Parafraseando o Cabo Daciolo, as eleições são um teatro onde candidatos são apresentados como se a eles coubesse o dever solitário de governar. Passam a ideia de que são onipotentes e que suas propostas e promessas se converterão rapidamente em medidas concretas se eleitos. Mas a verdade é que é difícil governar, demanda persistência, experiência e, sobretudo, muita negociação. Transformar a promessa eleitoral em política pública na ponta é tarefa árdua que depende da governabilidade do chefe do Executivo.
Se em geral já é difícil, essa tarefa se torna quase impeditiva no presidencialismo de coalizão, vigente no Brasil. Nenhum governante eleito consegue obter de cara maioria parlamentar – condição básica para poder exercer de fato a Presidência – sem passar por amplas negociações com diversas legendas.
Por isso, na hora de imaginar a próxima Presidência, cabe entender as condições de governabilidade de cada candidato. Muitos falaram de Geraldo Alckmin e do apoio do centrão, mas poucos falam das condições de governabilidade do franco-favorito Jair Messias Bolsonaro. O ex-capitão até ensaiou uma aliança com o Partido da República e outros do centrão, mas sua inabilidade política não permitiu selar nada mais relevante do que o apoio da legenda de Levy Fidelix (PRTB).
Como Bolsonaro poderia então governar o Brasil? Como será possível obter maioria parlamentar sendo eleito por dois partidos nanicos? O que tanto ele quanto seu círculo mais próximo têm demonstrado abertamente são duas possibilidades: mediante o fisiologismo mais desinibido ou o autoritarismo. Para usar termos da cultura de massa: plata (dinheiro) ou plomo (bala).
Desde o final de 2017, em discursos, sabatinas e conversas setoriais, o ex-capitão vem revelando o primeiro conjunto de condições de governabilidade. Elas residem justamente no fato de o candidato, à diferença dos demais, não ter nenhuma proposta de política pública concreta. Quando indagado sobre propostas para questões específicas, responde sempre que não sabe, que não entende.
Isso não se restringe apenas ao candidato, mas se estende ao seu círculo próximo: a de Bolsonaro é a única candidatura, junto com a do Cabo Daciolo, sem técnicos ou especialistas na equipe. Não há ninguém próximo que tenha trabalhado ou implementado política pública, ninguém com experiência administrativa, nada. A única pessoa bem formada na campanha de Bolsonaro, o empresário Paulo Guedes, apesar da bem-sucedida trajetória no setor privado, não possui credenciais para a gestão pública. Estamos diante de um “deserto de homens e de ideias”.
Mas o que parece a priori fraqueza, na realidade é a principal garantia de governabilidade do candidato, pois ela dá um sinal muito claro para diversos setores do empresariado: será feito, para cada setor, aquilo que for decidido por seu patronato. Logo, quem define a política pública não são os especialistas nem os técnicos, mas os lobistas. Um Estado completamente a serviço de alguns empresários e do lobbying corporativo é justamente o que a Operação Lava Jato combate. Mas só levando essa política a seu limite será possível Bolsonaro governar.
Qual será a política agrícola de Bolsonaro? Ele não sabe, será definida pelos empresários do ramo. Qual a política industrial? Ele não sabe, será definida pelos empresários do ramo. Na política ambiental, uma das raras propostas concretas do candidato é acabar com reservas ambientais e indígenas para permitir a farra de alguns empresários do agronegócio e da mineração. Na política de segurança, supostamente sua especialidade, ele não tem agenda: propõe terceirizar o problema para a população, que todos os cidadãos tenham porte de arma – o que é do interesse do lobbying de armas e munições. Na educação, basta colocar ensino religioso ministrado pelas igrejas evangélicas e terá o apoio do lobbying evangélico. Ao agradar os lobbies, transfere a eles a responsabilidade de negociar com os deputados e garantir a governabilidade de seu governo.
