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Passado, presente e futuro em questão

Documentário Tantura se impõe pela força de seu tema – a barbárie inerente a qualquer guerra

Eduardo Escorel | 20 abr 2022_08h03
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Após estreia virtual no Sundance Film Festival, em 20 de janeiro, Tantura (2022), de Alon Schwarz, participou, também online, da competição internacional do 27º Festival É Tudo Verdade, encerrado em 10 de abril. Por aqui, o documentário não recebeu a atenção devida, nem teve a repercussão que seria de se esperar – afinal, foi considerado “explosivo” e “chocante” em Israel, onde foi produzido, e o motivo de ser qualificado nesses termos não é exclusivo ao seu país de origem, conforme o diretor explica em entrevista citada adiante.

Cena do filme ‘Tantura’ – Foto: Divulgação

Schwarz adota modelo narrativo consagrado em Tantura – o documentário é baseado, na maior parte, em dois grandes conjuntos de entrevistas. As originais, feitas especialmente para o filme, com veteranos nonagenários da guerra árabe-israelense de 1948, integrantes da Brigada Alexandroni das Forças de Defesa de Israel (FDI). E as cerca de 140 horas de depoimentos gravados em fitas de áudio, no final da década de 1990, por Theodore (Teddy) Katz na sua pesquisa de dois anos para o mestrado na Universidade de Haifa. Katz diz ter entrevistado 135 pessoas, “metade judeus, metade árabes”, entre integrantes da Brigada Alexandroni e moradores de Tantura. Além desses vastos registros são também incluídas imagens de arquivo inéditas e fotografias da guerra de 1948.

Apresentada em 1998 com o título O Êxodo dos Árabes das Aldeias no Pé do Monte Carmel do Sul, a dissertação de Katz foi examinada no final do ano seguinte e recebeu nota 97 – é “uma excelente tese que foi amplamente aclamada”, diz o professor Avner Giladi, antigo chefe do Departamento de História do Oriente Médio da Universidade. Cinco vilas costeiras palestinas, Umm Zaynat e Tantura, são focalizadas em especial. Os testemunhos colhidos, segundo o historiador Ilan Pappé, hoje professor de ciências sociais e estudos internacionais da Universidade de Exeter, no Reino Unido, relatam “a história arrepiante de um massacre brutal”, ocorrido em maio de 1948. Por volta de duzentos moradores de Tantura “desarmados, a maioria homens jovens, foram mortos a tiros depois que a aldeia tinha se rendido em seguida ao ataque da Haganá” (tropa paramilitar da população judaica durante o Mandato da Palestina de 1920 a 1948).

A reação drástica a um artigo sobre o massacre de Tantura, baseado na pesquisa de Katz, publicado no jornal israelense Ma’áriv, em janeiro de 2000, levou a Universidade a silenciar o autor – ele perdeu o grau de mestre, foi constrangido a se retratar e teve sua dissertação retirada de todas as bibliotecas acadêmicas. Ter assinado a carta de retratação, Katz diz no documentário, é o maior arrependimento de sua vida: “Em primeiro lugar, tenho certeza [que as pessoas foram mortas lá depois que a batalha terminou]. Em segundo, eles [os veteranos e as testemunhas que entrevistou] me disseram isso e, terceiro, eu tenho as fitas gravadas.”

Ao entregar a Schwarz as gravações feitas com os veteranos da Brigada Alexandroni, Katz avisou: “Se você quer fazer um filme desses testemunhos, tome cuidado porque você será perseguido como eu fui.”

Diretor Alon Schwarz – Foto: Divulgação

Malgrado a forma narrativa convencional e a sobrecarga de informação exigir muito do espectador, Tantura se impõe pela força de seu tema – a barbárie inerente à guerra, a toda e qualquer guerra –, ainda mais neste momento em que a Ucrânia sofre os efeitos devastadores da invasão russa. Nesse sentido, são eloquentes as palavras de Amitzur Cohen, um dos veteranos da Brigada Alexandroni entrevistados, que encerram o documentário: “Guerra é guerra. Nem todo mundo sabe o que é a guerra. E eu digo: quem não estava lá não pode mais julgar ninguém. Realmente não posso mais julgar ninguém… À noite, às vezes, eu acordava de repente, mas aos poucos… decidi não pensar nessas coisas. Eu parei, e pronto.”

Tantura deixa claro que Katz “disse a verdade, sim. Ele disse a verdade… mas os caras negaram tudo… Claro que todos sabiam”, conforme afirma Yossef Diamant (outro veterano da Brigada Alexandroni).

Teddy Katz – Foto: Divulgação

Pappé reconhece que “é uma tragédia, em um certo sentido. Judeus tiveram que fugir da Europa para encontrar um porto seguro, mas você não pode criar um porto seguro criando uma catástrofe para outras pessoas”.

Uma das legendas de abertura do documentário esclarece: Os israelenses chamam isso de “A Guerra da Independência”. Os palestinos chamam de “Al Nakba” (A Catástrofe). Outras legendas inseridas adiante informam: Centenas de cidades e aldeias palestinas foram destruídas em 1948; ao menos 750 mil palestinos se tornaram refugiados; a Nakba é um tabu até hoje na sociedade israelense.

Moshe (Musa) Peled, comandante israelense da brigada Golani, é explícito na entrevista a Katz, embora relute em dar detalhes:

“Na operação da tomada da Galileia,… havia duas aldeias árabes… Nahf e Sajur. Uma nós devastamos, e a outra não tocamos, não mexemos em um único fio de cabelo.”

