Boquiabertos, papiloscopistas de várias idades se apinhavam ao redor de Joffre Zaluski. O empresário carioca – um homenzarrão de 34 anos, cabelo raspado e dicção cristalina – exibia, orgulhoso, novas tecnologias importadas por sua empresa, a Equipatec. O estande era um dos mais concorridos no XVI Congresso Brasileiro de Identificação Humana, que reuniu, em junho, os maiores nomes da papiloscopia brasileira num hotel perto da Praia do Flamengo, no Rio de Janeiro.
Papiloscopistas são os profissionais treinados para reconhecer e analisar impressões digitais (isto é, as marcas deixadas pelas papilas dérmicas das nossas mãos e pés quando em contato com alguma superfície). Alguns trabalham no ramo da identificação civil, responsáveis pela marca de dedo que cada brasileiro carrega junto ao RG. Outros prestam serviços à polícia, ajudando na resolução de crimes. É um trabalho que, como muitos, se aprimorou nos últimos anos graças à utilização de ferramentas digitais. Daí o alvoroço em torno das novidades trazidas por Zaluski.
Adeus, pó de óxido latente; olá, Tablet 4K Compact. O produto, ao lado de outros, como o Super Spectral, fez sucesso no estande. É um tablet forense turbinado, de um gênero que tem se popularizado nas polícias brasileiras. Desenvolvido pela Forenscope, empresa euro-asiática, é capaz de gerar imagens com 48 megapixels de definição e qualidade 4K, e ajuda a detectar sangue, fluidos e marcas de violência em cenas de crime. Pode ser usado também para analisar fibras e impressões digitais.
O Tablet 4K Compact é útil para os papiloscopistas e para os peritos criminais de modo geral, já que permite encurtar o tempo de análise e incrementar a precisão do trabalho. No Rio de Janeiro, contudo, a Secretaria de Estado de Polícia Civil manifestou interesse em adquirir o equipamento somente para os “papis”, como os papiloscopistas costumam se chamar. Em um ofício enviado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, sugeriu a compra de dois tablets, a um custo total de 830 mil reais, para o Instituto de Identificação Félix Pacheco (IIFP), que concentra os profissionais desse metiê. Os peritos criminais do Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICCE) e os peritos legistas do Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto (Imlap) não foram contemplados.
O ofício rendeu reclamações e inflamou uma rixa de longa data entre papiloscopistas e demais peritos. É algo que acontece não só no Rio, mas nas polícias civis de todo o Brasil. Muitos peritos criminais veem com desdém os colegas da papiloscopia, profissão que não requer um diploma de ensino superior específico (é comum que os papiloscopistas sejam bachareis em direito, ao passo que os peritos criminais precisam de formação nas áreas de química, biologia ou física). Os papiloscopistas, por sua vez, se incomodam com esse desapreço. Por trás do ressentimento mútuo, há uma questão política: peritos criminais de diferentes estados lutam há anos para se emancipar das polícias civis, enquanto os papiloscopistas são uma categoria próxima aos delegados, o grupo mais poderoso da estrutura policial brasileira. No Rio de Janeiro, a Secretaria de Estado de Polícia Civil é, por lei, comandada sempre por um delegado.
Os peritos e os legistas se dizem negligenciados. Acusam a Polícia Civil de favorecer os papiloscopistas, e atribuem isso à má vontade dos delegados. Segundo eles, os chefes de polícia se incomodam com seu trabalho, e, ao prejudicá-los, prejudicam também a investigação séria e imparcial de crimes. Os delegados recusam a ideia de uma perícia criminal independente. Alegam que a perícia não pode existir como uma segunda polícia, pois isso não está previsto na Constituição e criaria novos gastos.
Para provar seu ponto, os peritos citam um episódio ocorrido em 2020. Naquele ano, o então ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro ofereceu à Polícia Civil do Rio 6,6 milhões de reais. A verba, segundo o ofício do Ministério da Justiça , tinha o objetivo de superar “uma defasagem a respeito de normatização na Polícia Técnico-Científica”, já que não estavam sendo cumpridos “requisitos mínimos de segurança para fluxo e gestão dos vestígios”. O dinheiro foi aceito, e ficou combinado que as obras e melhorias seriam implementadas entre julho de 2022 e junho de 2023. O que mais fazia brilhar os olhos dos peritos era a construção de um Centro de Estudos de Pesquisas Forenses, o que permitiria o armazenamento mais adequado de evidências, uma melhor estrutura para investigações e mais conforto para todos.
