Há duas semanas, Pedro Starzynski Bacchi, médico residente do segundo ano do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, fraturou um pequeno osso na pontinha de um dedo da mão. Teve que se afastar do trabalho na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Instituto Central, porque o curativo no dedo poderia ser foco de contaminação. Até então, trabalhara quase dois meses no front da guerra contra a Covid-19, onde ficam trezentos leitos destinados aos doentes mais graves e em piores condições. Nesses dois meses, Bacchi contraiu o vírus, teve sintomas leves, fez a quarentena e se reapresentou para o trabalho. Como quase todos os profissionais do setor, Bacchi não escapou dos altos e baixos, dos dias de angústia, dor e esperança. Hoje brinca dizendo que conseguiu administrar o bombardeio de emoções ao confrontar a Covid-19 como profissional, para acabar abatido por um singelo ossinho fraturado.
A brincadeira, porém, esconde uma reflexão sobre como a pandemia afetou aqueles que têm encontro marcado com o vírus todos os dias. Médicos e profissionais de saúde têm sido homenageados e chamados de “heróis” pela população, que reconhece a luta diária para curar os infectados. Bacchi, assim como seus colegas, é grato pelo reconhecimento. Mas o jovem médico residente, de 30 anos, prefere descrever o trabalho não tanto como heroico, mas como uma soma de conhecimento, esforço e dedicação incansável, que se esconde e disfarça emoções atrás de tantos equipamentos de proteção. “Na UTI não há espaço para atos heroicos. Damos tudo o que podemos para salvar cada uma daquelas vidas. Mas temos que saber reconhecer e admitir aquele momento em que a vida seguiu seu rumo e aquele paciente já iniciou o processo de morte. Não somos heróis. Somos fortes”, resume.
Com a chegada da pandemia ao Brasil, o Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo teve que se reestruturar. Transformado no quartel general de combate à Covid-19, o Instituto destinou novecentos leitos para os doentes (trezentos de UTI). Desmobilizou as enfermarias e clínicas de muitas outras especialidades, que foram instaladas em outros prédios, e isolou completamente o IC. Médicos, residentes, técnicos em enfermagem, pessoal administrativo, limpeza, todos foram treinados e seus trabalhos adequados ao envolvimento com uma doença altamente contagiosa e, em muitos casos, mortal. O passar dos dias, porém, mostrou que as características, peculiaridades e a intensidade das emoções envolvidas no combate ao coronavírus necessitavam de muito mais do que os imprescindíveis Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) ou de conhecimento.
Os casos cada vez mais frequentes de ansiedade, tensão permanente e a pressão para tomar decisões muito rápidas, que podem significar a vida ou a morte dos pacientes, com o passar dos dias foram deixando os profissionais mentalmente exaustos. A situação revelava-se mais grave a cada dia, assim como já acontecera nos piores momentos da pandemia na Europa e nos Estados Unidos, e passou a exigir medidas urgentes. Assim surgiu o programa COMVC-19, um trocadilho com o nome da doença e a ideia do projeto. “Logo que começou a pandemia e conhecemos seus efeitos em outros países, foi possível prever com clareza que o pessoal de saúde seria dos mais impactados pela doença. Como nosso hospital foi definido como o quartel-general do combate à pandemia aqui em São Paulo, nosso impacto seria proporcional à nossa posição”, explica o professor titular e diretor do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), Eurípedes Constantino Miguel.
O Departamento partiu para criar algo rápido, que pudesse ser desenvolvido em larga escala e mostrasse aos 20 mil servidores do HC que a instituição estava preocupada com eles e queria cuidar e proteger cada um dos profissionais. O passo inicial foi capacitar líderes por setores para identificar e encaminhar os profissionais fragilizados aos serviço de apoio da psiquiatria. A partir dessas diretrizes, foram criados serviços de atendimento presenciais ou por meio de hotlines, garantindo suporte imediato. “Os profissionais que precisam de ajuda urgente são atendidos em 24 horas”, diz Miguel.
