Autor do argumento e co-roteirista, Jean-Claude Bernardet também atua, fazendo um dos dois personagens principais, ao lado de João Miguel, em , filme dirigido e co-roteirizado por Kiko Goifman. Nos créditos finais, um raro toque de humor informa que o peixe (do aquário) e a cabra (vista através do periscópio) completam o elenco. Ambos são, de fato, interlocutores privilegiados de Eric (Bernardet) e Elvio (Miguel), dupla que mora no apartamento de um prédio que um deles diz cheirar “a merda” e estar vazio, embora a certa altura façam também referência à presença de um vizinho.
é composto de cenas episódicas, algumas absurdas, outras surreais, mostrando a relação tensa de Eric e Elvio que dizem “não têm para onde ir”. No todo, a filiação teatral a Samuel Beckett é explícita, sendo proclamada também por Goifman em suas entrevistas. Confinados no apartamento, espaço único do filme, há manifestações de afeto, momentos amorosos, distendidos e alegres entre os dois personagens, alguns parecendo divertimentos improvisados, prevalecendo, porém, agressões mútuas odientas e explosões de violência. “Há um monstro nascendo dentro de mim”, diz Elvio.
Espíritos livres, avessos a convenções, Bernardet e Goifman distanciam-se da narrativa clássica. Em não há motivações causais, perfis psicológicos compreensíveis, enredo linear, verossimilhança, inteligibilidade, nos sentidos usuais, nem progressão dramática ou justificativa para Eric e Elvio se manterem unidos. Assistindo ao filme, não há como saber o que os levou a conviverem, nem qual é a força que os aprisiona. Fica claro, apenas, que Elvio cuida de Eric, sendo oprimido por ele, predominando entre ambos um estado de beligerância.
Uma grande diferença de idade separa os dois personagens. O mais velho se expressa de forma elaborada, o outro cultua imagens, entoa cantos e raspa o cabelo. Um é intelectual, o outro místico. O corpo frágil e semi-despido de Eric é uma presença marcante ao longo do filme, sendo percorrido em planos próximos na sequência de abertura. Além da cegueira, há um mal que leva Eric a cair desmaiado no chão do banheiro.
Não é preciso dizer que João Miguel é um grande ator. Bernardet, por sua vez, está longe disso, mas o contraste entre sua atuação amadora e a profissional de João Miguel funciona, no caso, a favor do filme. A entrega de Bernardet ao personagem, incorporando inclusive dados pessoais, comove. Sua fragilidade física é um espetáculo pungente.
é um filme incomum, ainda mais no panorama atual do cinema brasileiro. Ao voltar as costas para as convenções do entretenimento, porém, cai na armadilha do vanguardismo requentado. Pretende inovar, mas acaba sendo obsoleto ao retomar um experimentalismo datado. Sensação agravada pelo paradoxo das situações inusitadas serem encenadas e gravadas de forma convencional. Idolatrar Beckett, ou quem quer que seja, não passa de uma forma de conformismo intelectual. Por que não reconsiderar Beckett criticamente? Goifman parece não perceber que o menos estranho em é Elvio dialogar com um peixe.
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recebeu tratamento desigual dos jornais de São Paulo e do Rio. No dia da estreia (27/8/2015), O Estado de S. Paulo e a Folha de S.Paulo dedicaram ao filme meia página ou mais nas versões impressas. O Globo, por sua vez, publicou nesse mesmo dia, véspera da estreia no Rio, apenas uma breve entrevista de Kiko Goifman, sem mencionar o filme entre as estreias da semana.
A diferença de critério editorial é flagrante. Por ser produção paulista, haverá um resquício de provincianismo na generosidade de espaço dedicado a pelo Estado e pela Folha? Ou O Globo, ao remeter para a versão digital do jornal a crítica ao filme de Daniel Schenker, discriminou o lançamento brasileiro que Schenker considera “interessante”, porém “desigual”, em favor de Hitman, agente 47, filme de ação americano que Mario Abbade considera, em seis linhas acompanhadas do famigerado bonequinho dormindo, “uma sequência interminável e cansativa de cenas de ação genéricas e sem um mínimo de suspense”?
As matérias assinadas por Luiz Zanin Oricchio, no Estado, e Guilherme Genestreti, na Folha, são mais informativas do que opinativas, o que parece mais adequado no dia da estreia. O mesmo vale para o comentário de Cássio Starling Carlos, na Folha, ainda que venha acompanhado de um “muito bom” e duas estrelas.
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Na primeira sessão de na sexta-feira em que estreou (28/8/2015), no Rio, havia três espectadores. Além de um senhor não identificado e deste blogueiro, o outro era o jornalista do Le Monde e ensaísta Paulo Paranaguá, no seu último dia de férias no Brasil. Na saída pairava certa perplexidade no ar. O que haveria a dizer sobre o filme?
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Esta semana, na terça-feira (1/9/1015), o Segundo Caderno do Globo inovou (ou já terá feito isso antes?), ao destacar, em meia coluna, cinco “Filmes nacionais nas telas”, cada um com direito a uma micro foto, meia dúzia de linhas informativas, sem o famigerado bonequinho, incluindo, com exceção de Que horas ela volta?, cinema, sessões e horários nos quais estão sendo exibidos. Os mesmos cinco filmes aparecem também, no pé da página, com outros três, dessa vez com o famigerado bonequinho e um resumo mínimo das críticas publicadas no caderno Rioshow.
O título da coluna destacando Ato, atalho e vento, Campo de jogo, Cativas: presas pelo coração, e Que horas ela volta? classifica os cinco filmes como sendo “nacionais”. Filme “nacional”, no Brasil, é mesmo um gênero, em geral depreciativo. Há tempos, costumava-se ouvir a advertência da bilheteira ao comprar o ingresso: “É filme brasileiro!” Persiste, ao que parece, essa noção que discrimina filmes pelo país de origem e pressupõe que “nacional” se refira apenas a filmes produzidos no Brasil. Ainda será preciso lembrar que filmes americanos, chineses, franceses etc. também são nacionais?