A obra chegou a ser noticiada pela imprensa fluminense. Meses se passaram, no entanto, sem que uma parede fosse erguida. Até que, em janeiro de 2023, contrariando o parecer de Moro, o então secretário de Polícia Civil, Fernando Albuquerque – um delegado –, pediu a dissolução do contrato com a União. Alegou, no despacho, que não havia mais “necessidade e interesse público na construção” do centro de pesquisas forenses. Segundo ele, já estavam em curso algumas reformas na academia estadual de polícia e nos institutos de polícia científica que davam conta do recado. Os 6,6 milhões de reais, com isso, foram devolvidos a Brasília, intactos.
“Enrolaram, enrolaram, enrolaram. Eu falei: ‘está aí o dinheiro, vamos fazer.’ Mas o secretário devolveu”, lamenta Denise Rivera, perita criminal que representa a classe na Associação Brasileira de Criminalística (ABC) e na Associação dos Peritos do Rio de Janeiro (Aperj). Concursada da Polícia Civil desde 1991, ela diz que os peritos sempre foram menosprezados na corporação. Fala de sua experiência pessoal: no começo da carreira, quando trabalhava na Baixada Fluminense, Rivera não tinha sequer um fotógrafo para registrar as cenas de crime. Ela e os colegas não dispunham de carro, o que os deixava à mercê de caronas em viaturas da Polícia Militar. Alega que o problema não era falta de verbas na polícia, e sim sua distribuição desigual.
Rivera, falando em nome dos peritos, reclama também do acesso a banco de dados. Há poucos meses, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) firmou um acordo de cooperação técnica com o Detran do Rio de Janeiro. As duas instituições se comprometeram a compartilhar dados uma com a outra, em benefício mútuo. O tratado permite que, além do Detran, a Polícia Civil também tenha acesso às informações do TSE, podendo entregá-las, quando necessário, ao Instituto de Identificação Félix Pacheco (IIFP) – ou seja, aos papiloscopistas. Nada para os peritos criminais e legistas, que, é claro, chiaram. Eles dizem que os dados obtidos nesse acordo poderiam ajudar todas as polícias técnicas do estado a elucidar crimes.
“Imagina um banco de dados como esse no IML. Às vezes a pessoa é morta, encontrada sem nenhum documento de identidade, e a coleta de impressão digital não dá resultado”, diz Rivera. O acordo, segundo ela, poderia ajudar. No Brasil, os bancos de dados biométricos têm seu acesso limitado aos próprios estados; não há um repositório nacional de fácil acesso que permita, por exemplo, a um policial acreano reconhecer um cidadão gaúcho. Rivera diz ter insistido com seus chefes para que ampliassem o escopo do acordo, abarcando peritos e legistas. Insistiu em vão.
A papiloscopia e a perícia médico-legal nasceram juntas no fim do século XIX, quando os métodos da ciência moderna passaram a ser aplicados a investigações criminais. No Brasil, o pioneiro desse novo campo de estudos foi José Félix Alves Pacheco, que em 1903 assumiu o cargo de diretor do recém-criado Gabinete de Identificação e Estatística Criminal do Distrito Federal – na época, a cidade do Rio de Janeiro. Nascido em Teresina, Pacheco exerceu profissões diversas, do jornalismo à política, mas entrou para a história graças à sua colaboração para o desenvolvimento das perícias. Morreu em 1935. Seis anos depois, o gabinete foi rebatizado em sua homenagem, ganhando o nome que preserva até hoje: Instituto de Identificação Félix Pacheco (IIFC), onde trabalham os papiloscopistas fluminenses.
Até os anos 1930, tarefas que hoje cabem aos peritos criminais (como a análise de vestígios de pólvora e sangue) eram divididas entre papiloscopistas e legistas. Isso mudou com o surgimento, no Rio de Janeiro, do Gabinete de Pesquisas Científicas. Esse novo órgão reorganizou o cotidiano das duas categorias e abriu caminho para o surgimento de uma terceira: a dos peritos criminais, destacados especificamente para esquadrinhar cenas de crime e conduzir análises que não fossem de impressão digital ou cadáver. Essa divisão de tarefas, detalhada em um decreto de julho de 1934, permanece praticamente igual até hoje e inspirou as leis de outros estados.
