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À procura do filho

    Corpos encontrados por moradores e dispostos na Praça São Lucas, no Complexo da Penha Leonardo Coelho

anais da violência

À procura do filho

Uma tragédia pessoal em meio a mais de cem outras, na operação policial com o maior número de mortos da história do Brasil

Matheus de Moura e Leonardo Coelho, do Rio de Janeiro | 30 out 2025_09h22
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O cheiro acre de morte no ar, misturado ao do orvalho, se espalhava pela Praça São Lucas, onde termina o bairro da Penha e começam as favelas do complexo de mesmo nome, na Zona Norte do Rio. Já passava de meia-noite e meia. Em frente ao supermercado Inter, formava-se uma roda com cerca de duzentas pessoas, entre trabalhadores, estudantes, aposentados e pessoas ligadas ao tráfico. Diante deles, 25 cadáveres jaziam no chão, enfileirados um ao lado do outro, todos homens, todos também apontados pelos presentes como moradores da região. 

Homens jovens se reuniam aos cantos, encapuzados e arredios, enquanto mulheres se dividiam umas com as outras entre o trabalho de suporte emocional e de procura por desaparecidos. Algumas crianças chegavam a caminhar pela cena, mas sempre acompanhadas no mínimo por algum adolescente que parecia maduro demais para a idade. Manchas de sangue se mesclavam aos descartes de embalagens plásticas oriundas da única vendinha aberta. “Queria descansar, mas não tinha como não vir aqui agora, né?”, comenta a vendedora com o colega.

Magros, gordos, pardos, pretos, brancos, tatuados, velhos, jovens, os corpos foram se multiplicando conforme uma caminhonete preta os trazia de diferentes pontos da favela. Eram carregados por um grupo de moradores liderado por Erivelton Vidal Correia, presidente da Associação Comunitária do Parque Proletário da Penha. Usando pares de luvas cirúrgicas, enfileiravam os corpos lado a lado, cabeça com cabeça, sobre uma extensa lona preta e azul, na imagem que mais tarde ganhou os portais de notícia. “Espaço, espaço, espaço”, gritava Correia quando as pessoas que caminhavam por ali atrapalhavam o trabalho.

Uma hora antes, ele havia enviado uma van com sete cadáveres para o Hospital Estadual Getúlio Vargas, que vinha recebendo todos os baleados e mortos confirmados pelas polícias. Oficialmente, àquela altura, eram 64 mortes causadas pela operação contra o Comando Vermelho, iniciada na manhã do dia anterior, 28 de outubro. Conforme a madrugada avançava, porém, a conta subia rapidamente, graças ao trabalho desses moradores, que encontravam cadáveres por todo canto, na maior parte jogados na mata. Nas primeiras horas da madrugada de quarta-feira (29), já haviam localizado ao menos 32 corpos não contabilizados oficialmente até então.

Uma mulher de 61 anos parou ao lado da reportagem e disse: “Aqui é o Iraque? Eu moro aqui desde que nasci. Nunca vi uma coisa dessas na minha vida.” Outra moradora, de 27 anos, repetiu o coro: “Em 27 anos aqui, nunca vi isso antes”, e ouviu: “Eu disse a mesma coisa e estou aqui há mais que o dobro da tua idade.” Houve risos mútuos – cenas que lembravam que no ar também havia algo de cotidiano, de moradores tão embasbacados quanto acostumados com a violência (do Estado, inclusive) no Complexo da Penha. Nada que se sobrepusesse, porém, ao som do choro – e sempre o choro de mulheres – que perderam filhos, amores, amigos, irmãos, sobrinhos. A cada vinte minutos, mais ou menos, era possível ouvir alguma delas (quase sempre, são elas) reconhecendo uma pessoa que desaparecera desde o começo da operação às três da madrugada do dia anterior. “Meu…”, muda o vocativo referente ao laço afetivo, mas não muda a frase.

