Um dos mais populares podcasts sobre a eleição americana, o FiveThirtyEight (538), do estatístico que virou celebridade nos EUA, Nate Silver, dedicou um recente episódio ao voto latino nas eleições por lá. Donald Trump tem mostrado números melhores do que o esperado entre latinos, principalmente na Flórida, estado que pode ser decisivo para as eleições nacionais. Vários fatores podem explicar essa melhora. A postura radical de Trump contra Cuba e Venezuela que agrada, principalmente, a eleitores de origem cubana aparece entre um dos principais. Mas, durante o podcast, um entrevistado especializado em voto latino nos EUA apontou um motivo que deixou os experientes condutores do podcast bastante surpresos: o WhatsApp.
Latinos (fora e dentro dos EUA) usam muito mais WhatsApp do que outros grupos no país. Informam-se mais por WhatsApp, conversam mais por WhatsApp, trocam impressões sobre política por WhatsApp. “Em grupos focais de latinos, quando aparece uma notícia completamente maluca, baseada em teorias da conspiração, a pessoa sempre diz que ouviu no WhatsApp”, afirma o especialista em voto latino.
Esse episódio mostra que a eleição de Trump, o Brexit e as revelações em torno das manipulações do Facebook como marco da era da desinformação de massa nas eleições parecem não ser páreo para o que vem acontecendo na América Latina.
De fato, se alguém quisesse criar uma plataforma perfeita para a desinformação dificilmente conseguiria fazer algo melhor do que o WhatsApp. Pelo serviço de mensagens, que quase sempre é de graça nos pacotes de dados na América Latina, você consegue espalhar informações com manchetes falsas, mas desestimula o usuário a clicar no link para obter mais informações, pois aí ele começaria a pagar pelos dados.
Além disso, a organização de grupos permite o disparo de mensagens em massa. E seu compartilhamento posterior por uma rede de confiança faz com que os destinatários da mensagem a tratem com mais credibilidade.
Finalmente, o WhatsApp cria uma rede de debate ainda mais fechada do que outras mídias. São mais do que bolhas. São cabines privativas de discussão que não apenas não ouvem o debate que acontece fora dali como não deixam ninguém acessar essa troca de argumentos.
Cass Sunstein, um dos importantes pensadores contemporâneos sobre a democracia, alerta em seu livro #Republic: Divided Democracy in the Age of Social Media para o fato de que a internet está afetando um dos princípios básicos da democracia com sua lógica de bolhas (que ele chama de enclaves): o do fórum público. Por este princípio, consagrado pela Suprema Corte americana, a liberdade de expressão não se restringe à proibição ao governo de censurar manifestações públicas. Ela também exige que a liberdade de expressão possa atingir pessoas diferentes. É por esse princípio, por exemplo, que não faz sentido restringir manifestações públicas ao Sambódromo, como queriam alguns políticos. As manifestações são nas ruas, mesmo que isso cause incômodos, pelo direito, fundamental para a democracia, de que as ideias devem circular. Ou seja, a liberdade de falar para a sua própria bolha é uma liberdade de expressão pela metade.
Como o próprio Sunstein aponta, as democracias estão em risco pela lógica de enclave presente em redes sociais como Facebook ou Twitter. Isso se dá justamente por acabarem com a ideia central de que a democracia depende de um fórum público de ideias que se contaminam e se transformam. Sendo assim, com o WhatsApp esse risco é ainda maior. Não há nenhuma visibilidade sobre as bolhas de WhatsApp. Não se sabem quais ideias – falsas ou não – estão circulando por lá, e assim a democracia fica sem um de seus pilares centrais: a esfera pública.
Eleições, parlamentos, freios e contrapesos, todo o arcabouço institucional construído pelas democracias nos últimos pouco mais de duzentos anos, dependem da visão de que as ideias possam circular livremente, se encontrar e se transformar por esse encontro. Claro que essa circulação sempre foi imperfeita, sempre pôde ser manipulada, mas nunca aconteceu de, tão rapidamente, essa circulação desacelerar como vemos agora. A desconexão das instituições com a realidade pode ser um combustível cada vez mais inflamável nas garantias que compõem as democracias contemporâneas.