Os desentendimentos entre papis e peritos vieram à tona pela primeira vez em 1988, ano em que foi promulgada a Constituição. O texto criou um obstáculo para os papiloscopistas de todo o país que, em busca de melhores salários, trocavam de profissão, tornando-se peritos criminais. Era um movimento comum. Para isso, até então, bastava o papiloscopista pedir a transição de carreira tão logo pintasse uma vaga em um instituto de perícia. Com a nova legislação, porém, definiu-se que os profissionais que quisessem virar peritos deveriam passar por um novo concurso.
A mudança mobilizou os papis, que se uniram como classe e foram à luta para equiparar seus salários – e status – aos dos peritos criminais. Passaram a pleitear para si o título de peritos. Já os peritos criminais brigam até hoje contra esse pleito.
“O perito é um cientista da polícia, e para fazer ciência eu preciso de metodologia científica. Contar pontos de uma impressão digital não é fazer ciência”, reclama Thiago Hermida, presidente da Associação dos Peritos Oficiais do Estado do Rio de Janeiro (Aperj). Vestindo uma camisa social apertada, o perito de 42 anos explica os motivos pelos quais não crê que os papis sejam peritos de verdade, como dizem ser. “Está lá o meu polegar. O papiloscopista vai pegar esse polegar e vai comparar um pouco com o outro. Doze pontos em que tem que ser igual. Isso é um jogo de sete erros. Não tenho dúvida de que em breve a inteligência artificial vai fazer isso.”
Alessandra Korenchendler, vice-presidente da Associação dos Peritos Papiloscopistas do Estado do Rio de Janeiro (Appol-RJ), rebate o argumento. Diz que a categoria, embora não precise de um diploma específico, passa por uma formação multidisciplinar na Academia de Polícia (Acadepol). Fora isso, a diferença de escolaridade é um fato recente, explica a liderança. “Só depois de 2008, quando foi feita uma alteração no Código Processual Penal, a lei passou a dizer que o perito criminal precisa ter um diploma de nível superior específico”, diz, enquanto caminha no Centro do Rio. “Na Lei Orgânica Nacional da Polícia Civil e nas leis de alguns estados, o Perito Oficial de Natureza Criminal engloba todos os peritos: o Perito Criminal, Perito Médico-Legista, Perito Odonto-Legista e o Perito Papiloscopista.”
As trocas de farpas volta e meia vêm a público. Em dezembro de 2020, o Sindicato dos Policiais Civis do Rio publicou uma nota nas redes sociais homenageando o trabalho dos “peritos papiloscopistas”. A Aperj, mordida, não deixou a expressão passar batido. Cinco dias depois, publicou um artigo reclamando que “sindicalistas vendedores de ilusões começaram a ludibriar os papiloscopistas” ao dizer que “eles podem se intitular peritos papiloscopistas”. No que depender da Aperj, não podem.
Naquele mesmo ano, deu-se um embate mais sério. Papiloscopistas e peritos do Rio brigaram, por meio de ofícios, para definir quem seria responsável por analisar os rostos identificados por tecnologias de reconhecimento facial. O quiproquó começou quando a Aperj enviou à Polícia Civil um comunicado dizendo: “na última semana tomamos conhecimento de um ‘Laudo de Reconhecimento Facial’ elaborado por papiloscopistas que se intitulam peritos papiloscopistas. As afirmativas constantes deste documento esdrúxulo não exibem nenhuma fundamentação técnica.”
A reclamação dos peritos motivou a abertura de um processo interno na Polícia Civil, para definir de forma clara quem deveria cuidar do reconhecimento facial. Os papiloscopistas se defenderam alegando que, desde os anos 1930, eram eles os responsáveis por toda perícia de identificação – não só dos dedos, mas também dos rostos. “Toda a legislação historicamente vincula a identificação humana aos institutos de identificação tanto no âmbito federal quanto no estadual”, diz o ofício enviado pelo IIFP. O instituto argumenta que cabe aos papiloscopistas não apenas identificar digitais e rostos, mas quaisquer traços humanos importantes para o trabalho: “ainda que uma cicatriz esteja localizada fora da região facial, sendo ela elemento de identificação humana, não há porque mapeá-la e atribuir competência diversa do órgão legalmente competente”, diz o texto. Segundo ele, os papiloscopistas também têm autoridade para analisar tatuagens, altura e modo de andar do suspeito.