 

Às quatro da tarde, a chacina já era um fato visível na imprensa carioca e nacional, mas não era chamada por essa palavra. Variava o número oficial de mortos. Por volta dessa hora, os milhares de grupos de moradores de favelas, bairros nobres, suburbanos etc. da região metropolitana do Rio de Janeiro pipocavam com mensagens do mesmo teor: “Comando Vermelho informa o toque de recolher, não é para ninguém sair de casa, porque vai ter morte e baderna.” Em resposta, estabelecimentos da Zona Sul, da Zona Norte, da Zona Oeste, da Sudoeste, da Baixada a Niterói, todos fecharam. Com isso, independentemente da linha, todos os vagões do metrô tinham seus metros cúbicos ocupados ao limite em algum momento.

Nas estações, os passageiros comentavam um alerta enigmático divulgado nas redes sociais: “Boa sorte na Central do Brasil.” Rumores de arrastões e pancadaria disseminavam o terror nos celulares daqueles que tentavam peregrinar de volta para casa para não sair mais pelo resto do dia. Notícias de assalto e confusão nos trens e ônibus causavam receio e raiva.

Mais cedo, longe dali, por volta das 16 horas, um homem retinto na faixa dos 70 anos, esperando o metrô de Botafogo, na Zona Sul, para Nova América/Del Castilho, na Zona Norte, ora consolava ora minimizava a dor de um parente ao telefone. “Não fica assim… Não adianta chorar também. Agora é aceitar. Escolheu essa vida…” Após desligar, meneou a cabeça negativamente e comentou com quem estava ao lado: “Meu sobrinho está lá entocado com o Doca, é segurança dele… Queria essa vida fácil.” Edgard Alves Andrade, ou Doca, é um dos mais influentes traficantes do Comando Vermelho em liberdade, chefe do Complexo de Penha e anunciado como um dos alvos da operação, embora sem notícia de sua captura até agora. 

Estações próximas dos complexos ocupados pelas forças de segurança pública ecoavam tiros em rajadas o dia inteiro. A reportagem parou na estação Inhaúma, da linha 2 do metrô, frente ao Alemão, e presenciou ribombados que apressavam os passos de moradores e encurtavam a paciência dos motoristas de Uber que esperavam na Avenida Pastor Martin Luther King Jr. “Tá dando tiro, anda logo!”, reclamou o motorista que nos buscava.

Das seis da tarde em diante, nenhuma viva alma ocupava as imediações da Penha, das ruas do trem às cortadas pelo BRT, passando pelas avenidas e vielas que cortam entre si a artéria central do Complexo. Deslocavam-se a pé os poucos que preferiram esperar a poeira baixar a pegar transporte público tumultuado ou pagar caro num aplicativo. O caminho era feito de lojas trancadas pelos portões de aço, poucos carros, exceto as oito viaturas que se apinhavam nas calçadas frente ao Hospital Estadual Getúlio Vargas. Fardados e camuflados observavam quietos a chegada de familiares de vítimas, em geral bastante confusas, sem saber para onde tinham ido seus parentes, se estavam presos, feridos, vivos ou mortos.

 

Eram por volta de três da manhã, no dia 28, quando fogos estouraram. Algumas moradoras explicaram que fogos de artifício “bons” são aqueles que vêm num estouro só, anunciando baile, aniversário, data comemorativa etc.; aqueles que anunciam as más notícias, como invasão policial ou de facção rival, geralmente são uma sequência de foguetes com pausas. 

Uma moça de cabelos vermelhos e um par de breus nas olheiras, que trabalha como atendente em comércio, costuma acordar entre 5 e 6 horas para preparar a filha mais nova, de 7 anos, para as aulas que começam às 7h30. Na manhã de terça, porém, abriu os olhos tão logo começaram os fogos. Uma vez que é residente de um beco na Rua 14 do Complexo da Penha, acaba tendo a sorte de não ter sua casa visada pelos primeiros tiros, mas o azar de não conseguir ver com os próprios olhos o que está acontecendo.

Sua comadre e moradora do andar de cima, de 18 anos, lembra de ter tentado dormir por volta das 2h30 da madrugada, após uma noite se divertindo em uma casa vizinha, mas de acordar de seu sono intranquilo às 4h30 por sons de tiros. Mãe de uma menina de 2 meses de idade, fruto de um relacionamento conturbado, ela acordara preocupada com a garota, mas acabou adormecendo novamente. Quando despertou de vez, percebeu que o conflito não havia cessado. 

