O caminho evolutivo que resultou no Homo sapiens privilegiou o desenvolvimento do encéfalo. Durante a formação embrionária e no período pós-natal, o conjunto do cérebro, cerebelo e tronco cerebral consome uma considerável fração da energia corpórea disponível. Isso implicou uma redução da capacidade física em comparação com outros mamíferos do mesmo porte que o nosso. Em face de tal fragilidade, restou-nos caçar pequenos animais, coletar frutos ou apanhar sobras deixadas pelos grandes predadores.
De outra parte, o encéfalo privilegiado permitiu o desenvolvimento de ferramentas, utensílios e sistemas de colaboração social. Nossa espécie sobreviveu não pela sua força, mas sim pela colaboração entre os integrantes do grupo, regidos pelo enorme e criativo potencial encefálico.
O bipedalismo é fruto do desenvolvimento encefálico, liberando os membros anteriores da função de sustentação e marcha dos quadrúpedes para dotá-los de habilidades motoras capazes de fazer instrumentos e dar margem a outras manifestações do intelecto como, por exemplo, a escrita.
Paralelamente, a biomecânica da marcha teve que ser aprimorada de forma a permitir percorrer as grandes distâncias inerentes ao ato de coletar e caçar, ainda que de maneira “limitada”, como ressaltado anteriormente. Em consequência, perdemos o poder de apreensão dos pés, natural nos primatas, e os adaptamos para o ato de caminhar, auxiliados pelo estreitamento da bacia.
A pelve de reduzida largura modificaria o parto dos humanos e também nossas relações sociais. A bacia do Homo sapiens não permite o desenvolvimento completo do encéfalo na cavidade uterina; ele, portanto, cresce e amadurece significativamente após o parto. A maternagem estendida até que o novo ser seja independente modificou as relações sociais da comunidade. A diversificação de tarefas também fez com que os grupamentos humanos tivessem que aumentar a quantidade de seus componentes.
Nos ambientes com mais recursos naturais, o modelo caçador-coletor baseado em pequenas comunidades era adequado. Nossos índios, para citar um caso, gozaram de relativa estabilidade tecnológica por dezenas de milhares de anos, pois os recursos naturais exuberantes tornavam desnecessários grandes desenvolvimentos técnicos.
O mesmo não ocorria em regiões com menor disponibilidade de recursos. A escassez deles e o conflito pelos territórios mais férteis (os vales dos rios Tigre e Eufrates, por exemplo) acionaram a criatividade potencial do cérebro humano e, com o controle dos processos de produção de alimentos e de sua tecnologia, foi possível aumentar a população daqueles grupos. Há cerca de 7 mil anos surgiram os primeiros grupamentos no Crescente Fértil e, na Europa, há 4 mil anos.
A domesticação de animais para alimentação e serviço e o domínio de técnicas de cultivo de vegetais foram os elementos centrais da transição do modelo caçador-coletor para comunidades mais populosas, que se fixavam em cidades. O aumento do número de habitantes e a fixação territorial nas urbes promoveram várias e importantes alterações no modo de vida do Homo sapiens.
A interação entre milhares de seres humanos criou beleza, arte, ciência e encantamento. O estabelecimento das bases do que se entende por civilização nasceu, pois, fundamentalmente, nas cidades.
Por outro lado, o aumento da densidade populacional trouxe consigo o risco do adoecimento, do contágio, das febres. Arrastamos para o convívio humano agentes infecciosos que viviam em relativo equilíbrio nos animais domesticados: influenza (aves), tuberculose e varíola (bovinos), antrax (ovinos), cólera (bisão).
O amontoado de sujeira e dejetos nas ruas das cidades antigas permitiu o crescimento da população de ratos, os reservatórios urbanos da Yercinia pestis, causadora da peste bubônica. A promiscuidade das moradias criou o ambiente de proximidade interpessoal que fez prosperar até mesmo doenças causadas por micro-organismos com baixa contagiosidade, como o Mycobacterium tuberculosis.
A evolução do comércio entre urbes também levou a que patógenos e vetores pudessem vir embarcados em pessoas ou roedores nos navios. Foi o comércio que espalhou pelo mundo a peste negra, o cólera e a varíola.
A gripe espanhola, causada pela variante H1N1 do vírus da influenza aviária, nada teve de castelhana em sua origem; a Espanha apenas a relatou de forma abrangente. A doença, na verdade, expandiu-se a partir de acampamentos militares dos Estados Unidos, daí sendo transportada para os campos de batalha europeus da Primeira Guerra Mundial.
Assim, o adensamento da população urbana e as facilidades de contágio nesse contexto ensejaram, e ensejam, o adoecimento de enorme quantidade de pessoas. As epidemias, portanto, nasceram e nascem nas cidades.
Devido à sua simplicidade estrutural e funcional, os micro-organismos possuem grande potencial de adaptação aos seres que infectam. O diálogo entre humanos e seus patógenos resultou em um processo contínuo de coevolução recíproca, emoldurado pelas condições urbanas.