A discussão se arrastou por anos até que a Secretaria da Polícia Civil criou a primeira norma que regula, no Rio, o uso do reconhecimento facial: a resolução 509, de 2023. Nela, consta que o IIFP, por meio de software e outros métodos complementares, pode fazer um levantamento de pessoas que tenham “compatibilidade morfológica” com as imagens coletadas pela polícia em câmeras de segurança. Depois disso, o delegado responsável pode assinar um ofício pedindo que peritos criminais do Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICCE), com suas técnicas próprias, façam um exame às cegas das pessoas indicadas pelo IIFP para chegar a um suspeito.
A regra, no entanto, não é impositiva: o delegado “pode” chamar os peritos, mas não é obrigado. Abre-se uma brecha para que investigações passem ao largo da perícia, concentrando poder nas mãos de delegados e dos papiloscopistas de sua confiança.
Os peritos, até agora, conseguiram segurar as aspirações dos papiloscopistas. Comemoraram quando, em 2009, os papis ficaram de fora da Lei 12.030, que estabeleceu normas gerais para as perícias de natureza criminal no Brasil. Comemoraram de novo quando, em 2014, a então presidente Dilma Rousseff vetou um projeto de lei que incluía os papiloscopistas na lei aprovada cinco anos antes.
“Foi uma grande frustração para a categoria”, lembra Antônio Maciel Aguiar Filho, presidente do Conselho Nacional dos Dirigentes de Órgãos de Identificação Civil e Criminal (Conadi). Em apoio aos papiloscopistas, a Confederação Brasileira de Trabalhadores Policiais Civis (Cobrapol) ajuizou no Supremo Tribunal Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4354) pedindo a suspensão da lei. O texto frisa que os papis “vêm fundamentando a condenação de incontáveis criminosos”.
A ação, relatada pelo ministro Dias Toffoli, foi julgada improcedente no último dia 7. Marcos Secco, presidente da Associação Brasileira de Criminalística (ABC), disse estar satisfeito com a decisão, embora ela não signifique o fim da contenda. “Mas estamos confiantes de que o entendimento já manifestado será mantido.” Maciel, do Conadi, diz que as associações de papiloscopistas estão esperando a publicação do acórdão para marcar posição. Mas a decisão do Supremo, segundo ele, não desanimou a categoria. “O voto do relator não alterou a situação em relação à perícia oficial. Apenas ressaltou a diferença do cargo de papiloscopista e perito criminal.”
No ano passado, a disputa veio à tona novamente com a promulgação da Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis. Ela padronizou a estrutura dessas polícias em todos os estados e estabeleceu que perícias só podem ser feitas a pedido de uma autoridade policial. Os peritos criminais, contrariados, se recusaram a participar da discussão. Desde 2019, apostam as fichas numa Proposta de Emenda à Constituição que os emancipa da Polícia Civil e permite que atendam demandas de outros órgãos, como os Ministérios Públicos e defensorias estaduais. A PEC tramita lentamente no Senado. Em abril, foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
Os papiloscopistas acompanham a PEC com atenção. Durante o Congresso de Identificação Humana, em junho, o delegado tocantinense e líder da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol) Mozart Félix disse ter se reunido com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), para tratar do assunto. “O que ele nos garantiu é que isso não vai ser votado de forma açodada e só irá ao plenário depois de ouvidos os governadores, os dirigentes das polícias, o Conselho de Secretaria de Segurança Pública, o Ministério da Justiça, e quando houver consenso.” Segundo Félix, também participaram da conversa integrantes da Federação Nacional dos Peritos Oficiais em Identificação (Fenappi), que representa os papiloscopistas.
Hoje, no Brasil, a situação da perícia criminal varia de estado para estado. Em alguns deles, os peritos respondem diretamente à Polícia Civil, como no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. Nas demais localidades, os peritos prestam contas às Secretarias de Segurança, como no Espírito Santo e Rio Grande do Sul. O que não quer dizer que sejam independentes da polícia. O perito que cometer uma infração, por exemplo, será avaliado pela corregedoria das polícias, e não por uma corregedoria de sua categoria. “E quem compõe as corregedorias? Os delegados”, reclama Marcos Secco.
