Há algum tempo a revista Piauí publicou um ensaio do sociólogo alemão Wolfgang Streeck, sobre a mudança decisiva que marcou as sociedades capitalistas a partir do fim dos anos 1960: a transformação do em consumidor. Em brilhante prosa, o alemão narra como o capitalismo se reinventou nesse momento, superando de forma surpreendente um momento de verdadeiro impasse, de crise. Em linhas gerais, depois do período de reconstrução do pós-guerra, o ciclo de consumo parecia mais uma vez ter se esgotado. O avanço da máquina produtiva, pelo menos entre os países mais ricos, parecia na iminência de ser interrompido. E o motivo era simples: saturação da demanda. Operando dentro de uma estrutura ainda fordista, o mercado fornecia uma gama restrita de produtos massificados. Streeck comenta que a diferença entre os produtos fornecidos nos países capitalistas e nos comunistas restringia-se ao prazo de entrega (mais rápido nos países capitalistas), relembrando a clássica piada de Henry Ford sobre a variedade de seus produtos: “disponível em qualquer cor, contanto que seja preto”. A maior parte do que era produzido atendia a necessidades básicas, e era voltado a um público que, na esteira do grande trauma da guerra, cultuava valores como estabilidade, segurança e durabilidade. Uma geladeira era feita para durar décadas. Um fogão idem. Tratava-se de uma cultura ainda estranha ao princípio da “obsolescência programada” no qual operamos hoje. Chegou o tempo em que todos os lares já tinham geladeira e fogão. Quase todo mundo que podia, já tinha seu ford preto. E agora? Como disse David Harvey, “capitalismo é crescimento”; como, então, iniciar um novo ciclo de consumo capaz de alavancar a economia?
Um avanço tecnológico foi capaz de mudar a dinâmica produtiva e, consequentemente, o próprio sentido social do capitalismo. A microeletrônica facilitou decisivamente a programação das máquinas industriais. Trouxe versatilidade e flexibilidade para a linha de produção. Tornou os ajustes mais finos, mais rápidos e precisos. Tudo isso se traduziu numa explosão de variedades, cores e tipos. A partir de agora, a produção podia ser direcionada a nichos específicos; em outra palavras, podia cada vez mais ser individualizada. Depois da massificação tediosa do fordismo, uma enxurrada de produtos novos e diferenciados passou cada vez mais a definir a identidade de cidadãos que passaram a se ver, sobretudo, como consumidores. Sedenta de novas oportunidades, a pauta produtiva logo se desloca dos bens básicos para se concentrar nos supérfluos – não nas necessidades, mas em algo mais fugidio, com potencial de expansão infinita, como prega o evangelho do capitalismo: os desejos. Nas palavras de Streeck, tal momento representou “um gigantesco passo à frente no processo de invasão da vida social pelas ‘forças de mercado sob o capitalismo”. Muito já se falou desse momento, sobretudo pela ironia, pelo caráter contraditório que está embutido nele. Pois é nesse momento que a defesa das liberdades individuais, do direito à diferença, da reivindicação de não conformidade, a recusa ao padronizado, e o acirramento das tensões entre indivíduo e sociedade que marcou tão profundamente a geração 1960, ganha contorno e visibilidade no ato do consumo – ou seja, é abocanhado pelo mercado. Em outras palavras: por um momento, o consumo ganha uma conotação política avançada. Como escreveu Lorenzo Mammì, para a geração 60 não havia qualquer problema em ser ao mesmo tempo anticapitalista e consumista – “capitalista no sistema, mas anticapitalista no desejo”. Os estudantes que se unem aos operários nos protestos de maio de 1968, insurgindo-se contra a lógica da exploração capitalista, são também os consumidores dóceis que, diferenciando-se do mundo cinza dos pais, afirmam um novo estilo de vida comprando produtos cada vez mais específicos, numa conciliação entre massificação e singularidade.
E o que tudo isso tem a ver com a música, e talvez com as artes em geral? Interessa reter a sugestão feita por Streeck de que a transição de uma “economia das necessidades” para outra de “atendimento dos desejos” significava a reformulação de um mercado centrado na oferta para um mercado cada vez mais voltado para a demanda. Passamos de um mercado centrado no vendedor para um mercado centrado no comprador. O mercado que antes se empenhava em oferecer novidades, tentando com elas captar ou criar o desejo dos consumidores (ou do público, como costumavam ser vistos), aos poucos torna-se o mercado que tenta simplesmente detectar demandas já existentes, talvez latentes, suprindo-as diretamente. O primeiro tende ao propositivo, e comporta, desse modo, uma dose maior de risco; o segundo quer se acomodar ao que já existe, capitalizando diretamente sobre isso. O acirramento da racionalidade econômica, a necessidade de prever e controlar ao máximo o resultado dos investimentos (fosse de dinheiro, tempo ou energia), restringiu brutalmente o campo de experimentação dentro do mercado. Na cultura, o efeito foi desastroso. Pesquisas de tendência e de marketing, de confirmação complacente do que já existe, tentativas de captar na fonte o desejo do consumidor médio, se impuseram sobre os riscos inerentes ao ato criativo, ditando um novo rumo para a produção cultural. O tão celebrado casamento entre alta invenção artística e mercado, que deu a tônica no Brasil e em grande parte do mundo durante a década de 1970, foi aos poucos sendo desfeito. Um filme, uma novela, um disco, uma exposição, são investimentos que precisam ter seu retorno garantido. A estrutura amarrada já não permite que se corram riscos. Tudo o que é da ordem do ambíguo, do contraditório, do complexo e irredutível vai sendo bloqueado. Há um paralelismo entre as exigências de retorno financeiro cada vez mais rápido da indústria cultural e o efeito sensorial cada vez mais imediato e direto, excitante e não-reflexivo, dos blockbusters cinematográficos, musicais, literários, etc… É tudo açúcar no cérebro: a resposta fisiológica, de ordem puramente química, é garantida; sem rodeios, sem sutilezas e sem riscos.
Ao buscar a eliminação dos riscos, ao minar o valor das apostas, o mercado expulsou os artistas de sua esfera – um pouco como Platão expulsou os poetas de sua República. Artistas são seres idiossincráticos, imprevisíveis, necessariamente desestabilizadores; antes de tudo, são congenitamente rebeldes. O novo arranjo entre cultura e economia já não tolerava muito a presença deles. As forças do mercado já não estavam dispostas a propor e a bancar experimentos – que sempre podem fracassar. Fórmulas já testadas ganharam precedência. Trata-se, para colocar nos termos de Adorno (e é impossível não pensar nele), de uma ampliação do grau de redundância em detrimento da diferença. O curioso é que o sinal parece ter se invertido novamente, como se dentro da promessa de variedade infinita do consumo e das identidades individuais plasmadas a partir dele tenha se instalado um insidioso e novo “fordismo subjetivo”. Estamos sendo conduzidos na direção de um mundo no qual cada vez mais desejamos todos as mesmas coisas. Onde está a diferença?