Para Vanusa Silva, baiana de 45 anos, dirigir um caminhão e sumir numa estrada seria o símbolo máximo da liberdade. Mas hoje o sonho está cada vez mais distante. Trabalhando como doméstica desde os 9 anos, só foi conhecer uma sala de aula aos 21, quando se matriculou num programa para alfabetização de adultos. Planejava em pouco tempo estar prestando exames no Detran para habilitar-se e tornar-se caminhoneira. Não deu.
O quase nada que aprendeu não é o suficiente para que consiga escrever. Desistiu do sonho depois de dois anos de curso e de os professores sentenciarem que ela “tinha um bloqueio”. Saiu com um certificado porque “colava” as respostas dos colegas. Agora, sobrevive como faxineira e vendedora ambulante. Faz contas de cabeça – “mas não arma no papel” – e lê gaguejando frases curtas.
Vanusa está nas estatísticas oficiais do país: é uma entre os 11,5 milhões de brasileiros que se autodeclaram analfabetos e estão fora da escola, segundo levantamento da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do IBGE, divulgado em abril. Mas não – ou, pelo menos, não de forma relevante – nos planos dos principais candidatos a presidir o Brasil nos próximos quatro anos.
A menos de três meses do primeiro turno das eleições presidenciais, as propostas de partidos e campanhas sobre o tema são genéricas ou repetitivas. A alegação, quase sempre, é a de que em meio à disputa presidencial que promete ser a mais acirrada desde a retomada das eleições diretas, em 1989, os planos específicos ainda não foram delineados. Talvez um descuido das equipes políticas, levando-se em conta que 4,4% dos 147 milhões de eleitores se declaram analfabetos, de acordo com o Tribunal Superior Eleitoral.
Procurada pela piauí, a assessora de Educação do candidato Geraldo Alckmin, do PSDB, Ana Diniz, diz “não ter a fórmula” para reduzir o estoque de analfabetos adultos. “Uma política neste sentido extrapola a educação e deve dialogar com a área social”, sinaliza Diniz, que é coordenadora do instituto Singularidades, que tem foco na formação de professores e gestores, e uma das fundadoras do Movimento Todos Pela Educação.
Os pilares da estratégia educacional do PSDB incluem a primeira infância, a alfabetização até o 2º ano do Ensino Fundamental, a reforma do Ensino Médio e a valorização do professor. Diniz crê na necessidade de um diagnóstico de todos os programas da área de educação e de um redesenho do Ministério da Educação, o MEC. “Ele tem de voltar ao papel central de formular políticas públicas, dar diretrizes para que funcionem, dar incentivo e suporte para que estados e municípios implementem; e depois avaliá-las.”
Marina Silva, da Rede Sustentabilidade, alfabetizada aos 16 anos no antigo Mobral, também defende a realização de um amplo diagnóstico da área. E ressalta que os professores devem ser mais bem treinados e a base de conhecimento do adulto deve ser respeitada para o processo de ensino tardio. Mas a candidata afirma que o plano não está no papel.
Já Fernando Haddad, coordenador do programa de governo do PT – cujo candidato presidencial segue indefinido –, defende a manutenção de um programa federal dos governos de Lula e Dilma Rousseff que não atingiu as expectativas: o Brasil Alfabetizado – criado em 2003. “O programa é bem-sucedido, mas perdeu o engajamento de estados e municípios. Para solucionar isso, iremos retomar as campanhas de mobilização no rádio e na tevê”, enfatiza. Nos eixos temáticos do plano de governo do partido, divulgados há poucos dias, há apenas uma referência à educação: a reforma do Ensino Médio.
No documento Os 12 Passos Para Mudar o Brasil, lançado na última semana, o PDT do candidato presidencial Ciro Gomes propõe “investimento maciço” em diversas frentes da educação e o cumprimento de marcos e obrigações assumidos pelo país, mas não há menção ao problema dos analfabetos adultos. A assessoria do candidato não respondeu aos questionamentos enviados por e-mail e mensagens de texto.
No caso do candidato Jair Bolsonaro, do PSL, a assessoria da campanha agendou e cancelou quatro vezes a entrevista solicitada pela piauí.
O carro-chefe dos programas de Educação de partidos e campanhas políticas, naturalmente, está voltado para a qualificação do ensino de crianças e adolescentes, mas a erradicação do analfabetismo a partir dos 15 anos foi um compromisso assumido com a Unesco em 2000. A cifra apurada pelo IBGE em 2017 e publicada neste ano corresponde a 7% da população maior de 15 anos. Pela meta acertada com a Unesco, a taxa de analfabetismo de jovens e adultos deveria ter baixado para 6,5% em 2015 – para que se chegue ao objetivo de zerá-la em 2024.
