“Surpreendentemente contido” foi escrito, em referência a Pasolini, filme de apenas 84’, dirigido pelo nova–iorquino de ascendência italiana Abel Ferrara. O comentário é de Peter Bradshaw, crítico do The Guardian. Bradshaw afirma que Pasolini “é uma intrigante, surpreendentemente contida e inclusive cerebral obra de Ferrara, uma homenagem de seriedade inatacável, com atuação segura de Willem Dafoe no papel principal.”
Dessa fileira de elogios, em relação aos quais, de forma geral, não há por que discordar, cabe relativizar apenas a “seriedade inatacável” de propósitos do promotor da homenagem. Na origem do projeto, o que parece ter prevalecido foi boa dose esperteza, nada surpreendente em se tratando de Ferrara. Concentrar a ação nos dois dias que antecederam o assassinato de Pasolini e, uma vez concluído, lançar Pasolini no 40º aniversário da morte do poeta e cineasta, ocorrida na madrugada de 2 de novembro de 1975, mais parece lance sinistro de marketing do que filme merecedor de ser levado a sério.
Menos sério ainda foi Ferrara ter declarado à imprensa italiana, pouco depois de terminar o filme, que sabia “quem matou” Pasolini, sem contudo revelar o nome do assassino. Ao ocultar essa identidade, Ferrara deu margem a especulações da mídia sobre suas verdadeiras intenções ao dizer o que disse, parecendo não ser mais do que nova jogada de marketing para criar interesse pelo filme. Passado um ano desde sua declaração bombástica sem que Ferrara tenha revelado o que saberia, a hipótese de que tudo não passou de mera cartada de baixo oportunismo foi reforçada.
Para coroar a seriedade dúbia de Ferrara, Willem Dafoe recria Pasolini com notável caracterização física, mas falando inglês. Dificilmente poderia ser feito ultraje maior ao homenageado do que impedir o personagem que o representa de se expressar em italiano.
Ao encenar detalhes da confissão de Pelosi, Ferrara lhes dá um certo atestado de autenticidade. Sonega do espectador, porém, uma série de informações, inclusive o fato de Pelosi ter se retratado, em 2005, alegando que a confissão inicial fora feita “sob ameaça de violência” à sua família. Segundo sua nova versão, o assassinato teria sido cometido por “três pessoas com acento sulista”. Em entrevista à televisão, Pelosi declarou que dois irmãos e um outro homem mataram Pasolini, xingando-o de “veado” e “comunista sujo” enquanto o surravam. Segundo Pelosi, eles frequentavam o ramo Tiburtina do partido neo-fascista MSI.
Ferrara tampouco dá destaque à denúncia do consumismo feita por Pasolini pouco antes de morrer. Para Pasolini, o consumismo é “uma forma de fascismo pior do que a versão clássica.” Segundo o jornalista Ed Vulliamy, no artigo citado acima, “a visão de Pasolini de um novo totalitarismo, através do qual o hiper-materialismo estava destruindo a cultura da Itália pode ser vista agora como um brilhante presságio do que aconteceu com o mundo em geral na idade da internet. Mas sua crítica havia sido, meses antes do assassinato, mais específica. Ele tinha eleito a televisão como influência especialmente perniciosa, prevendo com grande antecedência o aumento de poder de um tipo como o magnata da mídia que se tornou primeiro ministro Silvio Berlusconi.”
Ainda mais específica, escreve Vulliamy, é “a série de colunas de Pasolini, escritas para o Corriere della Sera, denunciando que a liderança da Democracia Cristã no poder estava infestada de influências da Máfia, prevendo os chamados escândalos Tangentopoli – esquema de propinas – que se tornariam conhecidos 15 anos depois, por meio dos quais um segmento inteiro da classe política foi presa no início da década de 1990.”
O que terá feito Ferrara deixar de lado essas denúncias de Pasolini que neste momento dariam ao filme, em especial no Brasil, inesperada atualidade? Terá sido prudência? Seriedade não parece ter sido.