Foi preciso quase um quarto de século de negociações para que 195 países do mundo entrassem num consenso sobre como agir para combater o aquecimento global. O resultado das conversas foi o Acordo de Paris, firmado em 2015 e comemorado até pelo Papa (que disse textualmente: “uma demonstração que a humanidade tem capacidade de colaborar pela salvar a Criação”). Nem mesmo as orações do pontífice ajudaram a tirar o documento do paredão. Sem ter tido a chance de completar seu segundo aniversário, o acordo levou um duro golpe na última quinta-feira com o anúncio de que os Estados Unidos vão abandonar o barco, conforme dito ontem pelo presidente americano Donald Trump.
Com a saída de Washington, o compromisso perde um de seus atores centrais. Os Estados Unidos são o país que mais lançou na atmosfera os gases que provocam o efeito estufa e aumentam a temperatura média da superfície da Terra. Sem o esforço americano, vai ficar bem mais difícil alcançar o objetivo principal do tratado – limitar esse aquecimento a 2ºC em relação à temperatura medida no início da Revolução Industrial (em meados do século XIX) e ficar, de preferência, abaixo de 1,5ºC de aumento. A meta que os EUA haviam se comprometido a cumprir no Acordo de Paris – reduzir suas emissões de 26% a 28% entre 2005 e 2025 – representava cerca de um quinto dos cortes anunciados voluntariamente pelos países signatários do documento.
O tratado assinado em dezembro de 2015 marcou o fim de um ciclo iniciado na Eco-92, a reunião de cúpula das Nações Unidas no Rio de Janeiro que discutiu os problemas ambientais. Naquele momento, o aquecimento global já havia sido percebido pelos cientistas como um fenômeno de consequências preocupantes para a humanidade caso nada fosse feito para contê-lo. Nasceu ali a convenção da ONU criada para lidar com a mudança climática – e a série de negociações que culminaram no Acordo de Paris.
O caminho percorrido desde então foi tortuoso e pontuado por avanços discretos, impasses e recuos. Nunca houve muito mistério quanto ao que era preciso fazer para evitar o pior: a humanidade deveria rever a forma como produz e consome energia, ou seja, abandonar progressivamente os combustíveis fósseis em prol de fontes renováveis, como a eólica e a solar. Implementar essa nova perspectiva econômica, porém, se mostrou bem mais difícil do que enunciá-la.
A primeira tentativa multilateral para limitar o aquecimento global – o Protocolo de Quioto, do fim dos anos 90 – não surtiu grande efeito, em grande parte por causa dos próprios Estados Unidos. O acordo previa cortes de emissões apenas pelos países que se industrializaram primeiro, que, por consequência, tinham dado uma maior contribuição histórica para o aquecimento global (essa diferenciação dos países em função de sua contribuição histórica continuou sendo ponto de grande tensão nas negociações da diplomacia climática). Embora se tratasse de metas modestas de redução, Washington não quis aderir a um acordo que não envolvesse ações das grandes economias que vinham crescendo com rapidez – o alvo era a China, que em poucos anos passaria os EUA para se consolidar como maior emissor mundial de gases-estufa.
A reação dos americanos tinha um óbvio viés econômico. A adoção do Protocolo de Quioto “poderia resultar em sérios prejuízos para a economia dos Estados Unidos, incluindo a perda de empregos, desvantagens comerciais, aumento dos custos de energia e consumo”, conforme argumentou uma resolução levada à apreciação do Senado americano em 1998. Qualquer semelhança com os motivos alegados por Trump para abandonar o Acordo de Paris não é mera coincidência – o trecho acima poderia muito bem terminar com um brado de America First!, o bordão piegas usado pelo atual mandatário dos EUA para se eleger e governar. À época, a resolução que rejeitou a adesão americana ao Protocolo de Quioto foi aprovada por 95 votos a 0.
É verdade que o vento virou depois que Barack Obama assumiu a Presidência em 2008. O democrata entendeu que dificilmente conseguiria avanços significativos contra a mudança do clima se dependesse do Congresso – por isso, tratou de fazer o que estava ao seu alcance no âmbito do poder Executivo. Mexeu numa série de normas e regulações industriais que garantiriam mais eficiência energética e menos emissões de gases-estufa. Essas ações eram o esqueleto do plano de metas que a equipe de negociadores de Obama apresentou aos demais signatários do Acordo de Paris, uma espécie de carta de intenções dos Estados Unidos para assinar o documento.
Fácil vai, fácil vem: bastou que os republicanos retomassem a Presidência, em novembro passado, para que Trump começasse um programa de reversão sistemática das ações de Obama. E ninguém poderá dizer que foi pego de surpresa: Trump, que já havia afirmado que o aquecimento global tinha sido inventado pelos chineses para prejudicar os Estados Unidos, afirmou ainda durante a campanha que “cancelaria” o Acordo de Paris caso eleito. Cercado, no primeiro escalão do governo, de executivos ligados aos interesses da indústria de combustíveis fósseis, era uma questão de tempo até que ele levasse sua promessa a cabo.
É sintomático que a decisão de abandonar o Acordo de Paris tenha sido tomada por um presidente tão associado às notícias falsas (ou “fatos alternativos”, como querem seus assessores próximos). O aquecimento global encarna como nenhum outro fenômeno científico o paradoxo dos tempos atuais: apesar de décadas de resultados científicos que se acumulam para reafirmar a realidade da mudança do clima e da gravidade de seus impactos potenciais, as contestações ao consenso dos cientistas continuam a ter oxigênio em setores da imprensa, da sociedade e, temerariamente, da Casa Branca. Não surpreende que, para justificar sua decisão, Trump tenha recorrido, no discurso de ontem, a um punhado de meias-verdades e afirmações discutíveis.
É claro que um acordo assinado por 195 países não pode ser anulado unilateralmente por uma das partes. A saída dos Estados Unidos – que, para cumprir todos os trâmites legais, só deve ser efetivada em 2020 – não exclui os demais países, que devem se empenhar agora para compensar o esforço que Washington deixará de fazer. Havia o receio de que uma decisão como a de Trump pudesse desestimular outros países a cumprirem suas metas. Mas as reações de repúdio à decisão do presidente americano não tardaram a vir de várias frentes, e indicam justamente o contrário.
Emmanuel Macron, recém-eleito presidente da França, foi o primeiro líder mundial a ocupar o vácuo criado pelo anúncio de Trump. Num vídeo em inglês, o estadista europeu afirmou que a decisão do colega americano é um erro e reafirmou o empenho de seu país na luta contra a mudança climática. Macron chamou para si a missão de “tornar nosso planeta grande novamente”, subvertendo o slogan de campanha de Trump (“fazer dos Estados Unidos grandes novamente”).
Nos EUA, um grupo que já reúne trinta prefeitos, três governadores e dezenas de empresários se comprometeu a manter os esforços para o cumprimento das metas, já contando que terão que remar contra a maré do governo federal. O bilionário Elon Musk, fundador da empresa de carros elétricos californiana Tesla, anunciou que deixará os conselhos presidenciais dos quais participa.
As reações inflamadas ao anúncio de Trump e, sobretudo, o vigor dos setores econômicos ligados às energias renováveis indicam que a decisão do americano talvez não seja forte o bastante para frear o processo desencadeado em Paris. Nessa visão otimista, a aliança não estaria ferida de morte. O tempo dirá se o tiro de Trump saiu pela culatra, e quais serão seus efeitos sobre a economia americana. O que já se pode dizer é que a decisão do presidente mais uma vez apequenou os Estados Unidos no cenário das negociações climáticas globais.