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revista piauí

anais da memória

Peréio em três atos

As proezas de um adolescente senil que fazia cinema

14maio2024_12h41

I – Rio de Janeiro, outubro de 2001:

 

Num dos últimos pés-sujos da Gávea, ao lado da Praça Santos Dumont, entro com Peréio para tomar uma cerveja e ele uma Coca-Cola. Um dos bebuns residentes começa a encher o saco. “Você é da Globo, não?” Peréio grunhe que nunca trabalhou para a Globo (mentira, trabalhou sim). O malandro insiste, fala que conhece a cara dele da tevê. Eu falo que talvez ele conheça a cara do Peréio do cinema, embora os tempos áureos do ator tenham ficado nos anos 1980. O chato não se dá por satisfeito e insiste mais, até Peréio dar uma porrada no balcão e encerrar o assunto: “Porra, tem um tipo de filho da puta que só se educa na cadeia!” Silêncio sepulcral no bar. 

 

 

 

II – Brasília, setembro (?) de 2002:

 

Festival de Cinema de Brasília. É noite e num quarto do Hotel Nacional estão Peréio, seu irmão Jesus Pingo – diretor de teatro, ídolo de Peréio e dez vezes mais escabroso que ele – e o também diretor e câmera Helvécio Marins Jr., que na época gravava algumas coisas para o meu então embrionário Peréio Eu te Odeio, documentário que só veio a conhecer a luz do dia duas décadas mais tarde, em 2023. Peréio começa a dirigir Pingo quando este conta histórias nebulosas do irmão, inclusive gritando “corta!” com frequência. 

 

Surge uma balança de precisão e os dois começam a pesar os respectivos sacos escrotais, numa espécie de competição das mais aviltantes de que já se teve notícia. “Tu tá roubando, tá apoiando o peso na balança!” “Não tô não!” Após muita controvérsia nas pesagens, chegam a um veredito: Pingo vencedor, com a espantosa marca de 5 (!) kg. “Dois quilos em cada bola e um quilo de pau”, vaticinou Peréio. Com a madrugada se anunciando, o clima começou a pesar para o lado de Helvécio, que tirou o time de campo rapidinho.

 

 

Só depois de muito tempo me ocorreu: por que raios alguém tem uma balança de precisão no quarto do hotel? É, pois é.

 


 

III – São Paulo, agosto de 2009:

 

 

Restaurante mezzo chique embaixo do notório Edifício Copan, no Centro de São Paulo. Vou com Peréio tomar um drink, ele é recebido quase com palmas pelos presentes. Todos amam Peréio, não me pergunte por quê. Ele pede uma rabada ou algo assim, e eu só bebo, já que não consigo comer na frente de ninguém. O espetáculo dantesco de Peréio aproveitando cada grama de uma rabada – ela estava com uma cara ótima mesmo – começa. Perdigotos e barulhos em profusão, mas ninguém parece se importar. 

 

Finda a refeição, vem o grand finale, o que Peréio chama de “higiene bucal”: tira a dentadura e começa a chupá-la, como se fosse um osso de frango. Tudo certo, certíssimo… Um figurão muito bem vestido se senta ao lado dele e comenta que não suporta a moda atual de usarem paletó com tênis. Peréio concorda, apesar de estar com a mesma calça de moletom podre há três dias. Eu também concordo. Nessa época, antes da minha derrocada financeira, eu era muito elegante, usava botas, cinto e camisas sociais metodicamente arrumadas por dentro da calça. Ah, como as coisas mudam…