Em junho de 2023, Lula viajou à Itália para uma série de compromissos diplomáticos. Encontrou-se com o sociólogo Domenico de Masi, almoçou com o presidente Sergio Mattarella, reuniu-se com o Papa Francisco, conversou com a primeira-ministra Giorgia Meloni. Depois de muitas reuniões, reservou uma noite para um encontro mais informal com o amigo e prefeito de Roma, Roberto Gualtieri, expoente da centro-esquerda italiana.
“É uma visita de agradecimento, para expressar minha gratidão pela lealdade, solidariedade e pelo comportamento do prefeito Gualtieri quando eu estava detido na Polícia Federal do meu país”, afirmou Lula mais tarde, em uma coletiva de imprensa no Palazzo Senatorio, algo como a sede da prefeitura romana. O presidente se referia à visita que Gualtieri, na época um deputado do Parlamento Europeu, fez a Curitiba em 2018, quando o petista estava preso.
Lula deixou o encontro sem contar aos jornalistas um pedido que fizera ao italiano: que ele apoiasse a exibição dos painéis Guerra e Paz, do paulista Candido Portinari, em Roma. O díptico, composto por duas pinturas de 14 metros de altura cada, está em exposição na sede da ONU, em Nova York, desde 1957. O governo brasileiro agora quer levá-lo temporariamente para a Itália em celebração pelos 150 anos da imigração italiana para o Brasil, que se completam em 2025. O pintor era de uma família de imigrantes do Vêneto.
A ideia partiu de João Candido Portinari, 85 anos. Filho único do pintor, que morreu em 1962, ele administra o acervo do pai e organiza eventuais exposições de sua obra. Por sua iniciativa, Guerra e Paz deverá ser exibido no Museu Nacional da China, em Pequim, no próximo mês de novembro. A ideia é aproveitar a viagem para levá-los também à Itália. João Candido pediu ajuda ao Itamaraty, e a conversa acabou chegando aos ouvidos de Lula.
“Como ele já foi presidente antes, tem uma vivência desses movimentos de diplomacia cultural”, explica Marco Antônio Nakata, diretor do Instituto Guimarães Rosa (IGR), braço cultural do Itamaraty, criado em 2022. Segundo ele, Lula de tempos em tempos dá sugestões, orientando como os diplomatas podem divulgar a cultura brasileira no exterior.
Guerra e Paz foi uma encomenda feita pelo governo brasileiro a Portinari em 1952. O presidente na época era Getúlio Vargas, que mantinha relação de amizade com o pintor apesar do abismo político que os separava (nos anos 1940, Portinari se filiou ao mesmo Partido Comunista que Vargas havia perseguido de forma implacável durante o Estado Novo). Admirado pelo presidente, o pintor ajudou, com suas obras, a traduzir visualmente as aspirações do varguismo, que punha as classes populares no centro da identidade nacional.
Com Guerra e Paz, Portinari quis retratar duas cenas antagônicas, de caráter universal: em Guerra, as figuras humanas, muitas delas com as mãos sobre o rosto, aparentam tristeza e desamparo, sensação reforçada pelas cores escuras que o artista escolheu; em Paz, a atmosfera é mais leve, as cores são claras, crianças brincam, adultos dançam e trabalham. O azul aparece nas duas pinturas, em diferentes tons, conferindo unidade ao díptico.
Portinari trabalhou nos painéis até 1956, a despeito de uma recomendação médica para que se afastasse da aquarela. Ele sofria com intoxicação pelos componentes químicos das tintas que usava (morreu em decorrência desse problema, seis anos depois de terminar o díptico). Para elaborar a obra monumental, ele montou uma maquete que lhe servia de guia e produziu ao menos duzentos estudos e esboços. Esse processo foi descrito, em parte, pelo historiador Flávio Motta, em um artigo publicado em 1970 na Revista de História, veículo do departamento de linguística da Universidade de São Paulo (USP). Motta conta que Portinari criou os painéis num ateliê improvisado, pensado especialmente para aquela tarefa. O espaço ficava em um galpão cedido pela TV Tupi em Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro.
Depois de um dia intenso no ateliê, Portinari ia para casa e ainda desenhava por horas antes de dormir. “Gosto do lápis de cor, lembra meu tempo de menino”, explicou a Motta, que o conheceu. O pintor mostrou a ele, certa vez, um desenho que fizera de forma descompromissada. Mostrava meninos pulando sela (uma brincadeira, também chamada de carniça, em que uma criança salta por cima de outra), uma praça, umas casas. “Isto é Brodowski”, explicou Portinari, apontando os rabiscos. “Aqui era a casa de minha irmã.”
Quando Portinari nasceu, Brodowski ainda era um distrito, mas depois tornou-se um município de São Paulo, hoje com 25 mil habitantes. O pintor, filho de italianos, era o segundo mais velho de doze crianças. Na adolescência, demonstrou aptidão para o desenho, o que fez com que se mudasse para o Rio e se matriculasse na Escola Nacional de Belas Artes.
Motta argumenta que, apesar de tudo o que aprendeu no começo da vida artística, Portinari sempre se alimentou primordialmente da nostalgia e das memórias de infância. Foi, num primeiro momento, um pintor ligado às ortodoxias do ensino acadêmico, mas depois se aproximou dos modernistas paulistanos, que tentavam representar um Brasil diverso, caipira, negro, indígena. Isso se reflete em algumas de suas principais obras, como O Mestiço (1934), O Lavrador de Café (1934) e as séries Os Retirantes (1944) e Ciclos Econômicos (1945).