Tamanha desordenação estimula rusgas. Em abril, o Sindicato dos Peritos Oficiais do Tocantins questionou uma portaria (189/2023) do secretário de Segurança Pública que permitia aos delegados pedir laudos periciais sem a instalação de um inquérito policial. “Com isso seria possível entrar na internet, fazer um boletim de ocorrência contra alguém, e o delegado – com apenas esse B.O. – poderia pedir o celular do suposto criminoso para ser periciado”, argumenta Secco, que faz coro à reclamação dos peritos. O Sindicato dos Delegados do Tocantins respondeu às queixas, afirmando o contrário: exigir a abertura de um inquérito sem evidências é que seria um abuso. Segundo a entidade, “não há qualquer razoabilidade na exigência formal do número do procedimento de referência para a emissão de laudos periciais, ante aos gravíssimos riscos de cometimentos de injustiças ou abusos contra os cidadãos”.
Em Pernambuco, a perícia não é subordinada à Polícia Civil. Há poucos meses, no entanto, uma portaria do governo estadual determinou que, para coletar provas, os peritos agora precisarão sempre de autorização formal de um delegado. A grita foi tanta que chegou em Brasília. O Conselho Nacional dos Direitos Humanos publicou então uma resolução (15-2024) estabelecendo diretrizes para a autonomia técnico-científica dos órgãos de perícia criminal dos estados e do Distrito Federal. As diretrizes, porém, não têm poder de lei. Servem, na prática, como recomendações.
Independentemente do que decidir o Congresso, a briga ainda vai longe nos estados, cada qual com sua Lei Orgânica das Polícias Civis. A votação dessa lei no Rio de Janeiro, em 2022, reacendeu discussões semânticas. “Era hora de reconhecer e mudar o nome do cargo de papiloscopista para perito papiloscopista, já que no mundo real a gente vem fazendo perícia há duas décadas”, diz Alessandra Korenchendler, da Associação dos Peritos Papiloscopistas do Estado do Rio de Janeiro (Appol-RJ). Alessandra Siffert, sua xará e presidente da entidade, reclama que os peritos criminais compareceram às audiências na Alerj não para propor ideias, mas para barrar as propostas dos papiloscopistas. “O outro lado diz apenas que somos amigos dos delegados. Na verdade, temos uma boa relação com todos.”
Thiago Hermida, da associação de peritos criminais, reclama que os papiloscopistas não estão atrás de justiça, mas de dinheiro. “Por que eles querem ser chamados de peritos papiloscopistas? Porque num segundo momento vão pedir judicialmente ou tentar via Alerj um processo de isonomia. Se todo mundo é perito, eu posso ganhar o mesmo que você. Não é uma conversa sobre cargos. É uma conversa sobre poder.”
Os peritos legistas, face menos visível da disputa, agora também querem parte na conversa. Iniciaram recentemente seu processo de organização enquanto classe. “A gente tá meio por fora. Os nossos colegas, na maior parte das vezes, não querem se envolver nessa questão classista. Querem ir pro trabalho, fazer o plantão e ir embora”, lamenta Leonardo Ribeiro, que atua como legista no IML do Rio.
Os legistas costumam se alinhar aos peritos criminais na briga com os papis. Mas a união tem altos e baixos. Ribeiro e outros colegas ficaram possessos quando a Aperj convocou uma coletiva de imprensa, em abril, para criticar a perícia do caso Marielle Franco. “Sabe a garça, que fica com o pé na lama mas mantém as penas limpas? Eu acho que a medicina legal e a perícia fizeram o papel de garça nesse caso. E a Aperj vem cagar nisso, pô”, reclama Jefferson Oliveira, outro legista. “Foram as perícias que resolveram o caso. As três perícias! E aí você vai falar mal logo dessa parte?”
As discussões na Alerj alimentaram a insatisfação dos legistas. “O tempo, a oportunidade e a energia gasta foram para falar que papiloscopista não poderia ser perito criminal, uma questão que já tinha sido superada”, diz Oliveira. “A gente queria avançar alguma coisa.” Em julho, ele, Ribeiro e outros colegas de ofício fundaram a Associação dos Peritos Legistas do Estado do Rio de Janeiro (Apel-RJ).
Desconsiderados os interesses pecuniários, as vaidades e os ressentimentos, a briga entre papis e peritos têm implicações sérias. Trata-se de uma disputa pelo poder de investigar, e com qual autonomia. “O que está em jogo é a autoridade efetiva e simbólica que o delegado detém ao controlar os papiloscopistas, os peritos e outros”, diz João Trajano de Lima Sento-Sé, professor de ciência política da Uerj reconhecido por seu trabalho nas perícias autônomas da Chacina de Nova Brasília, ocorrida em 1994, no Rio de Janeiro. Segundo ele, a rixa entre delegados e peritos se explica por essa tensão. Delegados não querem perder a palavra final sobre os fatos.
