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    Ilustração de Paula Cardoso

guerra do PCC

PCC na contramão da crise

Capital de empresas ligadas à facção criminosa cresceu 29 vezes mais que a economia brasileira

Allan de Abreu | 13 out 2020_10h11
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Assim que atravessou a porta giratória, o jovem chamou a atenção de todos na agência do banco Bradesco no Tatuapé, Zona Leste de São Paulo, em uma tarde de 2019. Levava uma mochila nas costas, um saco de lixo preto em uma das mãos e uma grande sacola de plástico na outra. No caixa, abriu mochila, saco e sacola, exibindo milhares de notas amarfanhadas de 2, 5, 10 e 20 reais. Um total de 402,5 mil reais, depositados na conta do próprio jovem (314,7 mil reais) e na conta de uma empresa de venda de peças para veículos da Zona Norte da cidade (87,8 mil reais). 

A bizarrice da cena, no entanto, cessava naquele instante. Com o dinheiro nas contas bancárias, começava um sofisticado e complexo esquema de lavagem dos milhões de reais que a facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) lucra todos os meses com o tráfico de cocaína e maconha por todo o Brasil. Uma vez no sistema bancário, o dinheiro viaja por dezenas de contas de empresas, muitas delas de fachada, ou de laranjas, até que, limpo de todos os vestígios do crime, termina investido em novas empresas, imóveis e veículos, ou então retorna para as mãos dos “irmãos” do PCC, para financiarem novas ações criminosas. Em apenas quatro anos, o esquema, articulado entre 30 pessoas físicas e 78 empresas, entre holdings, postos de combustível, transportadoras e revendedoras de peças para veículos, movimentou 32 bilhões de reais, segundo investigação da Polícia Federal. Para efeito de comparação, as lojas Havan movimentaram valor semelhante no período.

Investigação da piauí sobre 76 das 78 empresas investigadas pela PF, das quais 67 permanecem ativas – não foi possível colher dados de duas delas – mostra que as duas primeiras firmas do esquema, um posto de combustível e uma loja de produtos de informática, foram criadas em 2002. Coincidência ou não, foi nesse ano que Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, assumiu o comando do PCC e fez da facção criada em 1993 uma multinacional do crime, financiada com o tráfico de drogas em larga escala. A partir de 2012, época em que a facção criminosa começou a exportar toneladas de cocaína para a Europa via Porto de Santos, tanto o número de empresas ligadas à facção quanto o capital social delas (resultado dos aportes financeiros nas firmas e que reflete o seu potencial econômico) passaria por forte expansão, como mostra o gráfico abaixo:

 

De 2011 a 2020, o número de empresas em atividade a serviço da lavanderia do PCC passou de 11 para 67, e o capital social dessas firmas cresceu treze vezes. Esse crescimento abrupto vai na contramão da economia brasileira, que, ao longo da década, viu o PIB (Produto Interno Bruto, a soma das riquezas do país) aumentar 42%, segundo dados do IBGE. O crescimento das empresas do PCC, portanto, foi proporcionalmente 29 vezes maior do que a economia do país. Não há crise econômica capaz de afetar o mercado atacadista da cocaína e da maconha.

Em tempo: a cena suspeita na agência do Bradesco em Tatuapé foi comunicada pelo banco ao Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) – o órgão identificaria outras trezentas transações suspeitas no esquema do PCC, totalizando 1,87 bilhão de reais. A empresa que recebeu parte das notas amarrotadas e mofadas naquela tarde pertence a Antônio Carlos Martins Vieira, o Tonho, preso em 2018 na Operação Transbordo, que investigou um esquema de furto e receptação de cargas em sete estados. A quadrilha, chefiada por Tonho, aliciava caminhoneiros para que eles permitissem o furto da carga e do caminhão e, em seguida, dissessem à polícia que os produtos haviam sido roubados. Tonho, segundo o Ministério Público, esquentava as mercadorias furtadas com notas fiscais frias e os caminhões com documentos de veículos idênticos, danificados em acidentes, arrematados em leilões – por mês, ele adquiria uma média de cem caminhões e carretas nesses pregões.

Mas a PF só começaria a destrinchar o esquema a partir da delação premiada de um piloto a serviço do PCC.