Elas contam que os tiros foram intensos entre quatro e sete da manhã, com apenas um respiro que recordam ser de meia hora. Uma delas conta que a vizinhança saiu em peso para a rua assim que as armas silenciaram um pouco. Mal deu tempo de se inteirar e os tiros dispersaram o grupo. “Depois nós fomos surpreendidos com um tiro, todo mundo saiu correndo para casa… Eu escutei vozes gemendo atrás da minha janela. Eu escutei a voz de um homem gemendo pra caramba. Aí depois, em seguida, eu escutei três tiros”, relata a atendente, sobre um dos primeiros sinais de morte que percebeu nas redondezas, nesse caso nas paredes do vizinho da rua paralela.

Depois disso, o zunido de balas só viria a cessar novamente por volta das duas da tarde, quase sete horas depois. Nesse ínterim, conforme os grupos de WhatsApp bombardearam os residentes com imagens de mortos, presos e boatos de quem talvez tenha parado sabe-se lá onde, a comadre começava a sentir a aflição da falta de respostas do pai de sua filha. Sua angústia se somou à da atendente, que não recebia notícias de seu afilhado de consideração desde as seis da tarde do dia anterior. Pela boataria de conhecido, poderia estar tão vivo e preso quanto morto. Juntas, aproveitaram o pouco espaço de tempo e desceram as ruas do Complexo em busca dos dois. Hospitais, bares, tudo podia ser alguma coisa, mas nada era. A primeira teve a sorte de, por volta das quatro da tarde, receber uma mensagem tranquilizadora por parte do ex. A segunda seguia em busca do afilhado – batia 19 horas e nada de notícias dele.

Ela conta que o garoto, de 17 anos, é festeiro e mulherengo. Foi abandonado pela mãe aos 13 e largou a escola nessa mesma época. Aos 16, o pai foi embora sem deixar recado e ele se percebeu largado na casa da avó. “Sei que está vivo porque notícia ruim chega rápido e até agora nada desse daí”, disse a madrinha. Agora que a avó também teve de se ausentar por tempo indeterminado para ir ao Pará, sua terra natal, o garoto tinha pouco a que se apegar. Magro, com o cabelo de rouge do cantor Oruam, de quem é fã, e a gana pelo estilo de vida das letras do Poze do Rodo, tornou-se uma incógnita na mente de sua madrinha. Não estava no Hospital Getúlio Vargas, nem tampouco no Salgado Filho, também na Zona Norte.

No trânsito de volta do Salgado Filho para o Getúlio Vargas, na entrada da Rua Euclides Farias, imersa na penumbra confusa das árvores, o Uber que dividia com a reportagem foi parado a mais de 15 metros de distância por um grupo de policiais do Batalhão de Rondas Especiais e Controle de Multidão da PMERJ (Recom). Três motos. Seis homens. Dois fuzis apontados para o motorista e o banco da carona, ocupado por um de nós. A tensão era palpável. Um táxi ameaçou passar até mesmo uma linha à frente do nosso, mas um berro impôs a inércia sobre ele. “É, aí você avança e ele atira”, brincou o motorista, nervoso.

Com um gesto de mão, o policial, completamente encapuzado, foi deixando os veículos passarem um a um. Passada a tensão e de volta ao Getúlio Vargas, as duas perceberam que não havia muito o que fazer senão procurá-lo na mata.

 

“Gente, ó como ficou minha casa: sangue. Eu tô com medo porque não sei como é que está aqui. Estou trancada na casa com meus filhos. Olha, gente. Olha como é que tá. Olha… destruíram tudo, tudo.” Este áudio acompanha um vídeo de uma moradora da Penha que teve uma parede da cozinha derrubada por policiais que, segundo contextualizaram os vizinhos, queriam resgatar um dos policiais baleados. As imagens mostram rastro de sangue pelo chão e, no momento seguinte, uma pilha de tijolos da parede na qual a geladeira encostava. Um buraco grande o suficiente para duas pessoas passarem com folga. 

A voz fica embargada no final. 

