Pedro Costa – reinventor do cinema
Para sermos fiéis ao cinema de Pedro Costa precisamos evitar qualquer grandiloquência. O mais indicado para saudar a retrospectiva integral de seus filmes, iniciada dia 1º em São Paulo, seria ficar em silêncio, na penumbra, por longo período, buscando um estado de concentração absoluta. Por outro lado, é preciso que sejamos claros: trata-se de um reinventor do cinema.
Para sermos fiéis ao cinema de Pedro Costa precisamos evitar qualquer grandiloquência. O mais indicado para saudar a retrospectiva integral de seus filmes, iniciada dia 1º em São Paulo, seria ficar em silêncio, na penumbra, por longo período, buscando um estado de concentração absoluta. Por outro lado, é preciso que sejamos claros: trata-se de um reinventor do cinema.
A partir de amanhã, dia 11, será a vez dos cariocas – e de 14 a 23 de setembro dos brasilienses – terem o privilégio de conhecerem a obra desse cineasta singular, inclusive seu filme mais recente, “Ne change rien”, concluído em 2009 e creio que só exibido antes no Brasil em versão preliminar com 13’ de duração. A programação completa e mais informações estão aqui.
A primazia nacional no acesso ao conjunto dos filmes de Pedro Costa coube, na verdade, aos frequentadores do “forumdoc.bh” em 2007, graças à iniciativa do formidável grupo reunido na Associação Filmes de Quintal, promotora do evento. Nessa ocasião, além da entrevista do diretor incluída no catálogo em um CD, a revista semestral “Devires” (V.5 n.1 jan/jul 2008), publicada pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, dedicou um dossiê a Pedro Costa, incluindo artigos originais de brasileiros e colaborações traduzidas, formando um precioso lastro de reflexão crítica.
Apesar dessa iniciativa pioneira, e da exibição no ano seguinte, em Salvador, de 4 filmes de Pedro Costa, o incansável professor da UFRJ Denilson Lopes ainda pode incluir, em 2009, numa mostra chamada “Jovens Desconhecidos”, a exibição de 5 filmes de Pedro Costa, na época já com 50 anos de idade. Sinal de que, mesmo tendo estreado na direção em 1989 e tido seus filmes selecionados para os festivais de Veneza e Cannes, Pedro Costa continuava sendo pouco conhecido no Brasil.
A retrospectiva atual é uma contribuição significativa para ampliar o conhecimento de um cineasta que, a partir de “No quarto da Vanda” (2000), redefiniu o conceito de realismo no cinema, o que não é pouca coisa – evento histórico cujos desdobramentos ainda estão por serem avaliados.
Além dos filmes de Pedro Costa, acompanha a retrospectiva um catálogo com textos inéditos, outros já publicados no dossiê da revista “Devires” mencionado acima, e alguns incluidos em “Cem mil cigarros”, livro de referência básico sobre o cineasta, editado em Portugal no ano passado pela editora Orfeu Negro. Integram ainda a mostra 4 filmes realizados por outros diretores, escolhidos por Pedro Costa, que permitem vislumbrar o cinema que o interessa.
Marco decisivo na sua filmografia, “No quarto da Vanda” resulta da superação da crise com o modelo dominante de produção que prevaleceu em “Sangue” (1989) e “Casa de lava” (1994), seus dois primeiros filmes. Em “Ossos” (1997), mesmo tendo descoberto o espaço circunscrito do antigo bairro de Fontainhas, em Lisboa, e decidido desligar os refletores usados para iluminar as cenas, ainda não se completara a ruptura com os preceitos estabelecidos para fazer um filme.
Liberado do peso dos seus filmes anteriores, Pedro Costa diz a Cyril Neyrat, no livro que acompanha a edição em DVD de “No quarto da Vanda” na França ( Nantes: Capricci, 2008 ), que o filme talvez venha de um período “que podemos chamar de ‘punk’”, incluindo o quarto da adolescência, “a poesia, Pessoa, Rimbaud, o rock, as cumplicidades, os sonhos de mudar as coisas ou de não mudar absolutamente nada. […] ‘Vanda’ vem em grande parte da música, quer dizer dessa crença profunda em uma energia que fazia para mim, aos 20 anos, os ‘Sex Pistols’ ou ‘Wire’ serem equivalentes a Straub e Godard, ou Ford e Tourneur, os clássicos.”
A partir do aprendizado com Godard-Straub, Pedro Costa entende que
“não se trata de ‘mise en scène’, mas na verdade dos meios, da organização, das relações humanas, da maneira de se apropriar de um espaço. […] meus anos de assistente, e de filmagem dos meus próprios filmes, me tinham deixado muito desgostoso. Eu tinha visto crimes, massacres, ou pequenos fracassos. Realizadores que entravam em pânico, que sofriam. O horrível sistema que todo mundo conhece, e que é sempre o mesmo, do ‘é preciso fazer, é preciso filmar, não temos dinheiro nem tempo’, com pessoas desinteressadas. Houve um choque, muito claro: um filme deve interessar às pessoas que o fazem, e que depois o veem.[…] Eu sentia sempre um fingimento, não tanto na frente da câmera, mas atrás. Na frente, ainda não pensava. A ficção estava atrás, as marcações, as ‘mise en scène’, as intrigas…Havia ficção demais atrás e talvez menos que o necessário na frente, ou não a boa, ou a mal regulada. Eu acreditava um pouco em mim, eu sabia que tinha coisas a dizer, lugares a encontrar, pessoas. Eu acreditava nisso. Mas atrás da câmera, era realmente um problema.”
[…]
“Havia um mundo externo de produção, de estrangeiros, que me incomodava. Eu queria estar lá com as pessoas, mas de outra maneira. E o cinema não passava no bairro, nenhum filme podia ser feito lá. Essa é a força de ‘Vanda’: era preciso encontrar um filme que não fosse um filme, pelo menos não como ‘Ossos’. […] Impunhamos um aparato enorme a um bairro já explorado por todo mundo, que não precisava ser ainda mais explorado pelo cinema. Já há a polícia, o desemprego, a droga, os brancos…e o cinema? Além disso, uma filmagem tem um lado muito ‘policial’. Chegamos como a polícia, e depois nos vamos como a polícia.”
[…]
“Eu me libertava de um produtor, e agora me libertava ainda por cima do diretor de fotografia.[…] Acontece que passei para vídeo por que é prático, mas em ‘Vanda’ ou ‘Juventude em marcha’ (2006), isso vai além do vídeo, é uma maneira de fazer um trabalho em imagens e sons.”
A relação direta dessa crise com os descaminhos do cinema brasileiro dispensa comentários.
A oportunidade de ver o cinema de Pedro Costa, e a partir dele pensar não só nos filmes em si mas também em tantas coisas que nos dizem respeito, deve ser saudada, ainda que em surdina.
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