Nunca antes na história desse país, foi aberta uma oportunidade tão grande para um fisiologismo descontrolado: nem mesmo sob o governo do PT, que usou e abusou de crédito público e subsídios absurdos para beneficiar alguns empresários incompetentes, e que instituiu a compra de votos de congressistas em troca de apoio a projetos de governo. Se, no passado, o fisiologismo funcionava como um meio para a concretização de um projeto de país, com Bolsonaro a ausência de agenda torna o fisiologismo não mais um meio, mas a finalidade da ação política.
A sinalização disso vem justamente de deputados que tomaram a linha de frente da candidatura de Bolsonaro e que comandarão provavelmente as negociações com o Parlamento. São figurinhas recorrentes em escândalos de corrupção. Onyx Lorenzoni (DEM), futuro ministro da Casa Civil, codinome “inimigo” na lista da Odebrecht, já confessou ter recebido caixa dois da JBS; o senador Magno Malta foi indiciado pela Polícia Federal por formação de quadrilha na Operação Sanguessuga; e Luiz Nishimori, relator do PL do Veneno, é réu no Supremo Tribunal Federal por peculato e lavagem de dinheiro.
Até Bolsonaro ser atingido por uma facada, esse parecia ser o único cenário de condições de governabilidade de seu eventual governo. Desde então, o candidato se retirou de cena e subiram ao palco os outros cavaleiros teutônicos que o acompanham. Seu candidato a vice-presidente, general Hamilton Mourão, escancarou para o país um segundo cenário de condições de governabilidade bem mais intrigante.
O general deixou claro que em caso de “anarquia” durante o governo de Bolsonaro, pode haver intervenção das Forças Armadas. E quem define se há anarquia? Com base em que critérios? Nos critérios subjetivos da Presidência da República. Ao dizer que, diante de manifestações sociais, pode haver um autogolpe, Mourão revelou a possibilidade de garantir a governabilidade governando sem democracia, sob um regime de exceção.
Tal afirmação vem finalmente dar sentido à insistência no discurso de ódio por parte de Bolsonaro: contra petistas, esquerdistas, tucanos, defensores de direitos humanos, ambientalistas, artistas, historiadores e, especialmente, mulheres, população LGBT, negros e índios. Quanto mais discurso racista, misógino, homofóbico que agrida e deboche dos direitos humanos e de movimentos identitários, mais Bolsonaro organiza a oposição social contra ele.
O ataque de Bolsonaro gera uma reação multitudinária: é claro que haverá no dia de sua eventual eleição imensas manifestações contrárias à sua vitória, protagonizadas por um largo segmento da sociedade, especialmente por quem é alvo de seu veneno. Mesmo que as manifestações sejam pacíficas, os contingentes policiais – amplamente adeptos do bolsonarismo – não se absterão de partir para cima dos manifestantes, gerando confusão, violência e possíveis quebra-quebras.
Todas as decisões iniciais de governo e declarações da parte do presidente irão no sentido de jogar gasolina na política pelo confronto, provocando mais manifestações contrárias, até que se chegue ao nível de “anarquia” expresso por Mourão e à subsequente intervenção militar para manter a lei e a ordem. Nesse caso, Bolsonaro não precisará negociar com o Parlamento, pois este já estaria fechado. O discurso de ódio de Bolsonaro e a insistência no ataque às minorias são as sementes do autogolpe que está por vir, tal como profetizado pelo general reformado.
Para poder governar, Bolsonaro precisará ou enterrar a Lava Jato, ou enterrar a democracia. Definitivamente, o “Mito” governaria à base de plata o plomo. Mas plata o plomo para fazer o quê? Não está claro, pois Bolsonaro e seu círculo não têm absolutamente nenhuma proposta de desenvolvimento para o país ou de cuidado com seus cidadãos.
Pouco importa o cenário de condições de governabilidade: nos dois casos fica claro que o interesse é apenas ter o poder pelo poder. Bolsonaro na Presidência encarna o poder vazio de todo conteúdo. Ele quer ter a caneta na mão, mesmo sendo incapaz de escrever qualquer coisa. No Brasil de Bolsonaro, assim como na Idade Média, a soberania não será exercida para cuidar das pessoas e dos recursos, para o “fazer viver”, mas sim para o “fazer morrer”. No Brasil de Bolsonaro matar o inimigo é a única razão para se chegar ao poder.