Apesar de Kiyoshi Kurosawa ter 43 créditos acumulados, desde 1975, como diretor, incluindo, além dos longas metragens, curtas, séries e filmes para televisão, mesmo um espectador atento, no Brasil, pode desconhecer parte significativa da sua produção. Foi só a partir de 1997 que seus filmes passaram a ser mais conhecidos no Ocidente, mesmo assim apenas entre raros aficionados para os quais constituíram uma revelação.
Fazendo filmes de horror, tributários de Mario Bava, e considerado especialista nesse gênero, o alcance da obra de Kurosawa ficou inicialmente restrito a um público segmentado. Desde o ano passado, porém, quando ele recebeu o prêmio de direção na mostra Un certain regard do Festival de Cannes, pela realização de Para o outro lado, esse desconhecimento perdeu a razão de ser.
Embora admita sempre ter gostado de filmes de horror, Kurosawa nunca pretendeu se restringir a esse gênero, embora considere que ele revela “as ideias do realizador sobre a morte [e] represente a possibilidade de fazer um cinema relacionado ao tema da morte” (entrevista de 2004, disponível no YouTube com legendas em inglês:
Substituindo o horror pelo fantástico, Para o outro ladoreafirma que a morte é seu tema preferencial.
Para Kurosawa, “a questão fundamental com a qual acabamos ficando obcecados ao longo das nossas vidas é o que acontece conosco quando morremos. É algo com o que estamos constantemente pelejando, mas na nossa vida diária, vivendo em cidades relativamente pacíficas, estamos consideravelmente distantes da morte […] A verdade é que não tenho mais clareza sobre o que é a morte do que quando era criança. Então as perguntas infantis persistem: O que acontece quando você morre? Está tudo acabado? É apenas nada? Há algum modo de se comunicar com os que morreram? E penso que meu uso de fantasmas ou comunicação com o outro mundo é parte da minha obsessão com essas mesmas perguntas.” (entrevista disponível aqui)
Com roteiro adaptado de um romance escrito por uma autora especializada em literatura infantil (Kazumi Yumoto), publicado em 2010, Kurosawa dá tratamento ficcional a uma variante da ocorrência frequente no Japão na segunda metade da década de 1960 e início dos anos 1970 – o súbito desaparecimento de pessoas, homens em especial, por não conseguirem mais suportar o tensão do trabalho ou da discórdia na família.
A versão documental do tema do desaparecimento foi consagrada, em 1967, por Shohei Imamura, em Um homem desaparece, filme que se tornou referência do cinema direto, gênero ao qual parece se filiar, mas com o qual rompe ao adotar postura heterodoxa para a época, incluindo cenas que parecem feitas em ambientes reais, mas que o filme revela serem cenografadas em estúdio. O pressuposto básico no cinema direto de não intervir no que está sendo filmado sendo, desse modo, subvertido.
Kurosawa também subverte os pressupostos dos seus filmes de terror. Em Para o outro lado, vivos e mortos convivem sem causar espanto ou medo uns aos outros. A fantasia realista, nas palavras de Kurosawa, é narrada como um filme de viagem: “os dois principais protagonistas partem e desse modo vão poder reencontrar juntos um cotidiano, recomeçar do zero. O suspense desliza no interior da relação deles à medida que completam o percurso juntos, e dos encontros que eles têm, para chegar à essência das relações humanas.” (entrevista disponível aqui).
Filmado de forma simples e narrado com extrema segurança, Para o outro lado é um filme inusual que custa um pouco a engrenar, mas que ganha grande interesse a partir do início da viagem.