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    FOTO: CRISTIANE SENN

questões cinematográficas

Pedro Costa: a rotina dos dias de trabalho

A fala de Pedro Costa, como um labirinto sinuoso e finito, faz com que voltemos sempre para um mesmo lugar via um caminho diferente

Barbara Alves Rangel | 23 fev 2017_18h37
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Se bem visto, o dia não treme.
Cesare Pavese

Entre 8 e 12 de fevereiro, houve em Curitiba uma mostra dedicada à obra de Pedro Costa e Víctor Erice, que incluiu dois workshops: um com Costa e outro com sua colaboradora Patricia Saramago, com quem ele montou No quarto da Vanda, Onde jaz teu sorriso? (estes em parceria com Dominique Auvray) e Ne change rien. Em quatro manhãs, cada um deles discutiu seus métodos de trabalho, em dois encontros de quatro horas. A programação, que pode ser vista aqui, ainda incluía debates com a crítica espanhola Clara Sanz, também realizadora e especialista na obra de Erice.

É muito difícil dizer algo sobre os filmes de Pedro Costa que já não tenha sido dito pelo próprio em entrevistas ou por outros como Jacques Rancière, Tag Gallagher e João Bénard da Costa. A fala do realizador, como um labirinto sinuoso e finito, faz com que voltemos sempre para um mesmo lugar via um caminho diferente. A impressão deixada após dois dias de encontros é que também a trajetória de Costa é labiríntica, assim como ele definiu a geografia do bairro das Fontainhas em um debate sobre Vanda: ‘onde a entrada por uma casa pode significar a passagem para outras’. Há ali uma obra – um conjunto que espelha um processo contínuo onde se observam ecos de um trabalho anterior no seguinte. Um exemplo são as cartas das pessoas de Cabo Verde, encomendas dos participantes do filme Casa de Lava para seus parentes emigrados em Lisboa. Assim Costa conheceu Fontaínhas, locação de Ossos. E a partir de um comentário de Vanda, do incômodo dela e da gente do bairro com a estrutura de filmagem ali montada  – “porque não fazes um filme  mais simples?” – surgiu o ímpeto para se fazer No quarto da Vanda

<i>No quarto da Vanda</i> (esquerda) e <i>Onde jaz teu sorriso?</i> (direita)
No quarto da Vanda (esquerda) e Onde jaz teu sorriso? (direita)

Em um curso intensivo que ministrou no Japão, Costa disse “a meu ver, há alguns filmes que são como portas, ainda que nele não hajam portas, filmes que se assemelham a portas que não permitem nossa entrada como protagonistas. Mantemos-nos à margem. Vemos um filme e somos alguma coisa diversa dele (…) Essa porta é absolutamente necessária. Não é uma peça de propriedade privada, isto é, não é fechada de uma maneira autoritária. Podemos abri-la ou fechá-la, a escolha é nossa”[1]. Nesse mesmo texto, é mencionado um filme de Kenji Mizoguchi, A rua da vergonha. Seu título original, Akasen chitai, significa em japonês “a zona da linha vermelha”, em referência à prostituição existente na região de Tóquio onde se passa o filme. Ali há sempre muitas portas, umas tantas que se abrem e outras muitas que se fecham e que aos poucos vão revelando tanto a estrutura do filme quanto as dinâmicas de poder entre as protagonistas, empregadas de um bordel do bairro. De forma semelhante, nos filmes de Costa – penso muito em Onde jaz teu sorriso?, No quarto de Vanda, e Juventude em Marcha – há muitas portas por onde passam seus personagens, onde se encostam, onde se sentam, por onde as pessoas vão e vêm, desenvolvendo um raciocínio, como vemos Jean Marie-Straub andar e divagar em Onde jaz… São atos que revelam e escondem ações, como ele mesmo admite: às vezes o que não é dito é mais importante do que o que é dito.

<i>A rua da vergonha</i>, de Kenji Mizoguchi
A rua da vergonha, de Kenji Mizoguchi

Na fala de Costa, há diversas portas fechadas. Ele não fala sobre a vida pessoal, talvez em um gesto para evitar malabarismos interpretativos que associem seus filmes a sua trajetória íntima. Ao ser perguntado sobre seu método de direção de atores, é discretamente reticente. Tive a impressão que ele não disserta profundamente sobre o tema em público, como quem evita ou mesmo resiste a qualquer tentativa de imitação.  Resistência foi uma palavra que ele usou com uma certa freqüência ao longo do workshop.

Diante dos participantes, ele repetiu também palavras como rigor, trabalho, justeza, rotina, Straub-Huillet. Muito Straub-Huillet, principalmente sua experiência em Onde jaz o teu sorriso?, filme em que ele acompanha a rotina de Straub e Danièle Huillet na montagem de Sicília!. Há um momento neste filme, quando o casal de diretores discute sobre o ponto de corte de um plano e Straub diz que ‘não é bom procurar uma solução intermediária – como a democracia, não funciona’. Em um outro, ao relatar um jantar entre Luis Buñuel e Nicholas Ray, Straub faz referência ao espanto de Buñuel ao ouvir de Ray que, em Hollywood, um filme de um cineasta nunca poderia custar menos que seu filme anterior. Nota-se que um tópico de preferência de Costa são os métodos de produção – há uma clara recusa à prática ‘clássica’ do meio, que envolve uma grande equipe e orçamentos vultuosos. Aqui não houve solução intermediária, mas uma ruptura com estas engrenagens. A partir de No quarto da Vanda, reduziu-se a equipe de filmagem, onde participam pouquíssimos colaboradores.

Não há transcendência ou mistificações, há a busca de um trabalho que seja justo com aqueles que retrata, no qual a pessoa a filmar é tão importante quanto aquela que vende couves. Um ofício como outro qualquer, cuja atenção ao gesto e ao detalhe de uma cena durante a montagem é a mesma que um alfaiate emprega à costura, ao detalhe de uma roupa, como disse Costa ao evocar a profissão do avô. Fundamental é também o tempo. Nas produções vultuosas há pressa, pois há muito dinheiro envolvido, há uma equipe grande a ser paga, com um cronograma estrito a cumprir. Após Vanda, o que vemos nos filmes de Costa é o resultado de um trabalho partilhado entre realizador e ‘personagens’ cujo efeito genuíno só é possível com o estabelecimento de uma rotina de trabalho e com construção de uma intimidade, processo que ocorre a seu tempo – no caso de Vanda, três anos de filmagens e de intensa vivência nas Fontaínhas.

No final do primeiro dia, Costa evocou uma fala de Thom Andersen sobre Cavalo dinheiro, para quem o filme nos diz “você acha que sabe algo sobre solidariedade, mas você não sabe”. O que era intuído ao ver os filmes de Pedro Costa se torna mais claro ao longo destes encontros: seus filmes são marcados por princípios rígidos e discretamente políticos. Dentre eles, a recusa da empatia sugestionada para que o espectador se reconheça naqueles personagens. Estamos sempre a uma distância muito próxima do que vemos mas não há conciliação nem redenção. Ainda em torno da fala de Andersen, para Costa “ser solidário é partilhar qualquer coisa que não se pode partilhar.” Nesta concepção de cinema, a porta fechada é o limite e não cabe a nós ultrapassá-lo.

[1] “Uma porta fechada que nos deixa imaginar”, transcrição das falas de Costa neste curso, presente no catálogo O cinema de Pedro Costa, editado em 2010 por ocasião da mostra dedicada ao seu trabalho nos Centros Culturais do Banco do Brasil no Rio de Janeiro, em Brasília e em São Paulo.

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