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Pastores, polícias e milícias

As eleições municipais e a multiplicação do bolsonarismo

Fernando de Barros e Silva | 29 out 2020_18h08
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Num ano especialmente trágico para o país, num momento em que as quizilas políticas giram em torno do presidente da República e de seus desafetos nos estados – o ex-governador Wilson Witzel e o ex-bolsonarista João Doria Jr. –, eis que temos eleições… para prefeitos e vereadores! Não há como evitar o sentimento de inadequação, de algo fora de hora, como se o calendário da rotina democrática marcasse um outro tempo que não esse das emergências que vivemos. Mas seria, ao mesmo tempo, um erro brutal minimizar a importância das disputas pela governança das cidades e tratar o pleito municipal como se estivéssemos discutindo a decoração da sala enquanto o prédio pega fogo. Se apostamos na democracia, não há outra saída: precisamos acreditar que o extintor está na sala, mesmo que a água seja pouca.

Metáforas à parte (até porque o bolsonarismo é um exterminador de metáforas; o país está literalmente pegando fogo), as pesquisas indicam e observadores qualificados têm reiterado que esta será, em boa medida, uma eleição marcada pela continuidade. A campanha muito curta e repleta de restrições, os traumas provocados pela pandemia e a visibilidade que prefeitos tiveram no combate à doença são fatores que jogam a favor dessa tendência. Diferentemente do que aconteceu em 2018, não estamos às vésperas de nenhum tsunami, para lembrar a imagem recorrente da onda gigantesca e furiosa que engoliu o país.

Bolsonaro, tampouco, parece ter muito o que comemorar. No Rio, estado em que o presidente construiu sua trajetória política, o prefeito Marcelo Crivella, seu aliado, dificilmente chegará ao segundo turno. Em São Paulo, onde o prefeito tucano Bruno Covas é favorito, Celso Russomanno – também, como Crivella, do Republicanos, o partido da Igreja Universal do Reino de Deus – dá a impressão de que vai mais uma vez seguir a sua sina de cavalo paraguaio. Aliás, tudo nesse dublê de político e apresentador de tevê transpira falsificação. Ele é um pastiche de almofadinha, uma espécie de genérico de João Doria, uma versão de segunda mão do governador de São Paulo. Se Doria fosse uma novela global (talvez ele seja), Russomanno seria a sua versão na Record. Insisto na comparação entre os dois inimigos de ocasião porque ambos são tipos canastrões, figuras obviamente dissimuladas, que trazem inscritas em suas fisionomias, mumificadas por aplicações de botox e sabe-se lá quantas cirurgias plásticas, as marcas de certa artificialidade televisiva. Nesse aspecto, são a antítese de Bolsonaro, franco, espontâneo e genuíno em sua monstruosidade natural.

Mas voltemos da digressão ao que interessa.

 

Sem prejuízo da tendência de recondução dos prefeitos ao cargo (e da sensação de esfriamento e algum revés do bolsonarismo), suspeito que essa eleição será marcada por uma outra continuidade, mais difusa e ao mesmo tempo mais reveladora do caminho que estamos trilhando. Trata-se da expansão larvar, país afora (ou adentro), de um perfil de político que tem com o bolsonarismo grandes afinidades eletivas. Estou me referindo aos pastores evangélicos e, sobretudo, aos “profissionais da segurança” (com e sem aspas), policiais e milicianos.

A sua presença na política é anterior à onda de 2018, da qual se beneficiaram muito, e eles provavelmente sobreviverão ao ciclo de seu agente catalisador. Representam o pensamento conservador, ou apenas retrógrado e frequentemente autoritário, e estão quase sempre localizados nas legendas à direita do espectro político, onde certamente se sentem mais em casa. Como estamos no Brasil, isso não os impede de praticar a realpolitik e transitar pelo poder segundo os códigos da fisiologia, seja qual for a inclinação ideológica do governo de turno. Lembremos que os mercadores da fé neopentecostal fizeram intenso comércio com o lulismo enquanto isso era rentável, ou “bom pra você, e bom pra você também”, como diria Russomanno.