Em Pintura e Portinari, um texto pouco conhecido, publicado em 1935, o crítico de arte Mário Pedrosa se esforçou para enquadrar historicamente a obra do brodowskiano. “Ele bateu em todas as portas antigas e modernas. Aos velhos clássicos italianos, para a fatura dos retratos das damas da alta sociedade. Dos mestres antigos holandeses aprendeu a pastosidade das tintas, utilizou-se de grande parte dos componentes do ideal pictórico deles: elementos de atmosfera, elementos cósmicos, elementos de paisagem e com isto tudo fez também um tema sentimental repousante.” Ainda falando de Portinari, Pedrosa prosseguiu: “Correu a Chirico, apanhou-lhe certos tons claros, certo desembaraço de fatura, certos jogos de sombras produzidas para dar a distância, formular o espaço, isolar as coisas. Chegou-se a Picasso e assimilou o segredo de seu modelado ciclópico. Rivera, e a amplidão para o afresco.”
A admiração por Picasso é perceptível em Guerra e Paz. Durante uma visita a Nova York nos anos 1940, Portinari pôde ver pela primeira vez Guernica. Daquela cena de horror da guerra civil espanhola, extraiu elementos que, quinze anos mais tarde, aplicaria aos seus painéis. É o caso da geometria cubista, caracterizada pela decupagem das figuras em vários pedaços disformes. Não importava a Portinari, assim como a Picasso, a representação verossímil de um cavalo, e sim a sua expressão – isto é, o seu significado simbólico, fruto do diálogo entre a estética e a história social; uma imagem aberta, que permite diferentes interpretações.
Guerra e Paz foi um presente do Brasil à ONU, entregue em 1957. Devido a sua filiação política, Portinari teve o visto de entrada nos Estados Unidos negado e não pôde comparecer à instalação da própria obra. Eram os tempos do macartismo. Desde então, os painéis só saíram de Nova York uma vez, entre 2010 e 2015, quando o prédio da instituição estava passando por reformas. A obra foi exibida no Rio, em São Paulo, Belo Horizonte e Paris.
João Candido Portinari diz que o pai nutria carinho pela ascendência italiana e certa vez viajou a Chiampo, uma comuna de menos de 15 mil habitantes, para conhecer as origens da família. Foi lá que o pai do pintor, Giovan Battista Portinari, nasceu. Graças a esse vínculo, Chiampo e Brodowksi fecharam em 2019 um acordo de cooperação cultural. O prefeito da cidadezinha italiana foi ao interior de São Paulo em outubro daquele ano para celebrar o tratado, numa cerimônia realizada na casa onde Portinari cresceu – hoje chamada Museu Casa Portinari. “Considero Candido Portinari também um filho de minha terra”, declarou, orgulhoso, o prefeito Matteo Macilotti, segundo reportagens publicadas na época.
João Candido Portinari, durante o II Simpósio Nacional Candido Portinari, em Brodowski — Foto: Projeto Portinari
A relação entre a Itália e seus descendentes brasileiros, mais do que uma questão afetiva, já foi um componente importante da diplomacia entre os dois países, sobretudo na passagem entre os séculos XIX e XX. Esse elo perdeu força com o tempo. Hoje, poucos italianos são versados na obra de Portinari. O pesquisador e curador italiano Raffaele Bedarida diz que a obra do brasileiro é restrita a “um pequeno círculo de especialistas” no país. A exibição de Guerra e Paz deve torná-la conhecida a um público mais amplo. O plano dos diplomatas do Itamaraty é exibir os painéis no Palazzo Esposizione Roma, um edifício de inspiração neoclássica fundado em 1883 e “modernizado” durante a era fascista. “É um dos espaços mais importantes e legitimadores de Itália”, atesta Bedarida. Está em cartaz atualmente, no Palazzo, uma exposição de Carla Accardi, nome importante do abstracionismo italiano.
A viagem de Guerra e Paz, de Nova York a Roma, ainda depende do aval da ONU, que precisa autorizar a saída das pinturas, instaladas no hall de entrada da Assembleia Geral. O pedido foi protocolado pelo Itamaraty, e a previsão é de que a resposta chegue até o final de junho.
O Itamaraty oferece apoio institucional, mas não financeiro. Por isso o Projeto Portinari, nome fantasia da associação cultural presidida pelo filho do pintor, está tentando obter financiamento via Lei Rouanet. O custo total do projeto, que engloba ainda a viagem a Pequim e uma possível exibição dos painéis em Belém do Pará, durante a Conferência do Clima em 2025, foi orçado em 29,6 milhões de reais. Estão inclusos nesse valor o pagamento a funcionários nos três países, os gastos com transporte, o acondicionamento das pinturas e os recursos necessários para montar e desmontar as obras monumentais. Os painéis de Guerra e Paz são constituídos de catorze partes cada. Para serem transportados em um avião de carga, precisam ser divididos em dezesseis caixas. Cada caixa pesa aproximadamente 250 kg.
João Candido, que se formou em matemática e passou boa parte da vida divulgando a obra do pai, ainda está resolvendo as burocracias que um projeto desse porte exige. Ele lembra que, além do aniversário de 150 anos da imigração ítalo-brasileira, o ano que vem será marcado pelo jubileu da Igreja Católica, que é comemorado a cada 25 anos e turbina o turismo na Itália. “Estima-se que Roma receberá cerca de 32 milhões de visitantes”, disse o filho do pintor, em mensagem enviada à piauí. “Essa oportunidade amplia significativamente o alcance internacional da obra.”