Por todos os cantos, moradores reclamam histórias de policiais invadindo casa, impedindo de transitar pelo bairro, esculachando as pessoas, ameaçando mulheres, idosos e crianças. Um vídeo mostra um grupo de mulheres correndo com medo ao se deparar com policiais na virada da esquina: “Os polícias estão atirando, gente… Estão jogando granada, estão atirando, estão fazendo tudo. Não estão deixando família pegar nenhum corpo, nem reconhecer porra nenhuma… Tem mais mulher aqui do que homem, está todo na covardia esses safado”, grita a moradora.

Para se prevenir, algumas pessoas preferem deixar a porta de entrada da casa aberta ou entreaberta. A lógica, explicam, é de que os agentes tendem a ficar paranoicos com qualquer porta ou janela fechada, intuindo se tratar de alguém tentando se esconder. A abertura da casa é o clamor em dizer “não temos nada a esconder, não tem o que arrombar aqui”. 

Uma mulher de 27 anos, moradora de um beco com várias casas a uns 200 metros da Praça São Lucas, explica que, sentada próximo à entrada deste, mesmo que não trancado com cadeado, o portão de aço de sua casa fica fechado o dia inteiro por consequência de seu próprio peso. Segundo ela, os policiais abriram a porta com força, e ignoraram os gritos de “é moradora!”, mandando uma senhora com mais de 65 anos de idade calar a boca, “vadia”. Um breve bate-boca entre a jovem e os policiais, por sorte, não virou algo pior, e estes seguiram pelo morro em busca de suspeitos.

Algumas horas depois, o azar cruzou seu caminho de novo. No meio de um bonde de mototaxistas afugentados das partes altas do morro, essa mesma jovem, na garupa, teve um tiro de polícia passando próximo o suficiente para assustá-la junto ao piloto, fazendo com que caísse e ralasse a perna toda. “Vai, vai, não deixa ninguém pra trás, eles são covardes”, gritou para os mototaxistas que vinham passando com medo dos policiais ao horizonte. O vídeo é cortado abruptamente no meio de um estouro.

Embora não tivesse perdido ninguém, ela estava circulando pelos hospitais e arredores junto aos familiares, servindo de apoio emocional e pragmático também, ao fazer circular informações etc.

Ela é uma das muitas pessoas que circundavam o Hospital Getúlio Vargas apenas para acompanhar alguém em necessidade de suporte. O formigueiro de dores se manteve até as 21 horas. Ninguém sabia onde estavam seus parentes e amigos queridos, e esse desaparecimento era a incerteza da vida e da morte. A maioria das pessoas sequer conseguia conceder entrevista, algumas em estado catatônico, outras incapazes de formular um pensamento sequer, com as palavras presas na garganta.

Quando o ponteiro passou das 21 horas, ela também decidiu se juntar aos que buscavam os corpos nas matas. Desceram para a Avenida Lobo Junior, deserta, pichada e iluminada principalmente pelas luzes do BRT e do giroflex. Um homem idoso com notável transtorno mental , usando uma blusa puída e shorts vermelhos, gritava aos ventos enquanto transitava pelos trilhos do BRT. 

Mal viraram na Rua do Valão, que se afunila na entrada no Complexo da Penha, a jovem de 27 anos que bateu boca com os policiais e suas comadres passaram por uma van que as deixaria no começo da favela sem cobrar nada, por solidariedade. Dentro do veículo, iam os dois repórteres da piauí, o motorista, seu assistente, uma passageira que já estava ali dentro e as sete mulheres. A cada duas esquinas, um carro carbonizado, um esqueleto de veículo, lixo e pneus queimados, ainda fumegantes. Os cacos de vidro tilintavam sob a pressão das rodas da van, que subia sem pressa.

Um homem envolvido com o tráfico esperava sentado na mureta de um alpendre com mais dois amigos ao fundo. As mulheres o conheciam e sabiam que seria alguém com informações quentes. Os tiros continuavam, e cortavam o diálogo ora à direita ora à esquerda. No grupo delas, uma jovem loira, namorada de um traficante, batia o pé ansiosa por uma notícia. Desabou quando ouviu pelo conhecido que “seu homem” morreu. 

As comadres esperavam sua vez para perguntar sobre o paradeiro do afilhado. “Está preso. Morreu, não”, afirmou o homem. Alívio. “Vai pegar só uns meses e logo está solto, é de menor”, disse a madrinha. “Faz aniversário neste ano ou no próximo?”, perguntou uma garota mais nova. “Faz esse ano.” O coro foi em uníssono: “Iiiih, vai ficar.” “Ao menos vai ser bom para aprender uma lição”, repetiu para si mesma.