“O que quer dizer com ‘devastamos’?”

“Deixe.”

“Deixe?”

“Foi uma época em que Ben-Gurion [líder de Israel durante a guerra de 1948 e primeiro-ministro em dois períodos entre 1948 e 1963] disse que devemos fazer o máximo para os árabes fugirem da Galileia. Então nós os espancamos, os queimamos para fazê-los fugir. Agora, cada um com sua moralidade e com suas interpretações.”

Pappé defende a criação de um Estado único reunindo os territórios de Israel e da Palestina. Ele é um dos principais defensores da tese de Katz e “recorre ao termo ‘limpeza étnica’ para descrever o que aconteceu não apenas em Tantura, mas também em todo o projeto sionista, de 1948 até hoje” (Andrew Lapin, The Times of Israel, 27 de janeiro de 2022. Íntegra disponível em https://www.timesofisrael.com/israeli-film-tantura-prompts-calls-to-excavate-possible-palestinian-mass-grave/). “Há coisas que você não quer lembrar. Certo?… Eu resolvi esquecer. Sim, fiquei muito traumatizado. Perdi meus melhores amigos. Tento não pensar nisso. Até hoje. Até hoje,” diz outro veterano no final de Tantura.

Vale registrar que, apesar do tema sensível e da controvérsia a respeito do documentário, Tantura é produção israelense realizada com apoio do Novo Fundo para Cinema e Televisão, Ministério da Cultura&Esporte e Conselho de Cinema de Israel.

De acordo com Schwarz, em entrevista a Renee Ghert-Zand publicada em de 27 de janeiro no The Times of Israel:

Israel só pode avançar como um Estado democrático judeu sendo honesto sobre o assassinato dos habitantes árabes… Mas quando se trata da Nakba, a maioria não sabe ou não quer falar sobre isso. Eles não querem lidar com isso. Temos que perceber a verdade. A verdade é importante neste mundo pós-verdade. A verdade vai limpar o buraco negro que esteve conosco nos últimos 73 anos e que não enfrentamos…

Essas pessoas são como meus avós. Não estou zangado com essas pessoas… Eles fizeram coisas terríveis. A maioria não matou, mas viram seus amigos matarem e ficaram de lado. Esta é a essência de tudo. Não os estou julgando. Foi uma guerra. Mas mesmo se você transferir ou limpar etnicamente pessoas da terra, o que também é um crime de guerra – que tinha de ser feito – você não vai e mata pessoas depois de uma batalha. Você não faz isso…

É tão doloroso para mim descobrir essa verdade sobre nosso país e a mentira. Eu entendo o que aconteceu. Estou zangado com o fato de que mentiram para nós como povo por 73 anos e que isso está destruindo nossas vidas neste país. Estamos destruindo nosso futuro por não reconhecer nossa parte na guerra. Houve massacres de judeus por árabes em Gush Etzion e outros lugares, mas contar a nós mesmos esse mito fundador de que somos puros, não fizemos isso, e só eles são os malvados está nos ferindo…

Todos os países têm histórias assim. Os americanos fizeram isso com os índios, os australianos fizeram isso com os aborígenes, a Nova Zelândia fez isso com os maoris – em todo Estado isso acontece. A única diferença é que alguns Estados amadurecem e dizem que isso foi errado, e que estamos nos tempos modernos e precisamos reconhecer as pessoas locais e os erros cometidos contra elas. Isso é o que temos que fazer. Precisamos ver a dor do outro lado…

Isso quer dizer que em Tantura devemos erguer um monumento [comemorando a Nakba e o que aconteceu lá]. O que precisamos é que o primeiro-ministro diga publicamente que cada nação tem sua história sombria e nós reconhecemos a nossa. Ocorreu dos dois lados, e o que fizemos foi errado, e que olhamos para frente e estendemos nossa mão em direção à paz. Não estou dizendo para trazer os árabes de volta para Tantura e expulsar os judeus. Não é isso que estou dizendo. Não é isso que deve acontecer. Eu não sou pelo direito de retorno por qualquer meio. Eu quero um Estado judeu. Meus avós vieram do Holocausto…

Os dois eventos [Holocausto e Nakba] não são iguais. Em 1948 não havia câmaras de gás, nem ferrovias, e Ben-Gurion não tinha um plano mestre para um genocídio industrial. Mas houve uma espécie de limpeza étnica que devemos reconhecer. Não podemos continuar dizendo “nakba charta” [a Nakba é uma merda] …

Os odiadores de Israel continuarão odiando Israel de qualquer maneira. Eu não posso controlar o que acontece com este filme. Eu só posso criar uma peça cinematográfica. Não precisamos do reconhecimento de ninguém. Ben-Gurion declarou o Estado de Israel. Temos um estado judeu. Precisamos ser um farol de esperança e moralidade para o mundo, e não podemos ser esse farol se escondermos nossos esqueletos no armário. A Nakba é o nosso esqueleto no armário.

A premissa de Tantura, definida na epígrafe do documentário, é inequívoca. O autor, Yigal Allon (1918-1980), foi político e militar que serviu por muitos anos como general das forças armadas de Israel: “Uma nação que ignora seu passado tem um presente monótono e um futuro envolto em neblina.” O predomínio da mentira “está destruindo nossas vidas neste país”. 

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