É uma leitura que corrobora o que dizem os peritos criminais. Segundo essa visão, os delegados beneficiam os papiloscopistas porque sabem que podem exercer maior controle sobre eles. Cássio Thyone, perito aposentado da Polícia Civil do Distrito Federal e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, reconhece que há um mal-estar entre as categorias. Isso, segundo ele, pode acarretar investigações malfeitas, apressadas. “Se um papiloscopista for ao local do crime antes de um perito, pode acontecer que ao executar seu trabalho para tentar encontrar uma impressão digital ele acabe destruindo algum vestígio material, e nesse caso vamos perder uma prova. Isso tudo em função de uma disputa que não deveria existir.”
Reclamações dessa natureza não são raras. Em agosto, o Sindicato dos Peritos Criminais do Estado de São Paulo denunciou que papiloscopistas vinham alterando cenas de crime e realizando perícias sem validade legal. A acusação, segundo o portal Metrópoles, está sendo investigada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo.
Segundo Thyone, numa briga tão complexa, é difícil definir quem está certo ou errado. Na sua visão, contudo, o arcabouço legal é ligeiramente favorável aos peritos criminais, como atesta a decisão recente do STF. “Peritos e papiloscopistas jogam no mesmo time, da busca da verdade, com interesse de resolver problemas judiciais e criminais. Esse deveria ser o interesse maior, e não uma disputa entre as carreiras”, diz o ex-perito. Segundo ele, até hoje não houve interesse dos legisladores em resolver a briga. “Há trinta anos, quando entrei para a perícia, isso já era um problema. Tivemos trinta anos para tentar resolver isso e nós não caminhamos um passo adiante até agora, nem na propositura de possíveis formas para resolver isso.
Enquanto não se resolve, o desentendimento é explorado nos tribunais. Foi assim no inquérito contra Geddel Vieira Lima, ex-ministro de Michel Temer eternizado na imagem das malas de dinheiro que a polícia encontrou em seu apartamento, em Salvador. Papiloscopistas da Polícia Federal encontraram digitais de Lima no imóvel, indicando que ele havia estado ali. Durante o julgamento, a defesa do ex-ministro alegou que o laudo não tinha caráter oficial e, portanto, não deveria ser levado em consideração. O caso foi analisado pelo Supremo, que atestou a validade do laudo.
Discussão semelhante ocorreu no julgamento do “Crime da 113 Sul”, um triplo homicídio ocorrido em 2009, em Brasília. O ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) José Guilherme Villela e sua esposa, Maria Villela, foram mortos a facadas em seu apartamento, assim como a empregada Francisca Nascimento. A pedido da delegada que investigou o caso, papiloscopistas visitaram a cena do crime e coletaram impressões digitais. Concluíram que Adriana Villela, filha do casal, estivera ali numa janela de tempo que vai de três a nove dias antes ou depois do crime. Ela alegava que estivera pela última vez no apartamento quinze dias antes.
A defesa de Adriana, da qual faziam parte os advogados Marcelo Turbay Freiria e Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, tentou descredibilizar o laudo papiloscópico. “A delegada encomendou um exame de datação de impressão digital, que é tecnicamente impossível de ser feito em razão do risco de falibilidade e por falta de comprovação científica”, lembra Turbay. Um especialista do Instituto de Criminalística (IC) de Brasília fez coro aos advogados. Mas, no fim, a acusação venceu. Em outubro de 2019, Adriana foi condenada a 67 anos e 6 meses de prisão.
* Versão anterior da reportagem afirmava que o governo do Rio de Janeiro havia adquirido dois tablets da Forenscope e os destinado ao Instituto de Identificação Félix Pacheco (IIFP). A compra, porém, não foi efetivada. A informação já foi corrigida.
Após a publicação da reportagem, o presidente da Associação dos Peritos Legistas do Estado do Rio de Janeiro (Apel-RJ), Leonardo Ribeiro, enviou uma nota à piauí afirmando que “não existe qualquer rixa” entre legistas e papiloscopistas no estado do Rio. Segundo ele, “os peritos legistas não têm qualquer questionamento quanto aos investimentos realizados nos IMLs nos últimos anos” e “não há entre os legistas sentimento de desprestígio em relação a qualquer categoria pericial”. Ribeiro disse ainda que a associação não compactua “com o desmerecimento ou desqualificação de qualquer graduação para ingresso na carreira de perito no Departamento de Polícia Técnico Científica”.