As outras mulheres presentes seguiram para o mato do Cabaré. “A bala está comendo lá fora. E os amigos [traficantes] estão muito escaldados agora. É melhor não subir agora, não”, disse-nos o homem.

Uma atualização importante neste texto, feita às 19h42 de quinta-feira (30): no final desta tarde, a madrinha informou à piauí que seu alívio havia sido uma ilusão. O afilhado de 17 anos está entre os mortos na operação.

 

Depois das 22 horas, já não havia praticamente mais nenhum familiar de vítima na frente do Getúlio Vargas, até os policiais já haviam diminuído de número. Elieci Santana Santos, 58, era uma exceção. Pequena, de rosto alongado em confluência com o cabelo liso, ela carregava uma mala de rodinhas rosa-claro. Irritada com o tratamento dos seguranças do hospital, descia a rampa de entrada vociferando se tratar de um descaso que uma mãe não fosse recebida com o devido respeito. Sua voz se misturava com a do homem com transtorno mental que saíra do BRT para a frente do hospital, onde repetia alto “eles [os policiais] são piores que os bandidos!”, e encenava uma queda ao chão por tiro.

Elieci mora em Feira de Santana (BA) e é mãe de Fábio Francisco Santana Sales, metalúrgico de 36 anos. Ela conta que ele se mudou da Bahia para o Rio de Janeiro no último ano em busca de um emprego melhor. Veio junto com a esposa e três de seus quatro filhos. Às 7 horas, horário em que estaria indo para o trabalho, mandou um áudio para a mãe, disse que não conseguiria seguir pois havia começado uma operação. Às 15 horas, veio a última mensagem: estava com medo e escondido da polícia. Elieci deixou o marido e seus outros três filhos em sua cidade, comprou uma passagem da Gol e embarcou por volta das 19 horas rumo ao aeroporto do Galeão.

Ela disse que um homem ligou dizendo que ele havia tomado um tiro no pé e foi parar no hospital. Mas não conseguiu mais confirmar essa informação.

Elieci não fazia ideia de onde seu filho estava indo morar quando migrou para o Sudeste. Não conhecia a fama das operações e chacinas na Penha, nem tampouco o fato de que é uma das favelas mais visadas pela polícia devido à presença de gente da cúpula do Comando Vermelho. A dimensão da violência a assustou: “Eles [os rapazes mortos] fizeram o quê? Eles são bichos? Que simplesmente eles [policiais] apagam e dão fim? Como se fosse o quê? Um lixo? Eu sou hipertensa, eu sou diabética, eu vi. Eu não sei o que é comer hoje. Eu tomei uma água, um copo de suco.”

Uma fonte avisou à piauí que corpos haviam acabado de chegar ao IML. Elieci foi junto, seguindo sua missão de achar o filho. O portão, entretanto, estava trancado com cadeado. “Família, advogado, qualquer um, só amanhã às 9 horas que vai começar a liberar”, informou o perito.

Os presos estavam sendo levados para as delegacias da Cidade da Polícia, um complexo de setores e delegacias da Polícia Civil, localizada no bairro do Jacarezinho, na Zona Norte do Rio e palco da maior chacina policial registrada antes desta, com 28 mortos. A resposta foi a mesma, mas o tratamento, não. Parada na guarita, de onde não poderia passar ninguém que não fosse advogado ou policial, aguardava pacientemente pela resposta de uma advogada recém-contratada de forma emergencial, por indicação de conhecidos do filho. Um dos inspetores, calvo, pardo e sardônico, perguntou: “Seu filho veio para cá pra traficar aqui, né?” “Não, ele não era bandido.” Ele continuou, rindo: “Se não era bandido, então por que morreu?”

Ela não falou mais nada.

Com o fechamento iminente do portão da Cidade da Polícia, relegando-nos aos perigos dos assaltos por usuários de crack daquele trecho da Avenida Dom Hélder Câmara, Elieci voltou à estaca zero: o Hospital Getúlio Vargas. Sua última esperança surgiu com um aviso de uma das poucas mulheres remanescentes na porta do hospital: “Estão botando os cadáveres na frente do mercado Inter, lá na praça! Estão todas as famílias indo lá reconhecer.”

