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Petra Costa – uma amiga do povo entre nós

Criticar cineasta nos termos que fez a Secom é ato vil do governo federal

Eduardo Escorel | 12 fev 2020_08h02
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Começo a escrever dois dias antes da cerimônia de entrega do Oscar, ao qual Democracia em Vertigem, de Petra Costa, concorre na categoria Melhor Documentário. Nesta altura, com a votação encerrada, as previsões indicam como franco favorito Indústria Americana (American Factory), que tem entre suas produtoras a Higher Ground, empresa de Barack e Michelle Obama.

The Hollywood Reporter chega a afirmar, na edição de 5 de fevereiro, que Indústria Americana “vai ganhar” e “deve ganhar” por que “é o mais visto e premiado”, além de a “codiretora Julia Reichert ter sido nomeada em quatro décadas diferentes sem nunca ganhar”. Para consolo dos outros quatro concorrentes, a revista reconhece serem “documentários igualmente merecedores”, mas pondera que Indústria Americana “fala diretamente aos interesses e preocupações dos americanos”. Daí considerá-lo premiado por antecipação, o que parece razoável – afinal, a festa é deles, não nossa.

Há, porém, quem considere Honeyland um concorrente forte e outros apostam em The Cave. Democracia em Vertigem aparece em algumas listas como terceira opção, o que está longe de ser um demérito para o filme. Petra pode se considerar vitoriosa e deve ser respeitada pela demonstração de resiliência e sinceridade ao realizar o filme, além de ter obtido distribuição mundial por intermédio da Netflix e sido indicada para concorrer ao prêmio da Academia. Não é pouca coisa, independentemente do que cada um ache ou deixe de achar do documentário em si.

Dos cinco finalistas, além de Democracia em Vertigem, só tive oportunidade de assistir ao documentário Indústria Americana, de Steven Bognar e Julia Reichert, disponível na Netflix. Caso venha mesmo a ser premiado, o Oscar terá sido dado a um documentário banal. E sempre ficará no ar a dúvida se foi favorecido por ter sido coproduzido pela empresa do casal Obama.

Antes que algum espírito malévolo se manifeste, reafirmo minha falta de isenção total em relação a Democracia em Vertigem por ter prestado consultoria ao projeto durante quatro meses, antes do período em que foi feita a edição final. Dito isso, repito mais uma vez o que escrevi na edição 153 da revista piauí, em junho de 2019: apesar do meu envolvimento restrito, creio ter a objetividade necessária para comentar o filme e sua trajetória.

Mesmo se não receber o Oscar, Petra terá dado sua visão pessoal e, portanto, subjetiva, do processo democrático brasileiro a partir da Constituição de 1988. Nesse período, Lula foi candidato a presidente quatro vezes, elegendo-se em 2002; passou a faixa presidencial para Dilma Rousseff em 2011 e acabou preso em 2018, ano no qual foi eleito um presidente da República de extrema direita. Não se pode negar que o filme contribui, à sua maneira, para a compreensão desse processo e de seu desfecho.

Agora, em entrevistas à mídia internacional, Petra faz bem em exercer o seu direito de se manifestar sobre o que vem acontecendo no Brasil nos últimos treze meses. Criticá-la por isso nos termos usados pelo perfil que representa a Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência (Secom) é outro ato vil de um governo que apenas reafirma, como se fosse necessário, o despreparo de seus integrantes.

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Ao ler esta semana (7/2) a notícia da morte de Li Wenliang, vítima do coronavírus, lembrei primeiro do dr. Thomas Stockmann, personagem de Henrik Ibsen em Um Inimigo do Povo, o que por sua vez me remeteu a uma declaração do ministro Edson Fachin, dada em abril de 2017, e depois de volta a Petra, chamada pela Secom há dias de “militante anti-Brasil”.

Li Wenliang, oftalmologista do Hospital Central de Wuhan, teria sido um militante anti-China? Em dezembro, ele avisou aos colegas por meio de um bate-papo online sobre a situação de sete pacientes que estavam de quarentena, vítimas de uma doença semelhante à Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars), causa da epidemia global de 2003. “No início de janeiro”, segundo o jornal The New York Times (em 6/2 com atualização no dia seguinte), “ele foi convocado por autoridades médicas e policiais, e forçado a assinar uma declaração denunciando seu aviso como um boato ilegal e sem fundamento”. O dr. Li voltou ao trabalho e foi contaminado pelo vírus transmitido por um paciente. Diagnosticado em 1º de fevereiro, sua morte foi confirmada dias depois.