 

Felipe Ramos Morais foi preso em 2018, semanas após pilotar o helicóptero utilizado na emboscada que resultou no assassinato de Rogério Jeremias de Simone, o Gegê do Mangue, e Fabiano Alves de Souza, o Paca, no Ceará, na época as maiores lideranças do PCC em liberdade. Os dois estariam desviando dinheiro da facção e, por isso, segundo o Ministério Público, foram mortos por Wagner Ferreira da Silva, o Cabelo Duro, a mando de Marcola – Silva também seria assassinado dias depois. A piauí narrou a trajetória criminosa de Morais em junho deste ano.

Semanas após ser preso, Felipe Morais começou a negociar com a Polícia Federal e o Ministério Público Federal um acordo de delação em troca de redução da pena a que fatalmente seria condenado. O piloto disse aos delegados e procuradores que, embora o helicóptero utilizado no assassinato de Gegê e Paca estivesse registrado em nome de uma terceira empresa, o verdadeiro dono era José Carlos Gonçalves, 57 anos, conhecido como Alemão devido à pele muito clara e aos poucos fios louros na cabeça calva. Ao investigar a pista de Morais, a PF constatou que a empresa que formalmente aparecia como dona do helicóptero estava registrada em nome de um servente de pedreiro. E confirmou que o proprietário anterior da aeronave era o empresário José Carlos Gonçalves. Nascido e criado no Tatuapé, São Paulo, e sem passagem pela polícia, Alemão teve sua primeira empresa em 2005, aos 43 anos: um posto de combustível em Itaquera, Zona Leste da capital paulista. Naquele ano, segundo o piloto Morais, ele financiou a construção do túnel utilizado para o furto de 164 milhões de reais do Banco Central em Fortaleza.

Desde então, o empresário paulistano adquiriu ou criou, em seu nome ou no de seus familiares, outras catorze empresas, incluindo nove postos de combustível. Uma delas havia sido de uma tia de Marcola, nos anos 1990. Além disso, Alemão manteve negócios recentes com pelo menos três integrantes do PCC. Em uma oportunidade, empresa em nome de uma das filhas dele depositou 55 mil reais na conta de uma empresa de Leandro Cavallari, filiado à facção e condenado por furto e tráfico de drogas. Para a PF, os depósitos eram uma maneira de o dinheiro voltar limpo para as mãos da facção – a defesa de Cavallari não foi localizada.

Segundo o piloto Morais relatou à PF, Alemão costumava dar festas em sua lancha avaliada em 11 milhões de reais, ancorada em Guarujá, litoral paulista – algumas delas foram frequentadas por membros do PCC na Baixada Santista. Também apreciava bebidas caras, como champagne Veuve Clicquot e relógios da marca Suunto, alguns avaliados em 30 mil reais. Costumava residir entre dois apartamentos, um no Jardim Anália Franco, em São Paulo, outro em Balneário Camboriú, litoral catarinense, este último avaliado em 3 milhões de reais. Possuía dois helicópteros e um automóvel Porsche. Análise da Receita Federal constatou incompatibilidade entre a movimentação financeira da família Gonçalves e o patrimônio declarado ao fisco.

Alemão mantinha negócios frequentes com Antônio Carlos Martins Vieira, o Tonho, investigado por chefiar quadrilha de furto a cargas e chefe do segundo núcleo de lavagem. No início deste ano, a empresa Trans Yas, de uma das filhas de Alemão, foi transferida para um testa de ferro de Tonho. Alterações societárias, aliás, eram algo constante entre todas as 78 empresas do esquema – em uma delas, por exemplo, houve dez trocas de dono no período de doze anos. Para o delegado da PF Rodrigo Costa, que investigou o esquema, as substituições constantes de proprietários, quase sempre dentro da mesma família, são também uma estratégia para a lavagem de dinheiro, já que diluem a responsabilidade individual dos membros do esquema.

Entre abril e outubro de 2017, uma das empresas de Alemão transferiu 86,4 milhões de reais para a conta de uma empresa de Tonho, segundo o Coaf. Tonho, por sua vez, mantinha relações comerciais sólidas com Jean Ricardo Galian, integrante do PCC preso e condenado por envolvimento no furto ao Banco Central de Fortaleza, em 2005 – uma das empresas de Galian, por exemplo, está sediada no mesmo endereço de uma firma de Tonho. Além disso, o Coaf constatou transações suspeitas entre empresas de Galian e de Tonho, totalizando 105 mil reais. Para a PF, era uma outra saída de dinheiro limpo para a facção criminosa. “Vamos provar no curso do processo que Jean Galián é inocente nesse caso”, disse o advogado dele, Isaac Minichillo.