 

Presidente da associação de moradores há onze anos, Erivelton tinha certeza de que mandar os cadáveres para o hospital em remessas seria pouco eficiente em gerar comoção midiática e, portanto, política. Os corpos tinham que ser resgatados da mata e enfileirados para reconhecimento pelo máximo de tempo possível. Foram dispostos com os rostos tapados, para evitar que moradores vazassem, em close, imagens dos mortos aos montes, mas eles foram descobertos diante da imprensa. 

A parte mais difícil do trabalho estava no matagal do Cabaré. Naquele momento não importava se era envolvido com o tráfico ou não, todo mundo que pudesse ajudar seria bem-vindo. Subiam em motos e numa pickup preta com lona e lençóis para transportar o corpo mata afora. 

A subida é longa e íngreme, com estradas de terra esburacadas, quebra-molas inconsistentes e um fim de jornada num descampado de chão batido rodeado por barracos paupérrimos. Dali, entra-se por uma estrada alternativa à oficial da pedreira da Polimix, um caminho usado por traficantes que buscam se esconder de agentes de polícia. A pedreira em si ocupa o centro ao redor do qual se espalha o matagal. Barrancos e árvores espinhentas compõem o caminho desbravado pela equipe de Erivelton e alguns familiares da vítima. Naquela incursão, eram nove: três mulheres e seis homens. O presidente da associação à frente. Todo mundo com a lanterna do celular acesa.

A primeira parada foi um pequeno buraco numa rampa de terra que dá para um emaranhado de galhos secos que, quando se vira para a direita, vê-se esconder o cadáver de um homem de cabeça raspada com rosto para o chão, e roupa de camuflagem. “Não chega perto, ninguém! Nem encosta”, avisa Erivelton. Um dos únicos sobreviventes encontrados ali em cima informou aos resgatadores: a polícia deixou uma granada armada embaixo do corpo dele. “Tem mais uns dois assim”, complementou um rapaz de dreads. “Só quando o dia nascer, só assim vamos conseguir ver como vamos tirar ele”, conclui o chefe da equipe. Em uma vida inteira no Complexo da Penha, Erivelton disse nunca ter visto uma armadilha assim.

A equipe subiu na moto novamente e seguiu reto pela nuvem de poeira, embebendo-nos na terra que a pedreira revirou. Uma nova entrada para a mata é avistada. Descem de seus veículos todos os interessados, fazendo da faixa de terra um estacionamento temporário. Como pequenos vagalumes, eles se distribuíram com suas lanternas de celulares. Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis. Entre pedras, barrancos, galhos e troncos pontiagudos, as equipes localizaram ou reafirmaram a posição de pelo menos seis cadáveres.

Decidiram levar logo um dos mais pesados, pois era, ao mesmo tempo, o mais bem posicionado para ser retirado de lá com facilidade. “Cadê o lençol vermelho?”, indagava um dos rapazes, frustrado por só ter um preto, sendo que, idealmente, usam-se dois para carregar uma única pessoa. Ninguém achou.

O corpo era pesado demais, reclamavam. Iriam precisar de mais homens na próxima viagem, insistiam. Os descontentamentos seguiam juntos a pisadas em falso que poderiam tanto torcer um tornozelo quanto derrubar alguém ribanceira abaixo. Chegando na mureta pela qual entramos, a pickup deu ré e parou próxima para que o corpo pudesse ser encaixado na caçamba. Esforçando-se ao máximo para não arrastar o rosto do cadáver no chão, levantaram-no num impulso só e encaixaram na traseira do automóvel.

Essa era uma das muitas viagens que se sucederiam ao longo do dia, revelando o dobro de corpos informados inicialmente pelas autoridades, com as declarações da Defensoria Pública à imprensa afirmando se tratar de mais de 130 mortos ao todo (no momento de publicação desta reportagem, o número oficial era de 121). A cada hora que passava, algum familiar encontrava o paradeiro de seu ente querido.

Elieci descobriu seu filho Fábio no meio dos cadáveres resgatados no fim da manhã de quarta-feira.

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