A carta em papel foi entregue pessoalmente pela professora de ensino superior ao gerente de uma agência da Caixa Econômica Federal no Rio Grande do Norte. Era 2005, cerca de uma década antes do boom de smartphones e aplicativos bancários. A mulher saiu do trabalho e foi até o endereço físico da instituição reclamar de quatro transações financeiras. No documento escrito à mão, A.C.F., hoje com 68 anos, registrou: “Venho contestar as transações abaixo discriminadas.” Depois, complementou com ar de espanto: “Por terem sido feitas por mim, nem sei como isso pode ter ocorrido.”
Ela não sabia, mas a Polícia Federal (PF) acabou descobrindo: a retirada online do dinheiro da conta da docente potiguar foi feita por uma quadrilha especializada em fraudes bancárias, cujo núcleo ficava em Goiânia, cidade a mais de 2,6 mil km dali. Entre os presos por elo com o bando, estava o goiano Pablo Marçal, ex-coach que é candidato à prefeitura de São Paulo neste ano pelo PRTB.
“Fiquei muito nervosa”, contou a educadora, localizada na semana passada pela piauí, quase vinte anos depois da ocorrência. Segundo ela, as operações que varreram R$ 4.650 de suas economias – R$ 13 mil nos dias de hoje, em valores corrigidos pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (IPCA) – foram feitas de madrugada e notadas pela própria Caixa, que a chamou para ir até a agência, onde ela escreveu a carta, que terminava solicitando “ressarcimento e providências cabíveis”. A docente pediu que fossem usadas suas iniciais na reportagem, por receio de se expor.
Foram quatro desfalques: de R$ 2 mil, R$ 1 mil, R$ 340 e outro de R$ 1.310. Como mostram os extratos aos quais a reportagem teve acesso, o salário dela caiu no dia 1º. Depois, nos lançamentos posteriores, foi possível verificar a cobrança de juros, pagamentos de boletos, como o de uma conta telefônica, tudo feito legitimamente por ela. A partir do dia 6, os valores do golpe começaram a engolir os recursos restantes, até que o saldo da conta passou de positivo para negativo, antes de os principais compromissos do mês serem quitados.
“Foi muito complicado. Eu precisava pagar contas e não tinha como pagar. Pegaram quase todo meu salário”, lembrou. O ressarcimento do dinheiro demorou mais de dez dias, mas a quantia foi devolvida pelo banco, que identificou os acessos indevidos em sua conta. Como o assunto acabou tendo um desfecho favorável, a professora não acompanhou os desdobramentos do caso nem tomou conhecimento dos vigaristas que se apossaram de seus rendimentos – incluindo aí, segundo a PF, o próprio Marçal. “Eu não sabia que tinha sido ele, ou uma quadrilha da qual fazia parte, mas sabemos que existem várias denúncias contra ele”, disse.
A docente lembra de ter ido até a agência logo após a fraude, no começo de julho de 2005. No dia 18, recebeu os valores furtados de volta. Outras cartas escritas à mão, anexadas à investigação da PF, foram feitas no mesmo período por outras vítimas. Quase dois meses antes da prisão do bando, e de Marçal, detido temporariamente somente em 31 de agosto daquele ano, aos 18 anos. Foi solto em 2 de setembro.
A instituição financeira havia sido alvo de outros grupos criminosos em meses anteriores em diversos estados. Por isso, já mantinha contato com as autoridades e estava monitorando operações suspeitas, devolvendo o dinheiro para os clientes quando identificava o padrão de trabalho dessas quadrilhas. Os bandidos estavam tendo as conversas telefônicas interceptadas pela polícia com frequência, em inquéritos tocados de forma simultânea, diante de infindáveis ramificações que eram descobertas pela PF, por todo o Brasil.
A ligação entre o dinheiro que saiu da conta da docente e a quadrilha veio de um material apreendido com um alvo citado nos grampos como Jony. Ao aprofundar a apuração, os policiais descobriram que o nome dele não era Jony: era Jonatas Rodrigues Borges. Ele foi preso pela PF e confessou a participação no esquema. No dia da operação, ao encontrá-lo, a polícia revirou duas quitinetes em Aparecida de Goiânia.
Lá, estava uma série de aparelhos de informática em plena atividade, capturando endereços de e-mail pela internet e enviando mensagens, automaticamente e aleatoriamente, com programas maliciosos que infectavam computadores, roubando senhas e identificações bancárias. Eram essas as informações usadas, segundo a PF, para transferir dinheiro para outras contas comandadas pelos bandidos. Com Borges, havia ainda um caderno espiral com uma lista de nomes, telefones e endereços.
Com base em dados extraídos desse material, os delegados começaram a oficiar as instituições financeiras. Receberam relatórios mostrando que contas de pessoas mencionadas nos registros de Borges receberam recursos vindos de correntistas que reclamaram, semanas antes, do sumiço de recursos de suas contas.