O problema se aprofunda com o avanço da faixa etária. Considerando-se apenas os cidadãos acima dos 60 anos, 19,3% são analfabetos. Entre os brasileiros acima de 15 anos que se declaram pretos ou pardos e não sabem ler nem escrever, a taxa também supera a média nacional e chega a 9,3%. Os brancos são 4%. O Nordeste concentra o maior número de analfabetos de jovens e adultos entre as regiões (14,5%), enquanto Sul e Sudeste registram as cifras mais baixas (3,5% cada).
Esses números não incluem a população considerada analfabeta funcional – formada por pessoas que têm mais de 15 anos e menos de quatro anos de estudo quando comparadas com pessoas da mesma idade. Em 2015, essa parcela era estimada em 27% da população pelo Instituto Paulo Montenegro. O índice sobe para 70% na economia rural e cerca de 40% entre empregados de serviços domésticos e da construção civil.
Baixa autoestima, resistência ao aprendizado e dificuldade de conciliar trabalho e estudo distanciam essa parcela da população da escola. Para Marina Silva, as estratégias de alfabetização de adultos deverão ser reavaliadas. “Um país em crise não favorece o atingimento de metas”, diz. “O desafio maior da população está em sobreviver.”
Já Haddad, que foi ministro da Educação entre 2005 e 2012, enxerga o cenário como positivo, apesar do atraso. “Em 2000, quando o Brasil firmou o compromisso com a Unesco, o índice era de 13,4%. Para quem partiu dessa base, 7% é um avanço muito significativo. A maioria dos países monitorados (pelo organismo da ONU) não conseguiu diminuir o índice pela metade”, destaca.
Outro objetivo a ser alcançado, que está no Plano Nacional de Educação (PNE), previsto na Constituição, é de oferecer, no mínimo, 25% das matrículas para Educação de Jovens e Adultos (EJA), pela rede pública integrada ao ensino profissional. Atualmente, este tipo de atendimento cobre entre 0,5% e 3% das matrículas. E os partidos não apresentam iniciativas concretas para que a alfabetização seja a porta de entrada para o mundo do trabalho. Desde a década de 90, as redes públicas mantêm a EJA como modalidade de ensino.
Em 2016, somente 1,7 milhão de pessoas estavam matriculadas na EJA, segundo a PNAD\IBGE. O movimento Todos Pela Educação critica a ausência de políticas que se concentrem no público-alvo da EJA – idosos, negros, pardos e em regiões de baixo desenvolvimento socioeconômico. O grupo apresentou aos candidatos oficiais e pré-candidatos um plano estratégico para a educação e já conversou com os que lideram as pesquisas, com exceção de Jair Bolsonaro.
Há quinze anos, a EJA ganhou o reforço do programa Brasil Alfabetizado, com ênfase em uma ampla campanha de alfabetização, no trabalho voluntário de professores e coordenadores bolsistas e em parceria com escolas públicas. De 2003 a 2015, o programa recebeu 16,8 milhões de matrículas, mas apenas 7,8 milhões de estudantes concluíram o curso. Com o corte de gastos do governo Temer, o Brasil Alfabetizado tem no momento somente 137 mil matrículas ativas em todo o país. Apesar de os investimentos sofrerem queda desde 2010, 3,3 bilhões de reais já foram empenhados no programa.
“O Brasil Alfabetizado não passa de transferência de recursos”, afirma a coordenadora do Centro de Referência Paulo Freire, Sônia Couto. Ela defende a criação de uma política nacional de EJA, centrada não só na alfabetização, mas na inserção no mercado de trabalho e na inclusão tecnológica. Se não for assim, adverte Couto, o risco é o Brasil aumentar a taxa de analfabetos funcionais. “Não há cobrança social, o analfabetismo é aceito como natural e a EJA é uma modalidade de ensino sem prestígio”, critica Couto.
Boa parte dos analfabetos do Sudeste são nordestinos como a marisqueira Sandra da Silva, 40 anos, que “despinicava” (descascava) sururu em Maceió. “No dia em que minha filha de 2 anos, Vanessa, aprendeu a me chamar de mãe, ela se foi”, conta Sandra, sem alterar o tom de voz. A fome matou. Depois da tragédia, casou-se “por interesse” e mudou para uma favela no Rio. Há uma ano e meio trabalhando como diarista, decidiu que “não queria mais ser burra” e matriculou-se na EJA da escola municipal Calouste Gulbenkian, no Centro da cidade. Hoje, sonha em ser motorista de Uber e advogada. O melhor de ter aprendido foi conseguir ler as histórias dos mortos nas lápides do Cemitério do Catumbi, seu passatempo preferido. E avisa: nenhum candidato terá seu voto. “A menos que eles aceitem trabalhar por um salário mínimo. Quero ver quem aguenta.”
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Correção: Este texto foi retificado às 13h30 de 26/7/2018 para atualização das atividades de Ana Diniz e, a pedido do partido, ampliar informações sobre o plano educacional do PSDB.