Se esse represamento de ideias afeta de maneira ampla nossas instituições democráticas, o efeito específico sobre eleições é ainda mais nocivo. Afinal, as eleições são, em tese, o espaço de troca de ideias por excelência.
Nesse contexto, o debate fechado em grupos de WhatsApp torna quase impossível a real troca de ideias ou uma competição justa entre candidatos por meio do debate público. A eleição passa a ser um esforço de consolidar identidades que possam mobilizar esses grupos, muitas vezes com base em desinformação e ataques que não têm como ser defendidos pela outra parte.
No caso brasileiro, isso nos traz um problema bastante concreto. A nossa Justiça Eleitoral é internacionalmente reconhecida como modelo de independência, mas também é uma das que mais interferem no processo eleitoral. Temos uma tradição de controle muito rígido do debate público durante as eleições. Equilíbrio para os candidatos na mídia, regras para coibir abusos de poder político, econômico, uma visão bem rígida sobre compra de votos. Restrições sobre shows em comícios, sobre doações de campanha, sobre distribuição de material de campanha. Tudo isso parece ser muito. Para o passado. Se as eleições tendem a ser cada vez mais definidas a partir das interações em WhatsApp e cada vez menos pelo debate nas ruas ou nas mídias tradicionais, a Justiça Eleitoral parece ainda perdida em como lidar com a nova realidade.
Quem se interessa por esse tema e não leu o livro A Máquina do Ódio, da premiada jornalista Patricia Campos Mello, certamente está perdendo tempo. O livro revela o funcionamento dessas máquinas de desinformação e manipulação nas eleições de 2018. Mostra que houve muito dinheiro ilegal para viabilizar essas máquinas e que elas seguem ativas. Infelizmente também constata que a nossa Justiça Eleitoral, tão cheia de dentes para lidar com a manipulação das eleições no estilo do século XX, tem parecido banguela para lidar com os problemas do século XXI. O processo que investiga a campanha do presidente Jair Bolsonaro, apesar da fartura de provas, como aponta o próprio livro de Campos Mello, segue a passos de tartaruga, e o Tribunal parece desinteressado em analisar as provas abundantes.
Olhar para as eleições de 2018 é importante porque nos ajuda a compreender que o problema atual não se resolve simplesmente com melhora da legislação. Estamos todos acompanhando os esforços do Congresso em regular de maneira mais eficiente esse ambiente. Mas nem a nova Lei Geral de Proteção de Dados (que melhora bastante a regulação sobre quais dados pessoais de eleitores as campanhas poderiam usar) nem o projeto de lei sobre fake news vão ter qualquer efeito, se a imagem que a Justiça Eleitoral passa é a de que ilegalidades ligadas ao mundo digital não terão o mesmo tipo de sanção severa que essa mesma Justiça Eleitoral tradicionalmente impõe para ilegalidades, digamos assim, mais tradicionais. A legislação vigente em 2018 proibia expressamente a cessão de bancos de dados de empresas, ou a doação de disparos em massa por empresários. E isso ocorreu amplamente naquelas eleições sem que a Justiça Eleitoral respondesse de maneira adequada.
Assim, é positivo que a Justiça Eleitoral esteja anunciando uma parceria com o WhatsApp para combater a desinformação nas eleições de 2020, com um canal para receber denúncias e o compromisso de combater os disparos em massa. Mas parece pouco se não levar adiante os processos que demonstram ilegalidades gigantescas nos pleitos passados, sob o risco de ver essa situação se repetir. A leniência com 2018 encoraja um 2020 tenebroso.
Todos que se interessam em proteger a democracia no Brasil hoje devem estar preocupados em como vão se desenvolver as eleições de 2020. Se a Justiça Eleitoral mais uma vez for tímida em enfrentar as ilegalidades que ocorrem nas manipulações que têm o WhatsApp em seu centro, corre o risco de seguir caçando animais extintos e deixar os ratos corroerem o ambiente institucional para eleições livres.