Era a materialização do golpe, chave para levar o bando para o banco dos réus em primeira instância. O juiz Paulo Augusto Moreira Lima registrou que a motivação de Marçal foi o “ganho fácil de dinheiro”, o que trouxe consequências “graves”, “pois as instituições bancárias arcaram com o total do prejuízo” e as vítimas tiveram o “transtorno de ordem psicológica”, por terem que “passar pela desgastante e humilhante tarefa” de “dar explicações de que não foram elas a realizar tais pagamentos.”
O magistrado assinalou ainda que as circunstâncias do crime não favoreciam o goiano, pois ele “utilizava sua profissão como meio para a prática criminosa”. No dia 12 de abril de 2010, Marçal foi condenado a quatro anos e cinco meses de reclusão, em regime semiaberto, por furto qualificado.
O processo se arrastou até ser apreciado, em 2018, pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) e, na segunda instância, a pena foi extinta por conta da lentidão do processo até ser apreciado. Os prazos eram mais curtos devido à pouca idade do goiano. A condenação original de Marçal precisaria ser analisada em até doze anos pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) se ele fosse maior de 21 anos, mas na faixa etária dele esse tempo cai pela metade.
Procurado pela piauí, o candidato não respondeu aos questionamentos enviados sobre seu papel no grupo criminoso nem sobre sua relação com os comparsas. Quando esse caso é citado, ele vem reafirmando que não há condenação.
Em seu depoimento no caso, Borges assumiu que encontrou Marçal diversas vezes antes de ser preso. Segundo a investigação, o comparsa chegou a morar em um apartamento na rua 68, no Centro de Goiânia, escritório de Danilo de Oliveira, chefão do bando, que mantinha ali uma base do grupo, inicialmente abrigando seis computadores.
Nas interceptações telefônicas, o postulante pelo PRTB foi gravado pedindo a chave desse apartamento para Oliveira. Na mesma conversa, o líder do esquema dá uma bronca no agora político, dizendo que ele estava produzindo listas ruins de e-mails. Ou seja, estava juntando muitos endereços ociosos e poucos em atividade, efetivamente usados pelos donos.
O próprio Marçal confirmou, segundo os autos, ter estado na unidade da rua 68 para instalar novos componentes em máquinas usadas pelos invasores de contas alheias. Ou seja, o dinheiro que saiu da conta da professora do Rio Grande do Norte, apresentada no começo deste texto, passou pelas contas relacionadas a Borges, que, por sua vez, morou no apartamento que Marçal visitava para turbinar o sistema digital.
Na época, o candidato ao governo municipal de São Paulo entregou informações sobre os comparsas aos policiais, com detalhes incriminantes. Quando foi interrogado em 31 de agosto de 2005, disse, no entanto, que apenas prestava serviços de informática, reunindo e-mails para atividades de divulgação.
Nos autos, há a identificação de pelo menos quinze pessoas ou empresas que contestaram transferências cruzadas com atos dos bandidos, em cidades distintas de Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Rio Grande do Norte e do Sul. Entre os bancos preferenciais da quadrilha, estão a Caixa, o Banco do Brasil e o Bradesco.
Os alvos empresariais foram pequenas construtoras, firmas de contabilidade e até uma fabricante de palha de aço. Um proprietário desses estabelecimentos contou que, assim como a educadora, levou o golpe na madrugada. “Estava dirigindo para Brasília quando alguém do banco me ligou falando que tinham tirado R$ 10 mil da conta da minha empresa”, disse M.E. O montante, hoje, equivaleria a R$ 28 mil. Segundo ele, ouviu da atendente que o dinheiro já havia sido transferido e sacado. “Não sei se foi o Pablo Marçal. Só sei que um malandro lá conseguiu sacar R$ 10 mil em Goiânia.”
Entre as pessoas físicas que tiveram os dividendos surrupiados, há pessoas pobres. G.M.G, de 71 anos, moradora do município gaúcho de Canoas, também confirmou ter sido alvo da quadrilha, que lhe tirou R$ 660 ou R$ 1,8 mil corrigidos pela inflação, montante que, disse à reportagem, fez falta naquele momento.
A investigação registra outra carta, de um correntista da cidade de Catalão, em Goiás, escrita em 24 de agosto de 2005 com caligrafia sinuosa e um português engasgado: “Eu descobri, depois que me ligaram falando que tinha voltado um cheque meu, ai eu tirei o extrato, e constatei que tinha sido feita uma transferência da minha conta.” O texto escrito por R.S.P reclamava por R$ 790, ou R$ 2,2 mil em valores corrigidos, deixando bem claro ao banco seu álibi, mas, especialmente, sua simplicidade: “E eu nunca fiz nenhuma transferência via internet ou em terminal.”