Na peça de Ibsen escrita em 1882, o dr. Stockmann é considerado “um inimigo do povo” ao fazer um relatório em que revela que as águas do spa da pequena cidade na Costa Sul da Noruega estão contaminadas. “[…] Pensa um pouco! Água envenenada para uso externo e interno! E isso a pobres doentes que vêm a nós com confiança e nos pagam em boa moeda corrente para recuperar a saúde!” Declarado inimigo do povo por afirmar uma verdade inconveniente, o paralelo entre Stockmann e Li Wenliang é explícito, assim como o que há neste momento entre as termas norueguesas do final do século XIX e o abastecimento de água no Rio de Janeiro.

Em resposta, dada em 2017, à pergunta de um repórter sobre decisões da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) que levaram dois presos condenados em primeira instância a serem soltos, e que poderiam representar um “afrouxamento” em relação às prisões, o relator da Lava Jato, ministro Edson Fachin “riu e respondeu: ‘Saí daqui ontem com vontade de reler o [Henrik] Ibsen, Um Inimigo do Povo.’” “‘O cenário brasileiro sugere uma leitura dessa peça do velho Ibsen’, disse Fachin.” (Folha de S.Paulo, 27/04/2017).

Ao ser acusada de “militante anti-Brasil” por dizer a verdade, conforme Chico Marés e Nathália Afonso, da Agência Lupa, atestaram no artigo “Governo distorce dados ao acusar a diretora Petra Costa de espalhar fake news sobre situação do país” (republicado na Folha de S.Paulo em 7/2), Petra passa a integrar esse ilustre grupo formado pelos médicos Thomas Stockmann e Li Wenliang, e a ter razões para compartilhar a visão que o ministro Edson Fachin disse ter do Brasil. Ela está, portanto, em excelente companhia, independentemente do que acontecer domingo à noite.

O compromisso de Petra com a verdade e a justiça não é equivalente ao de médicos, como Stockmann ou Li Wenliang, ou juristas, como Fachin. A linguagem do cinema, por meio da qual ela se exprime, é baseada na ilusão e pressupõe capacidade intuitiva, sensibilidade e persistência. Filmes são subjetivos por natureza e só faz sentido comentá-los levando em conta essa premissa. É como cineasta e cidadã que Petra se pronunciou há dias sobre questões sociais e políticas brasileiras contemporâneas, podendo ser contestada, jamais agredida.

Paulo Emílio escreveu certa vez que “Glauber Rocha é Profeta alado”. E completou: “Restaria lembrar que Profeta não tem obrigação de acertar, sua função é profetizar. Através do filme, escrita, fala e vida, Glauber tornou-se uma personagem mágica de quem não é fácil ser contemporâneo e conterrâneo. Ele é uma de nossas forças e nós Brasil [sic] a sua fragilidade.” (“Nota Aguda”, dezembro de 1975. Prefácio a Glauber Rocha, de Raquel Gerber e outros. Editora Paz e Terra.)

Petra não é uma Profetisa alada. Mas ela tem o privilégio, como cineastas em geral, de não ter obrigação de acertar “através do filme, escrita, fala e vida”.

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Para Josias Teófilo, “o convite a Regina Duarte [para ser a nova secretária da Cultura] representa uma bandeira branca à classe artística (não havia outra coisa a se fazer depois do escândalo de Alvim), já que ela nunca foi contra as leis de incentivo nem a favor dos filmes morais que alguns defendem dentro do governo”. (Folha de S.Paulo, Ilustrada, 7/2).

Não creio ter sido esse o motivo do convite feito à atriz. De qualquer modo, a ainda não nomeada nova secretária da Cultura começou bem ao pedir a demissão da pastora Jane Silva. Para poder confirmar a interpretação de Teófilo, porém, falta Regina Duarte marcar uma visita de desagravo a Fernanda Montenegro, no Rio, e outra a Petra Costa, em São Paulo. Aguardemos, pois.

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Só li há pouco, domingo de manhã, o artigo de Sérgio Augusto que viralizou nas mídias sociais durante o fim de semana. Com a precisão e senso de humor habituais ele escreve: “Mesmo sem levar o Oscar, Petra Costa já venceu.” E segue: “Democracia em Vertigem não merece ser medido com o rigor de quem avalia um ensaio de cunho histórico. Tem viés ideológico? Tem. Qualquer obra cinematográfica tem, mais e menos pronunciado. Não pretendia ser um agit prop petralha; mas se, por força das circunstâncias, virou um filme aparentemente simpático aos perdedores, o principal culpado é o governo desastroso do capitão.” A íntegra do artigo é de leitura obrigatória, como se costuma dizer.

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Afinal, conforme previsto, Indústria Americana ganhou mesmo o Oscar de Melhor Documentário. No mais, é vida que segue.

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