Desde que o serviço foi implementado, no dia 3 de abril, os coordenadores acompanham a evolução dos atendimentos quinzenalmente também e dos serviços de triagem. Boletim com os resultados do programa, publicado no começo desta semana, indica mais de trezentos atendimentos. A maior parte das consultas é feita através da hotline atendida pelos residentes em regime de plantão 24 horas, sete dias na semana. Trezentos atendimentos pode parecer um número pequeno diante do universo dos funcionários do complexo HC, cerca de 20 mil. Na opinião dos coordenadores do serviço, o número poderia ser muito maior. Esse atendimento abaixo do esperado resulta de um sentimento que até hoje perturba a população em geral, inclusive os médicos da área de saúde mental. “Ainda hoje não é confortável procurar ajuda psiquiátrica. É difícil ter problemas, dificuldades e, por isso, é mais difícil ainda procurar ajuda. A sociedade não se livrou do estigma de que ter algum tipo de transtorno mental, mesmo que passageiro, traz a ideia de ser louco, o que é muito pejorativo” explica Miguel.
Os distúrbios de ansiedade continuam sendo os mais prevalentes entre os profissionais, chegam a 77% entre os pesquisados. O segundo problema mais comum, citado por 42% dos atendidos, é o humor depressivo, e o terceiro, distúrbios do sono. “As pessoas desenvolvem inúmeros sintomas que vão desde uma reação emocional que desencadeia uma crise de choro até a paralisação absoluta”, pontua Graça Oliveira, psicóloga do Serviço de Psicologia e Neuropsicologia do IPq. A ansiedade traduz, na verdade, o medo do contágio, de contaminar-se oucontaminar os familiares, sem falar no sentimento de impotência diante do risco permanente de morte.
Oliveira conta um caso em que uma das profissionais simplesmente desapareceu do trabalho. Não avisou ninguém, passou uma semana fora sem que ninguém soubesse onde estava. “Existem problemas semelhantes que não são sequer percebidos. É por isso que é tão importante manter essa hotline, esse primeiro atendimento que será essencial para a vida e para a continuidade do trabalho desse profissional”, diz ela. Uma das responsáveis pelo desenvolvimento desses projetos, a diretora executiva do Incor, Marisa Madi, observa que é difícil reconhecer quando um profissional precisa de ajuda. Enquanto for possível, a pessoa disfarça os sintomas, medos e angústias. “Somos seres humanos cuidando de outros seres humanos, nossos pacientes e suas famílias, para darmos conforto a eles. Essa missão não nos permite perder de vista nosso equilíbrio interior”, diz Madi.
Também por isso, boa parte dos programas desenvolvidos no HC permite um certo anonimato. Um deles é um aplicativo para celular que pede apenas uma breve identificação do profissional. A partir desse momento, o usuário vai respondendo a questões que formam um score e permitem um diagnóstico, ainda que superficial, do profissional. A partir desse diagnóstico, a pessoa recebe no aplicativo uma série de reflexões e exercícios de meditação, que pode usar para diminuir seu estresse e lidar melhor com o sofrimento e a limitação de não poder salvar todas as vidas. No mesmo aplicativo há vídeos com mensagens motivacionais, pequenas e simples recomendações que podem ajudar quem passa por períodos de tanta pressão. Em um deles, sem imagens, vozes de adultos, crianças e idosos dizem frases de apoio, mostrando o quanto esses profissionais são essenciais.
Quando conversou com uma chefe de enfermaria que estava pedindo para mudar o local de trabalho, a neurorradiologista Paula Ricci Arantes pensou que, talvez, as práticas de relaxamento que ela e sua equipe desenvolvem no Centro de Medicina Mente e Corpo, do Instituto de Radiologia do HC, pudessem ser úteis no programa COMVC. Começou assim um programa semanal com o título “O equilíbrio está dentro de você. Fora Covid!”. São sessões de relaxamento e meditação que podem e devem ser praticadas todos os dias, para preparar o corpo, aprendendo a respirar, relaxar e entender que existe outro sentido na vida além das paredes do hospital. “É muito difícil mudar o hábito. Por isso nos parece tão difícil meditar, relaxar. É simplesmente porque, para fazermos isso, nosso cérebro não estava acostumado. Mas aos poucos ele vai aprendendo, e certamente teremos uma vida melhor”, explica.