Em fevereiro de 2011, a jornalista Rania Abouzeid foi a Damasco, capital da Síria, para acompanhar uma série de protestos que tomavam a cidade. Os manifestantes exigiam maior liberdade de imprensa, respeito aos direitos humanos e uma nova legislação. A repórter, que estava trabalhando para a revista americana Time, voltou mais algumas vezes. Meses depois, recebeu uma mensagem no Twitter. Era sua ficha num serviço de inteligência sírio, na qual ela aparecia descrita como espiã. Mesmo assim, ela continuou a ir para a Síria com frequência. As manifestações foram o início daquele que seria o maior conflito armado da década: a Guerra Civil Síria.
Em 2016, a Síria se tornou o lugar do mundo mais perigoso para jornalistas. Dois anos depois, a jornalista de origem libanesa, mas nascida na Nova Zelândia e criada na Austrália, lançou o livro No Turning Back, sobre o conflito. Abouzeid veio ao Festival Piauí de Jornalismo, realizado na Faap, em São Paulo, para falar sobre sua experiência na cobertura de um conflito tão violento. A conversa ocorreu neste domingo (6) e foi mediada pelos jornalistas Fabio Victor, da piauí, e Marcelo Lins, da GloboNews.
A guerra parece estar se encaminhando para o final, mas a avaliação de Abouzeid sobre isso não é nada otimista: “A Guerra da Síria ainda não terminou, mas o resultado já se sabe: Assad ganhou”. Existem partes no país controladas pelos curdos, outras por forças rebeldes e outras regiões dominadas pelo governo de Bashar al-Assad, presidente do país desde 2000. Em todo o país existem dificuldades econômicas e milícias criadas pela guerra. “Quem perde é o povo sírio. Em meados de 2013 a ONU parou de contar os mortos nesse conflito, quando o número estava em 500 mil. Não tem mais como contar isso, então a gente não tem ideia de quantos morreram nessa guerra. Armas químicas foram usadas, todas as ordens foram violadas, e a ONU não consegue fazer valer essas regras internacionais”, relatou Abouzeid. Ela ressaltou que a polícia síria não pode ser penalizada por mortes cometidas em serviço — medida similar ao chamado “excludente de ilicitude” que o presidente Jair Bolsonaro defende para o Brasil, retirando a punição de policiais que, durante o expediente e em supostos confrontos, matarem pessoas.
A jornalista contou que se formou em ciências e que foi fazer jornalismo contra a vontade da família. Desde que começou a trabalhar na área, há mais de 15 anos, sua especialidade é o Oriente Médio. “Eu não me defino como correspondente de guerra. Eu sou jornalista que cobre determinadas regiões que de vez em quando estão em conflito”.
“Eu acho que vários desses lugares são mal entendidos, o Oriente Médio é muitas vezes pasteurizado, como se fosse uma coisa só. Como se uma mulher na Síria tivesse a mesma vida de uma mulher do Líbano, no Egito. E não é, elas são muito diferentes”, observou. Ela disse que enveredou para o jornalismo porque queria “enfatizar as nuances e deixar as pessoas terem vozes ativas”. Durante a conversa, relembrou algumas vezes a necessidade de deixar de ver os acontecimentos com um “zoom” e da importância de observar o quadro todo, além de ouvir o que as pessoas têm a dizer. “Eu odeio quando alguns jornalistas dizem que são a voz daqueles que não têm voz. Cale a boca e ouve!”
A jornalista disse que, por ser mulher, não teve dificuldades maiores para cobrir o conflito, pelo contrário. “Por ser mulher, eu consigo entrar até com maior facilidade em alguns lugares.” Enfatizou que as coberturas jornalísticas da região contam com muitas mulheres. Ela também nunca sofreu assédio sexual, “embora eu saiba de muitas outras que sofreram com esse tipo de problema”, observou. “O lado bom do Oriente Médio é que os homens não encostam em você se você é mulher”, contou, levando a plateia à gargalhada.
Abouzeid fez questão de responder às perguntas de estudantes, e foi indagada sobre que dicas daria a quem vai cobrir um conflito. Segundo a repórter, a resposta é estudar o ambiente, entender como ele funciona, pois até os mínimos detalhes podem livrar o jornalista de uma enrascada. “É importante que você saiba de coisas como por exemplo: qual segurança da fronteira não gosta do outro segurança, porque se ele te interrogar você não pode citar o outro. Coisas desse tipo”. Entender a cultura é essencial, avisou, porque, sem saber, um jornalista desavisado pode irritar alguém e arranjar problema.
A Guerra Civil Síria foi um dos primeiros conflitos a serem cobertos pela internet. Por causa do perigo, a maioria dos veículos não têm interesse em mandar algum repórter para lá. Abouzeid disse que as redes sociais têm seu lado bom, mas que não consegue cobrir um conflito só por meio de vídeos. “Tem uma avalanche de informações, mas não tem como saber até que ponto essas informações são boas, porque não necessariamente tem como verificá-las. Nós jornalistas temos que saber mais, temos que saber quem está por trás da câmera, o que aconteceu antes e depois do vídeo. É preciso ir ao local.”
“Qual o preço que você paga por escolher uma vida tão agitada e perigosa?”, perguntou uma estudante. Abouzeid deu uma pausa e respondeu: “É um privilégio contar histórias.” Outra pessoa perguntou se ela já pensou em desistir do jornalismo. Ela respondeu que não, nunca, mas ressalvou: “Não sou viciada em adrenalina. Eu tenho uma família muito próxima que se preocupa, então eu faço minha lição de casa. Tento entender o local, estudar bastante. Mas às vezes pode só vir algo do céu e explodir. É uma ameaça, sem dúvida. É um perigo, a gente sabe quando entra. Mas tem uma diferença da gente para quem está ali: nós temos o privilégio de poder sair.”