Poderia ser na Noruega, mas aconteceu no Brasil. Uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) tramitou rapidamente e de forma indolor no Congresso Nacional, sem acarretar ondas de difamação nas redes sociais ou cadeiradas em nenhum parlamentar. Nem situação nem oposição partiram para os finalmentes. Não houve xingamentos nem ameaças anônimas. Pelo contrário: deputados e senadores de diferentes partidos entraram em consenso. O projeto saiu do Congresso como entrou: na mais absoluta tranquilidade.
Unanimidades como essa costumam ocorrer com projetos de lei que beneficiam o bolso ou a reeleição dos próprios parlamentares. Não foi o caso desta vez – ao menos não que se saiba.
A PEC 26/22 tinha um objetivo simples e específico: permitir que os presidentes e diretores dos tribunais de justiça de grande porte, com 170 desembargadores ou mais, pudessem ser reconduzidos ao cargo (até então, a reeleição era proibida em qualquer tribunal de justiça). Só dois entram nessa categoria: o tribunal de São Paulo, com 356 desembargadores, e o do Rio de Janeiro, com 188. Desses dois, só o do Rio viveu uma tentativa forçada de reeleição, na qual um desembargador, driblando o regramento, tentou obter um novo mandato de presidente. Trata-se de Luiz Zveiter, 69 anos, integrante de uma renomada família de figurões do Judiciário.
Os presidentes e diretores são eleitos pelos próprios desembargadores de cada tribunal, numa votação que ocorre a cada dois anos. O voto é secreto, e vence quem obtiver maioria absoluta. A Lei Orgânica da Magistratura Nacional determina que um mesmo magistrado não pode ser presidente ou diretor do tribunal mais de uma vez. Concluído o mandato, ele perde o direito de se candidatar no futuro, não importa quantos anos se passem.
Zveiter nunca se conformou com a regra. Depois de presidir o tribunal do Rio entre 2009 e 2010, se lançou candidato a um novo mandato em 2014. Conseguiu concorrer graças a uma liminar do ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal. Não venceu a disputa, porém. Em 2016, concorreu novamente e, dessa vez, conseguiu se eleger. Respaldou-se numa resolução interna do Tribunal de Justiça do Rio que passou a permitir a reeleição, contanto que ela ocorresse com um intervalo de dois mandatos.
A Procuradoria-Geral da República, no entanto, protocolou um recurso alegando que a reeleição de Zveiter era inconstitucional. O STF concordou e, ainda em 2016, barrou a manobra eleitoral. Mas Zveiter, que não se dá por vencido, ainda almeja um novo mandato. Dos ex-presidentes do tribunal fluminense, é o único que manifesta esse desejo. A PEC aprovada pelo Congresso, com isso, foi apelidada por integrantes do Judiciário de “emenda Zveiter”.
O texto foi apresentado pelo deputado Christino Áureo (PP-RJ) no final de 2022, pouco depois da eleição presidencial. Homem de confiança do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), Áureo colheu a assinatura de 171 deputados, a maioria deles do PL e de seu próprio partido. A tramitação foi a jato. O projeto aterrissou na Câmara no dia 1º de novembro; no dia 9, já estava aprovado em segundo turno pelo plenário, com 354 votos a favor e 46 contra. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), fez a PEC tramitar em regime especial, evitando, com isso, debates alongados nas comissões temáticas. Os 354 votos favoráveis uniram esquerda e direita, com deputados do PL de Bolsonaro e do PT de Lula.
Reagindo à aprovação relâmpago da PEC, o próprio Tribunal de Justiça do Rio, presidido atualmente por Ricardo Rodrigues Cardozo, decidiu se blindar. Num recado claro ao Congresso, aprovou uma norma interna vedando a recondução de desembargadores à presidência. A iniciativa, no entanto, foi ignorada pelos parlamentares, e o processo avançou no Senado.
Em novembro de 2023, o texto chegou à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), presidida pelo senador Davi Alcolumbre (União-AP). Tramitou com agilidade notável, patrocinada por Flávio Bolsonaro. Dois senadores ouvidos pela piauí relatam que o filho mais velho de Jair Bolsonaro fez um acordo com Alcolumbre. Segundo eles, em troca da tramitação de alguns projetos de seu interesse, Flávio prometeu onze votos para o senador amapaense na eleição para a presidência do Senado, em fevereiro de 2025.
Ao chegar à CCJ, o projeto sequer foi discutido. Teve aprovação imediata, numa votação simbólica. Relator da PEC, o senador Weverton (PDT-MA) argumentou que a medida traria “eficiência” ao Judiciário, e que ela atendia “ao mais alto interesse público”. Os senadores Flávio Bolsonaro, Davi Alcolumbre e Weverton foram procurados pela piauí, mas não quiseram conceder entrevista.
Quando a PEC chegou ao plenário do Senado, para aprovação final, o Tribunal de Justiça de São Paulo resolveu também entrar na briga. Enviou um ofício ao presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), marcando posição contra a proposta de reeleição. Uma “recondução sucessiva” poderia ferir os “ditames democráticos”, afirmou o presidente do tribunal, Ricardo Anafe.