 

O terceiro núcleo investigado pela PF como integrante da lavanderia do PCC envolve a família Cepeda, que tem participação em uma grande rede de postos, a Boxter. Das 150 unidades espalhadas pela Grande São Paulo e Baixada Santista, 26 são controladas direta ou indiretamente pelos Cepeda. A família, comandada por Natalício Pereira Gonçalves Filho, ainda é proprietária de uma holding e uma transportadora. Renan Cepeda, um dos filhos de Gonçalves Filho, começou a ser investigado pela Polícia Federal na Operação Arepa, que apurou um esquema de exportação de cocaína no porto de Santos.

Em conversas interceptadas na operação, Renan aceita trocar 4 milhões de reais em notas miúdas por notas de valor maior ou dólar – a PF suspeita que o dinheiro tenha origem ilícita – em troca de juros de 1% sobre o valor trocado.

[…] Interessa procê aí?, pergunta o interlocutor, membro do PCC preso na Operação e condenado.

Interessa, eu consigo porque com os movimentos [financeiros] eu consigo pegar aqui, né, responde Renan.   […] Porque eu só posso pegar o que eu também consigo trocar, entendeu? Para depois não dar mancada. […] Eu vejo o meu fluxo de caixa aqui e vejo o que que eu arrecado por mês. 

Renan não foi denunciado pelo Ministério Público Federal naquela operação, mas continuou no radar da PF. A investigação do delegado Rodrigo Costa revelou que a família movimentava muito dinheiro em espécie nos postos: declarava receber até 70% do faturamento diário dessa maneira, muito acima da média dos postos de combustível paulistanos, onde a média não ultrapassa 30%, segundo a PF. Para Costa, era uma maneira de esquentar o dinheiro da facção, paralelamente aos depósitos em espécie nas agências bancárias. “O nível de complexidade das operações financeiras destacadas é extremamente elevado, uma vez que temos uma vasta e complexa rede de empresas, ora sendo fictícias ou não, mas com composição societária de ‘laranjas’, com visível ausência de capacidade financeira para movimentar valores milionários”, escreve o delegado nos pedidos de prisão do grupo. O Coaf identificou 837 milhões de reais em movimentações atípicas dos três núcleos do esquema nos últimos quatro anos.

Na manhã de 30 de setembro, a PF deflagrou a fase ostensiva da operação, batizada de Rei do Crime. Foram presas treze pessoas, incluindo Alemão, Tonho, Natalício, patriarca dos Cepeda, e seu filho Renan, todas suspeitas de participação em organização criminosa e lavagem de dinheiro. Eles tiveram seus bens bloqueados pela Justiça.

A defesa da família Cepeda foi procurada pela piauí e, em nota, negou ligação dos negócios do clã com o PCC. “A família atua exclusivamente no ramo de combustíveis há mais de trinta anos, sempre agindo dentro da legalidade. […] Há documentos que comprovam que toda a operação empresarial do grupo segue as regras da legalidade. A defesa não tem dúvidas que durante o andamento das investigações ficará demonstrada a inocência da família Cepeda.”

A assessoria da rede Boxter informou, também por nota, que “está cooperando com as investigações para demonstrar que nenhuma irregularidade foi praticada”. Segundo a empresa, “as atividades prosseguem normalmente, com a certeza de que os fatos serão esclarecidos o mais rápido possível, respeitando um histórico amplo no mercado de combustíveis, sempre prezando pela idoneidade e qualidade dos serviços prestados. A empresa é capitalizada e tem ativos para honrar todos seus compromissos vigentes”. A Boxter afirma que fará apuração interna para apurar o caso, que “não compactua com nenhuma espécie de ilícito” e que as empresas do grupo “operam com a mesma qualidade de atendimento”.

A defesa de Alemão não quis se manifestar, enquanto a de Tonho não foi localizada.

A delação do piloto Felipe Morais foi fundamental para que a PF desmontasse as engrenagens da lavagem de dinheiro do PCC, diz o delegado Costa. Ele compara a história de Morais à do norte-americano Barry Seal, piloto que transportava cocaína para o Cartel de Medellín e se tornou agente duplo a serviço da CIA (Central Intelligence Agency) e, por isso, foi assassinado a mando de Pablo Escobar, em 1986. Para o delegado, ao dedurar os lavadores de dinheiro da maior facção criminosa do Brasil, Morais, detido na penitenciária federal de Campo Grande, corre risco semelhante.

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