São sete e meia da manhã na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no município de Normandia, a 268 km de Boa Vista, capital de Roraima. Mais de 50 indígenas se organizam em roda no Centro Regional Lago Caracaranã. Uma pajé defuma o maruwai, uma pedra encontrada na raiz de uma árvore. O ritual é uma forma de trazer proteção e purificação. Tudo acontece no malocão, como é chamada a grande construção de estacas de madeira coberta por palha. No centro do malocão, um grupo faz fila para começar o segundo ritual daquela manhã: a pajé Mariana Macuxi esfrega pimenta malagueta nos olhos de homens, mulheres, indígenas e não indígenas. A pimenta malagueta foi moída previamente e colocada em um recipiente abençoado pela pajé. Com uma vareta, ela coloca o produto nos olhos das pessoas. Assim que a pimenta entra no olho, o choro vem, e os indígenas abaixam a cabeça em oração. A pimenta é, para os indígenas, uma forma de obter proteção contra doenças.
Os povos indígenas da Raposa Serra do Sol estão ali para celebrar mais de meio século de existência do Conselho Indígena de Roraima (CIR). Na verdade, 52 ao todo. A comemoração dos 50 anos foi adiada pela pandemia, e a deste ano foi ainda maior por uma novidade: pela primeira vez uma indígena foi indicada ao comando da Funai. Joenia Wapichana, indígena da etnia Wapichana, participou dos rituais de abertura e do primeiro dia de celebração, em 16 de janeiro. Diante dos pajés, falou da importância de celebrar o aniversário do CIR e disse que ainda há muito o que conquistar.
“Acredito que ainda tem muitos desafios e muitas demandas. A criação do Ministério dos Povos Indígenas é justamente a concretização do que se pensou há 50 anos atrás sobre protagonismo dos povos indígenas, exercício dos direitos básicos. Pra isso necessariamente há muito tempo deveria ter esse ministério”, afirmou a presidente da Funai.
Roraima é o estado mais indígena do Brasil. Tem 56 mil autodeclarados indígenas, 8,5% da população total. O Conselho foi criado em 1971, depois da chamada primeira Assembleia dos Tuxauas, realizada em 4 de janeiro daquele ano na comunidade do Surumu, município de Pacaraima. Foi quando várias lideranças indígenas de Roraima se uniram para reivindicar a demarcação das terras e autonomia para as comunidades diante de violência, exploração e invasão de seus territórios. Hoje o CIR reúne 10 etnias (Macuxi, Wapichana, Ingarikó, Patamona, Sapará, Taurepang, Wai-Wai, Yanomami, Yekuana e Pirititi) que se dividem em 465 comunidades em todo o estado. No Conselho os líderes deliberam sobre as questões das comunidades, além de apontar demandas prioritárias que precisam ser resolvidas. A luta dos povos indígenas de Roraima foi fundamental para a demarcação da Raposa Serra do Sol, em 2009.
O vice-coordenador geral do CIR, Enock Taurepang, se emocionou ao falar sobre as conquistas da organização durante esses anos de luta. “O que estamos vivendo é um momento de alegria, com Joenia assumindo a Funai, Marizete [de Souza] na Funai regional…Mas, parentes, nós temos que tomar muito cuidado com as conquistas! Porque, muitas das vezes, a nova geração que está vindo pode achar que tudo é facilidade e tudo vem de mão beijada! Então vamos refletir .. e vamos criar forças para que na facilidade a gente se torne ainda mais forte! A gente não quer um plano do governo: a gente quer o plano do movimento indígena!”.
Este ano, a celebração pelo aniversário do CIR teve o lema “União, luta, resistência e conquistas”. Mais de dois mil indígenas participaram do evento. As comemorações terminaram nesta quinta-feira.