Não há dúvida, no entanto, de que a força desses grupos mudou de patamar nos últimos anos. Olhemos, primeiro, para as polícias. Em artigo publicado no site da piauí, Renato Sérgio de Lima e Samira Bueno, sociólogos que dirigem o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, destacam que triplicou o número de profissionais da segurança eleitos entre os pleitos de 2010 e 2018. Quando Bolsonaro venceu, o PSL, até então nanico, conquistou 52 cadeiras na Câmara dos Deputados. Entre os eleitos, nada menos que 15 novos parlamentares eram policiais ou ex-policiais. Em 2016, ano de eleições municipais, 12% dos candidatos policiais conquistaram na urna o direito de representar a população, um recorde histórico. É muito provável que ele seja quebrado agora.

A política vai virando de vez um caso de polícia ao mesmo tempo em que a violência – e especificamente a violência policial – escala no país. O anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública recentemente divulgado mostrou que a polícia nunca matou tanto como no primeiro semestre de 2020. No Rio de Janeiro, por exemplo, ela foi responsável por 30% do total de mortes violentas intencionais. O total de assassinatos no país também voltou a crescer. É como dizia Paulo Mendes Campos: antigamente as coisas eram piores, mas depois foram piorando.

Como se não bastasse, há ainda sinais claros de que a milícia está ampliando seus domínios no berço político de Bolsonaro. Cito duas manchetes recentes do jornal O Globo: “Narcomilícia expande domínio, e polícia do Rio vê elo com política” (17 de outubro); “Milícia já é aliada do tráfico em seus principais territórios” (25 de outubro). Segundo a Polícia Civil, a milícia controla 25% do território do Rio, onde vivem milhões de pessoas, e não há nenhuma área dominada por paramilitares em que eles já não tenham de alguma maneira se associado aos traficantes. Estamos diante de um consórcio criminoso promissor com interferência crescente sobre a política local. Imaginem se o presidente da República e sua família tivessem alguma proximidade com esse mundo – o que seria de nós?

Numa das reportagens que publicou sobre a promiscuidade entre o crime organizado e a política institucional, no último dia 26 de outubro, o Globo relata que a polícia havia registrado casos de coação, constrangimento e violência no processo eleitoral em curso em catorze cidades, entre elas a capital e os municípios da Baixada Fluminense. O responsável pelo Disque Denúncia, ouvido pelo jornal, diz haver neste ano uma mudança significativa em relação a campanhas anteriores, além do aumento dos registros: “Dessa vez, as denúncias relatam que os candidatos integram as milícias, e não somente são apoiados por elas.’’ É como se Fabrício Queiroz, o finado Adriano da Nóbrega e seus amigos próximos fossem eles próprios candidatos – Deus nos livre disso!

Esse enxame de gente circulando pelos espaços institucionais do poder com uma pistola no bolso e a Bíblia na mão é um sinal eloquente da nova ordem de coisas que se confunde com um fim de linha. Eles compõem um exército de herdeiros-vingadores, ou de gestores da massa falida do período democrático, que começa nos anos 1980 e termina entre 2016 e 2018, com a deposição de Dilma Rousseff, o interregno parnasiano de Michel Temer e a subsequente eleição de Bolsonaro, o bárbaro.

Os neopolíticos armados estão a nos jogar na cara que os direitos humanos no Brasil nunca passaram de uma veleidade de certa elite progressista, uma fantasia que jamais fincou os pés no chão onde vive a massa pobre do país. Da mesma forma, os animais políticos da nova fé estão a nos dizer que Jesus chegou antes do Estado lá onde as pessoas mais precisavam. Nunca é demais lembrar que a Igreja Universal do Reino de Deus tem mais ou menos a mesma idade da democracia e nasceu nos subúrbios do Rio de Janeiro. Talvez não seja demais dizer que nosso Messias também é um miliciano.

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