No panorama melancólico do cinema brasileiro atual, Paisagens do Fim se sobressai. Publicado há duas semanas no blog carmattos, o vídeo-ensaio, assim definido por seu autor, Carlos Alberto Mattos, é baseado no site-livro homônimo de 2021 e reúne sequências de 46 filmes, divididas em seis partes: Ruínas Arte Cinema; Guerras Mundiais; Guerras Regionais; Desastres Naturais; Catástrofes Industriais; e Destruições Voluntárias. O critério para escolher as cenas incluídas foi serem encenações feitas em meio a ruínas ou terem catástrofes como pano de fundo. Trata-se nada menos do que uma pequena história temática do cinema que reúne, entre outros, desde Alemanha Ano Zero (1948), de Roberto Rossellini, Demolição de um Muro (1896), de Louis Lumière e Eu Acuso! (1919), de Abel Gance, até Em Busca da Vida (2006), de Jia Zhangke e Acqua Movie (2019), de Lírio Ferreira.
Quem me recomendou Paisagens do Fim com entusiasmo, em mensagem de voz, foi Bebeto Abrantes, diretor de Recife/Sevilha, João Cabral de Melo Neto (2003) e, entre outros, You Tubers (2020), realizado a quatro mãos com Sandra Werneck: “Eu te mandei aí acima o link do primeiro longa do Carlinho Mattos… Eu achei uma maravilha. O tema é originalíssimo… tem uma pesquisa extraordinária e é muito bem montado. Dá uma olhada… vale a pena ver.” Vi e concordo – vale a pena.
A fartura de filmes brasileiros recentes de pouco interesse, sobre os quais só resta perguntar o que terá motivado serem produzidos, é responsável pelo panorama melancólico mencionado acima. Costuma-se dizer que no cinema a qualidade resulta da quantidade. Ou seja, que é preciso produzir muitos filmes para conseguir fazer alguns bons. Há um fundo de verdade nesse lugar comum, mas tem havido certo exagero entre nós – filmes de real valor vêm se tornado cada vez mais raros, enquanto o número de títulos desnecessários é crescente.
Nesse quadro, Paisagens do Fim se diferencia, em primeiro lugar, por ser produção independente realizada com meios próprios, resultante do trabalho individual de um conhecido crítico que revela ser também um cineasta de sete ou, melhor, cinco instrumentos – Mattos responde pela direção, pesquisa, roteiro, edição e narração. Dotado de autonomia em relação ao aparato institucional e burocrático que rege a atividade cinematográfica no país, o vídeo-ensaio está disponível, com acesso livre, na plataforma de streaming Vimeo.
Cena de Quando a terra treme, de Walter Salles, um dos filmes que compõem o vídeo-ensaio de Carlos Alberto Mattos (Imagem: Reprodução)
Tão importante quanto os meios de produção empregados, para poder situar Paisagens do Fim acima de filmes brasileiros recentes, é a premissa do vídeo-ensaio ser bem formulada – catástrofes resultantes da ação dos homens servindo de cenários em filmes de ficção –, da qual decorre tratar de questões vitais da atualidade. Isso, em contraposição ao vácuo predominante em projetos de realizadores e realizadoras que voltam seu olhar, cada vez mais, para o próprio umbigo.
Enquanto a autorreferência impera, catástrofes se sucedem aqui e no exterior – das inundações no Rio Grande do Sul às queimadas atuais Brasil afora e da guerra na Ucrânia ao morticínio e destruição na Faixa de Gaza. Se fosse preciso demonstrar a perenidade das calamidades que põem em risco a vida humana na Terra, a primeira página da versão impressa de O Globo há uma semana seria suficiente. Lá está a manchete, no dia 18 de setembro: “Crise climática espalha descontrole e caos no planeta”, acompanhada de fotografias de queimada em Portugal, enchentes em Mianmar e seca na Amazônia colombiana.
Ao tema relevante de Paisagens do Fim se agrega perspicaz apreciação estética filme a filme, esclarecendo modos de filmar e a relação estabelecida entre conflitos humanos e ruínas. O vídeo-ensaio apocalíptico tem o requinte de terminar com Duda (Alessandra Negrini), personagem de Acqua Movie, dizendo: “Você não queria chegar no fim do mundo? Aí ó! Bem-vindo ao fim do mundo” – em seguida, o plano final é um travelling aéreo que entra e percorre o canal de transposição do Rio São Francisco, nas redondezas de Salgueiro, em Pernambuco, passando entre os paredões rochosos laterais.
A ressalva que faria a Paisagens do Fim seria quanto ao texto da narração, excessivo e didático além da conta, como se Mattos não confiasse no poder heurístico das cenas que ele mesmo selecionou.
Para concluir, passo a palavra a ele – o que segue são dois trechos de sua apresentação do vídeo-ensaio:
No vídeo-ensaio, parto do fascínio exercido pelas paisagens de ruínas, desde os pintores renascentistas, passando pelos chamados “fotógrafos de demolição” e chegando ao que hoje conhecemos como “ruin porn”, encontrável até mesmo como descanso de tela de computador…
Não me interessavam documentários nem o uso de imagens de arquivo inseridas na ficção. Selecionei apenas os filmes em que atores e tramas estavam organicamente incorporados aos cenários de destruição recente. A ideia era examinar como as locações atribuíam um valor documental às fabulações e, por outro lado, como a ficção extraía dramaticidade das locações.