O senador Eduardo Girão (Novo-CE), embora seja alinhado à família Bolsonaro, foi um dos poucos a se mostrar contrariado com o projeto. “Eu vejo com muita preocupação esse movimento do Senado brasileiro de, tendo tanta coisa importante para deliberar, colocar uma PEC dessas, que é, repito, casuísmo e que pode abrir precedentes.” Flávio Bolsonaro respondeu dizendo não haver “nenhuma espécie de favorecimento” e que a PEC era uma mudança bem-vinda, já que, com apenas dois anos de mandato, “é quase impossível se fazer alguma reforma estruturante” nos tribunais. “Então eu quero só tranquilizar vossa excelência, porque não tem absolutamente nada de absurdo, de anormal, de fora da caixa, com uma PEC como essa. Mais uma vez, é porque é a realidade do meu estado do Rio de Janeiro”, disse o senador.
Romário (PL-RJ), seguindo Flávio, tornou-se um pregador em favor do projeto. “É uma PEC importante”, defendeu. “Se forem perguntar ao Rio de Janeiro, não só o STJ [Superior Tribunal de Justiça], mas todas as entidades relacionadas a esse tema são a favor.” Um senador da base governista que votou a favor do texto contou à piauí ter sido procurado sucessivas vezes por Romário. Alcolumbre, segundo ele, também telefonou pedindo apoio à PEC.
“Eu estava viajando e o Romário ligava, insistente”, diz o senador, que afirma ter votado “sim” graças à insistência do colega. Ele disse não saber do envolvimento de Flávio Bolsonaro com o assunto. “Isso é uma novidade. O Romário jamais mencionou o interesse do Flávio.” Embora o governo não tenha dado orientação sobre como a bancada deveria votar, todos os senadores petistas foram favoráveis à PEC, incluindo o líder do governo, Jaques Wagner (PT-BA), que não respondeu aos contatos da reportagem.
Um ministro do STJ, que conversou com a piauí sob a condição de ter seu nome mantido em sigilo, disse que foi consultado por parlamentares sobre a PEC. Segundo ele, o tema não era consensual entre seus colegas, diferentemente do que alegou Romário. Ele conta que causou incômodo o fato de um assunto interno de dois tribunais ter sido decidido no âmbito legislativo.
O assunto também ganhou a antipatia de ministros do Supremo. Nos bastidores, tão logo a PEC foi promulgada pelo Senado, na terça-feira (24), já se ventilava a hipótese de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) barrar o projeto e restaurar a regra que impede a reeleição. A Procuradoria-Geral da República, que tem poder de apresentar ações desse tipo, está analisando o caso.
Procurado pela piauí, Romário não quis comentar o episódio. O desembargador Luiz Zveiter, por sua vez, não foi localizado até a publicação desta reportagem.
No governo de Jair Bolsonaro, indicações ao Judiciário sempre passaram pelo crivo de seu filho mais velho, justamente o mais enrolado com a Justiça. O interesse de Flávio pelos tribunais fluminenses, em particular, se deve às denúncias sobre o esquema de rachadinha em seu gabinete na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). Coube ao órgão especial do Tribunal de Justiça do Rio analisar as denúncias contra ele. O grupo era composto por 25 desembargadores, que acabaram arquivando o caso. Entre eles, estava Luiz Zveiter, presidente do órgão especial na ocasião. O arquivamento foi chancelado, mais tarde, pelo STJ e pelo STF.
As vontades de Flávio, contudo, não são as únicas que estão em jogo. A escolha do presidente do Tribunal de Justiça do Rio mexe com interesses de figuras graúdas do capitalismo brasileiro. Até a aprovação da PEC, a única candidatura que havia sido registrada para a eleição deste ano, marcada para novembro, era a de Ricardo Couto, desembargador que tem prometido, nos bastidores, moralizar as varas empresariais do estado. Nelas, há magistrados investigados por corrupção, com processos abertos na Procuradoria-Geral do estado e no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Dois deles cuidam de duas recuperações judiciais que estão entre as maiores do país: a da Oi e a das Lojas Americanas.
Outras recuperações judiciais em curso no Rio de Janeiro envolvem grandes petroleiras e construtoras. O escritório de advocacia Zveiter, pertencente ao ex-deputado federal Sérgio Zveiter, irmão do desembargador Luiz Zveiter, é uma das principais bancas especializadas em recuperação judicial no estado. O escritório, além disso, é conhecido por atuar como administrador judicial de empresas em processo falimentar, como as Americanas.
De volta ao páreo graças à PEC, Zveiter planeja encerrar sua carreira de desembargador à frente do tribunal. Suas promessas de campanha foram enviadas para os colegas desembargadores em agosto, antes da votação no Senado. Continham várias benesses: aumento dos auxílios alimentação, educação e locomoção dos juízes; a criação de um “adicional de formação”, que recompensa os magistrados com pós-graduação; reembolso de despesas médicas e odontológicas não cobertas pelo plano de saúde; ajuda de custo para capacitação acadêmica; auxílio para a compra de equipamentos tecnológicos; adicional de produtividade; auxílio de até 15 mil reais para a aquisição de livros; e muito mais. Tudo, segundo Zveiter, para aumentar a “eficiência” do tribunal, sem perder de vista a “responsabilidade no uso dos recursos públicos”.