As perdas ocasionadas pela doença promoveram as primeiras grandes alterações do funcionamento das cidades, motivadas pela adoção de medidas sanitárias. O confinamento de pessoas potencialmente transmissoras em lazaretos, as quarentenas forçadas e as restrições de mobilidade humana surgiram com a peste negra.
A partir do século XVIII, a varíola substituiu a peste como pandemia dominante. O vírus da varíola humana é uma mutação do vírus da varíola bovina. O mal foi o preço que pagamos por domesticarmos os bovinos, da mesma maneira que a influenza nos atingiu a partir da domesticação das galinhas.
Foi a varíola que levou ao desenvolvimento da primeira imunização efetiva, quando, no interior da Inglaterra, o médico Edward Jenner (1749-1823) observou que as ordenhadoras de vacas tinham cicatrizes de pústulas nas mãos, no entanto não desenvolviam a varíola humana. Decidiu então inocular o material das pústulas das ordenhadoras em humanos saudáveis, propiciando a criação, em solo inglês, do primeiro sistema de vacinação.
No século XIX, o cólera tomou o lugar da varíola como pandemia. O surto global da doença mostrou de forma imperativa a necessidade de tratamento e distribuição de água potável nos territórios urbanos.
As grandes epidemias do passado puderam ser controladas com maior ou menor efetividade por meio de medidas locais ou regionais. O conceito do controle das febres urbanas por medidas regionais ainda é válido para muitas situações atuais, todavia não permanece mais como absoluto. Essa transição começou com a grande pandemia de influenza do início do século XX – a gripe espanhola.
A influenza, a propósito, veio para ficar, pois exibe notável capacidade de apresentar novas variantes – não por acaso, atualmente devemos tomar vacinas contra ela todos os anos. Mesmo assim, a H1N1 ainda é capaz de fazer a sua turnê mundial de tempos em tempos, como ocorreu, por exemplo, no surto de 2009/2010.
O sucesso de um vírus com alta instabilidade genética foi somente possível, insista-se, pela progressiva urbanização planetária – bem como pelo avião a jato. O tempo de incubação (infecção assintomática até o desenvolvimento de sintomas evidentes de gripe) do vírus da influenza é curto (ao redor de dois dias), porém longo o suficiente para que um indivíduo assintomático o carregue a grandes distâncias pelo transporte aéreo.
Diante desse cenário, a complexidade do controle regional das pandemias aumenta. Os mosquitos de ontem podiam ser combatidos com maior “liberdade”. Os vetores da atualidade – como o comércio globalizado, o turismo e o uso e ocupação do solo, entre outros – são importantes para fazer girar a economia.
Os coronavírus são um vírus RNA, pertencentes à ordem Nidaviridae. Infecções por coronavírus em humanos são detectadas desde os anos 1980, geralmente associadas a quadros gripais ou diarreicos de baixa gravidade.
A atual pandemia de coronavírus foi precedida por duas outras de menor magnitude. A primeira delas, a Sars, ocorreu na China em 2002 na região de Guangdong, e a segunda, Mers, originou-se na Arábia Saudita em 2012. Esses dois surtos, separados por uma década, já eram o prenúncio da pandemia atual, como preconizado por diferentes grupos de pesquisa.
Embora mais letais do que a de Covid-19 (entre 2 a 3%), as pandemias de Sars (letalidade de 10%) e Mers (34%) foram menos intensas do que a de agora. Em parte, tanto a Sars como a Mers foram limitadas pela sua letalidade e por um tempo de incubação ligeiramente mais curto. O Sars-CoV-2, responsável pela Covid-19, teve a seu favor uma letalidade menor e uma disseminação mais eficiente na fase pré-sintomática, favorecendo assim o espalhamento silencioso.
No caso específico de São Paulo, foi possível caracterizar a complexidade dos determinantes que fazem com que o risco de desenvolver Covid-19 variem tanto dentro de seu território. Segundo a Fundação Seade, na capital paulista a letalidade foi de 3,2% e 4,8% para mulheres e homens, respectivamente. Em junho de 2021, a letalidade para negros era de 8,2%, quase o dobro da verificada entre brancos (4,7%). Indicadores sociais responderam pelo aumento de três vezes no risco de vir a óbito pela doença em São Paulo.
Como se pode facilmente depreender desses dados, os fatores que determinam contrair a Covid-19 e morrer por isso vão além da biologia da interação entre o vírus e as células do hospedeiro. E, sim: além do desafio de entender a biologia da interação vírus-hospedeiro – para traçar novas estratégias capazes de minimizar o sofrimento e reduzir a letalidade –, o surto da Covid-19 foi ainda acompanhado por um fluxo sem precedentes de desinformação.
Tal quadro é uma demonstração clara da importância de uma abordagem sistêmica de saúde, notadamente a urbana. A impressão que fica é de que o urbanismo será absolutamente necessário para o controle das novas pandemias – as quais, é certo, chegarão.
Os futuros planos diretores deverão ser competentes do ponto de vista técnico, sem dúvida; entretanto, necessariamente impregnados também de conteúdo humanístico, de solidariedade e – por que não? – de esperança, o antídoto mais eficaz para o medo que hoje nos invade.