Há quatro meses, o pedagogo de formação católica Paulo Freire, nascido no Recife, em 1921, e falecido em São Paulo poucos meses antes de completar 76 anos, foi chamado de “energúmeno” pelo capitão, atual inquilino do Palácio da Alvorada, em uma de suas estapafúrdias declarações matinais. Não satisfeito, três semanas depois, o agressor contumaz chamou Freire de “patrono de Lula” ao atribuir ao ex-presidente (2003-2011) a responsabilidade pelo péssimo resultado do Brasil, em 2018, no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), estudo comparativo internacional, realizado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O morador provisório do Alvorada saberá o que “energúmeno” quer dizer? Terá conhecimento que o Pisa avalia o desempenho de estudantes na faixa etária de 15 anos, enquanto o projeto educacional de Freire era voltado para alfabetizar adultos? Há dúvidas a respeito.
Quem quiser conferir o sentido exato de “energúmeno” pode verificar no Dicionário Houaiss que a palavra quer dizer, por extensão, “indivíduo que, exaltado, grita e gesticula excessivamente”, e, em sentido figurado, “indivíduo desprezível, que não merece confiança, boçal, ignorante”. Ora, nada mais dessemelhante de Freire do que esses traços de personalidade. Por ironia, no entanto, seria difícil descrever melhor o atual ocupante do Alvorada. Basta comparar pronunciamentos de um e de outro. Por exemplo: o primeiro episódio da série Paulo Freire, um Homem do Mundo, de Cristiano Burlan, termina com essas palavras de Freire: “O meu sonho fundamental é o sonho pela liberdade que me estimula a brigar pela justiça, pelo respeito do outro, pelo respeito à diferença, pelo respeito ao direito que o outro tem, que a outra tem, de ser ele ou ela mesma. Quer dizer: o meu sonho é que nós inventemos uma sociedade menos feia do que a nossa de hoje, menos injusta, que tenha mais vergonha. Esse é o meu sonho. O meu sonho é um sonho da bondade e da beleza.”
Burlan teve a ideia de fazer um documentário sobre Paulo Freire em 2015. Nessa época, e mesmo depois que iniciou a produção com o aporte do canal SescTV, em 2017, não poderia prever que a série de cinco episódios realizada iria se tornar uma merecida manifestação de desagravo a Freire pela afronta póstuma que lhe foi feita. Tampouco poderia imaginar que o Seminário Internacional Arte, Palavra e Leitura, durante o qual Paulo Freire, um Homem do Mundo iria estrear no Sesc Pinheiros, em 17 de março passado, seria cancelado por causa da pandemia – acasos, próprios da natureza imprevisível do cinema documentário, que deram vigor adicional à série. Em exibição semanal desde 1º de abril no SescTV, e disponível on demand no link https://sesctv.org.br/programas-e-series/paulo-freire/, Paulo Freire, um Homem do Mundo apresenta os verdadeiros méritos de Freire e é outro exemplo da importância do streaming como meio de assegurar difusão alternativa às salas de cinema.
Burlan esclarece que realizou a série porque lhe interessava “saber mais sobre esse educador”, do qual tinha lido Pedagogia do Oprimido e Educação como Prática da Liberdade. Queria “compreender suas propostas de autonomia e transformação através da educação”. “Como curioso [foi] em busca dos familiares [de Freire], de amigos, pessoas que trabalharam com ele ou que foram influenciados pelos seus pensamentos e seus ex-alunos” (e-mail, 3 de abril). É essa jornada para conhecer Freire que o espectador pode acompanhar, adquirindo pouco a pouco as informações necessárias para compor seu perfil através das vozes de quem o conheceu de perto.
Somou-se à curiosidade de Burlan sobre seu personagem o envolvimento pessoal de Ana Carolina Marinho, roteirista de Paulo Freire, um Homem do Mundo junto com ele e Renato Maia. Parte da família de Marinho, companheira de Burlan, é de Angicos, no Rio Grande do Norte, onde ocorreu um dos projetos de alfabetização de adultos mais importantes de Freire, implantado em 1963 e conhecido como As 40 Horas de Angicos – título e tema do 2º episódio da série.
Curiosidade, envolvimento pessoal, pesquisa acurada das poucas imagens de arquivo existentes, incluindo valiosos depoimentos de Freire, e talento visual para criar e captar imagens documentais que transcendem a mera observação – esses são alguns dos atributos que fazem de Paulo Freire, um Homem do Mundo um documentário a ser visto.
O plano inicial e o último do primeiro episódio, por exemplo, têm essa virtude de não se limitar a ser mero registro objetivo, de ir além da superfície do visível, quer pela maneira como são gravados – caso das nuvens de abertura que se transformam em superfície de concreto da passarela por baixo da qual a câmera passa – ou da inesperada intervenção de uma menina que entra em quadro e escala o pedestal da estátua de Freire que está no campus da Universidade Federal de Pernambuco desde 2013, e na qual há uma placa onde se lê: “Educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo.” A menina se apropria da representação do corpo de Freire. Por um instante, ela parece saber que está sendo gravada, depois chama alguém – é um desses raros momentos em que o espectador atento pode ter uma discreta epifania.
Os reparos que cabe fazer a Paulo Freire, um Homem do Mundo são o abuso de voz em off e, por vezes, os planos de duração excessiva que parecem resultar apenas da necessidade de servir de suporte visual às entrevistas. Mesmo reconhecendo que essa é uma contingência difícil de evitar em documentários cuja narrativa se apoia em relatos sobre eventos do passado, dos quais há poucos registros visuais, é flagrante que Burlan lançou mão demais desse recurso.
No e-mail mencionado acima, Burlan diz ainda crer que “seria fundamental” fazer uma versão de longa-metragem do documentário, inclusive para aproveitar o vasto material gravado mas não incluído na série. Revelando apego ao circuito usual de exibição, ele considera que “a versão longa-metragem possibilita uma maior distribuição e veiculação do material em outras plataformas. O filme consegue acessar diversos públicos uma vez que pode integrar festivais, mostras, seminários, canais de TV públicos de outros países, entre outros meios e, em conjunto às exibições, é possível articular debates e conversas sobre a obra. Tenho o desejo de continuar filmando, ir a Guiné-Bissau, Chile, entre outros lugares. Além disso, tenho o desejo de experimentar mais a relação entre forma e conteúdo para o longa-metragem”.
Como se vê, persiste a atração pela tela grande, sala escura e circuito tradicional de festivais, mesmo da parte de quem conhece as restrições dessa forma de difusão.
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Programação linear e horários para assistir a Paulo Freire, um Homem do Mundo no SescTV: Quartas, 20h. Horários alternativos: sextas, 18h; sábados, 7h e 19h; domingos, 10h e 23h; terças, 16h. A Formação do Pensamento foi exibido em 1/4; As 40 Horas de Angicos: 8/4; O Exílio: 15/4; Do Pátio do Colégio à Pedagogia do Oprimido: 22/4; O Mundo Não É, Está Sendo: 29/4.