disse. Definindo-se como “católica praticante”, Eva Teresinha acrescentou que aquela foi a primeira manifestação de que participou nos últimos anos. “O motivo é sair da zona de conforto. A gente tem que fazer alguma coisa. Quando eu era jovem, sempre participava”, acrescentou.

Na terça-feira (13), a promotora Marcela Marinho Rodrigues, da 5ª Promotoria de Crimes Dolosos Contra a Vida, do Ministério Público do Paraná (MP-PR), encaminhou o caso ao 1º Distrito Policial – responsável pela área central de Curitiba – e determinou novas diligências a serem cumpridas em noventa dias. Entre elas, ouvir o depoimento de Eva Teresinha e acrescentar ao inquérito o laudo de exame de lesões corporais ou o prontuário de atendimento médico da idosa.

Segundo os policiais militares, as três testemunhas prestaram depoimento voluntariamente, ao verem que a idosa precisou ser hospitalizada. As testemunhas afirmaram que foram arremessados do prédio um saco com gelo e água e outras três frutas – um mamão, um maracujá e uma goiaba. Os manifestantes relataram que os objetos partiram de uma janela do 13º andar e que, apesar da distância, conseguiram ver que quem os atirou foi uma mulher de cabelo grisalho e com cerca de 50 anos. Posteriormente, disseram ter reconhecido a psicóloga como a pessoa que arremessou as frutas.

Uma das testemunhas, Giselle Colete da Silva, estava sobre o caminhão de som e disse ter visto o rosto da mulher que, segundo ela, jogou frutas nos manifestantes. Mas acrescentou que a autora dos arremessos permaneceu dentro do apartamento. “Tinha várias pessoas em várias janelas, mas a pessoa que arremessou fechou [a janela] sem colocar a cara”, disse. Outra testemunha, o pastor Carlos Alberto Brasileiro, estimou em 30 m a distância da sacada até o ponto em que estavam na avenida. 

“Eu olhei pra cima e vi um maracujá a mais ou menos uns 10 m. Eu protegi o meu filho, só que esse maracujá pegou em uma senhora que estava a menos de meio metro [de mim]. Ela caiu então em decorrência desse maracujá e acertou a cabeça no chão”, disse Brasileiro. Ele contou ter usado uma camisa para estancar o ferimento da idosa, até a chegada dos médicos socorristas.

Após ter se ferido, Eva Teresinha desmaiou. Segundo os policiais que prestaram depoimento, os manifestantes se concentraram na entrada do edifício, ameaçando invadi-lo. “Tinha várias pessoas no portão do prédio bem exaltadas com a situação, berrando pelo prédio. […] Apontaram a janela, tinha muita gente indo de encontro ao portão, como se quisessem entrar à força. De algum jeito, elas iam entrar. Várias pessoas berrando e tudo o mais”, relatou a soldado Mikaela Esmanhotto.

Autorizados e acompanhados pelo síndico, os policiais foram diretamente ao apartamento de Daniela. Disseram que uma senhora havia sido atingida e que precisavam “encaminhar” a suspeita para a delegacia. “[Ela] Falou que tacou dois ovos […]. Eu perguntei, ela falou que já tinha participado de manifestação e tinha levado ovada, e que ela foi lá e jogou pela janela”, declarou a soldado Esmanhotto.

Segundo os policiais, para evitar contato com os manifestantes, um carro da PM foi ao estacionamento do edifício. Daniela foi posta no banco traseiro, sem algemas e escondida sob uma manta. Um vídeo publicado por José Renato Gasparim Junior – coordenador da passeata e uma das testemunhas ouvidas pela polícia – mostra dezenas de manifestantes aglomerados em frente ao prédio, aos gritos de “assassina, assassina”, quando o carro da PM deixa o edifício, conduzindo a psicóloga à delegacia.

Em depoimento à delegada, Daniela Matheus optou por não dar declarações sobre o incidente. Disse  que é uma “pessoa que trabalha pelo bem das pessoas” e que “jamais faria absolutamente nada para machucar” ninguém. A psicóloga também relacionou a prisão ao seu posicionamento político. “Eu sou uma pessoa, sim, progressista. Moro num prédio com muitos bolsonaristas. Então, eu sou fora da curva onde eu moro. Todo mundo sabe que sou uma pessoa progressista, e eu sou diferente de todo mundo lá, mas jamais faria nada para machucar ninguém”, disse.

Para a delegada Hastrit Greipel, “não resta dúvida” de que os fatos ocorreram conforme o relato das testemunhas, que “descreveram de forma contundente todos os detalhes”. Ela observou que, “apesar de não ter confessado o arremesso dos objetos, não houve negativa da autuada quanto ao arremesso de objetos e ficou claro que conduta se deu por motivos políticos”. A delegada entendeu que Daniela assumiu o risco de matar, “arremessando não somente um, mas pelo menos quatro objetos diferentes”. Dois delegados consultados pela piauí, na condição de anonimato, divergiram da avaliação de Greipel. Para eles, o indiciamento por tentativa de homicídio foi excessivo e que o mais adequado seria que a suspeita respondesse por lesão corporal – cuja pena prevista é de três meses a um ano de detenção. A delegada Greipel não quis dar entrevista.

Segundo o professor Otto Henrique Martins da Silva, do curso de Física da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), tanto um ovo quanto um maracujá arremessados do 13º andar de um prédio (a aproximadamente 45 metros de altura) atingiriam a vítima a uma velocidade entre 100 e 108 quilômetros por hora. No caso do ovo, o impacto causado seria semelhante ao de um objeto de um quilo atirado, a três metros de altura, sobre uma pessoa. No caso do maracujá, seria o mesmo que um objeto de um quilo jogado de uma altura de nove metros. O professor de física Rafael Coutinho faz o mesmo cálculo. “Levando em conta um mundo ideal e sem atrito, o ovo pode atingir até 108 quilômetros por hora. É algo que vai machucar, mas creio que não tenha energia suficiente para matar uma pessoa”, observou Coutinho.

A defesa da psicóloga, conduzida pelo escritório Bertholdi, Martins e Freitas, sustenta que não há comprovação material de que ela arremessou outros objetos, além dos dois ovos que admitiu ter jogado pela janela. Segundo a defesa, a prisão surpreendeu Daniela, “eis que manifestadamente infundada”. 

Mãe de três filhos – de 24, 21 e 17 anos –, a psicóloga está bastante abalada. Logo após o incidente, fotos e dados pessoais dela passaram a circular em grupos de direita, com ameaças, e Daniela tirou do ar suas redes sociais. Ela chegou a aceitar conceder entrevista à piauí, mas desistiu. Os advogados emitiram nota em que afirmam a inocência da psicóloga e que pretendem demonstrar que as acusações são falsas.

“Destaca-se que não há provas de que qualquer objeto tenha atingido a senhora Eva, ou mesmo que Daniela seja responsável por tais objetos. A defesa lamenta a falta de urbanidade e serenidade com que o caso tem sido tratado, eis que antes mesmo da completa apuração dos fatos, Daniela vem sofrendo todo tipo de ofensas na internet, que a atribuem a pecha de criminosa e militante violenta, o que é de todo inverdade. A defesa está segura de que a verdadeira índole da sra. Daniela restará demonstrada nas próximas horas ou dias”, consta do comunicado.

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