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Platão e o poder da música

Na Antiguidade, a música possuía uma função catártica, de purificação. Colocava o corpo em equilíbrio, harmonizando-o com a ordem cósmica, preparando-o para a aparição do divino.

Paulo da Costa e Silva | 28 abr 2016_18h10
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Como se sabe, Platão condena os poetas no livro III de sua República. Se, por um lado,  tem Homero em alta conta, por outro, expulsa os poetas da cidade ideal. Essa aparente contradição, em que admiração e interdição convivem, revela os poderes consideráveis que o filósofo atribuía às artes. Os poetas são expulsos porque são traiçoeiramente sedutores. A obra de Homero pode ser deslumbrante, produto de um grande criador, mas não serve para edificar um povo. Os modelos que oferece são ruins.

À época de Platão, os jovens eram educados por meio das epopeias homéricas. Ouviam-nas todos os dias e delas extraíam parâmetros de conduta, noções de honra, nobreza, beleza e bondade. Atuando no plano afetivo, cognitivo e comportamental, as artes deviam servir a determinadas funções sociais. Na contramão do pensamento moderno, prazer e beleza como fins em si eram critérios insuficientes. Não fazia sentido contemplar uma obra apenas pela beleza de suas formas.

Se Platão expulsa os poetas da cidade ideal, é porque está interessado nas finalidades “ético-políticas” das artes. A poesia, em seu sentido amplo, representa os homens em ação. E ao representá-los engendra a empatia, esse sentimento peculiar que nos faz sentir a emoção do outro. A empatia em si é moralmente neutra, mas torna-se desejável ou temerária segundo os personagens com os quais somos conduzidos a nos identificar. Assim, quando os homens imitados  apresentam comportamentos condenáveis (como Édipo, Medeia, Menelau, Helena e até Aquiles, com seu ódio desmedido), ela induz o espectador a maus pensamentos. Os crimes, disputas, estupros e traições dos deuses do Olimpo fornecem, do ponto de vista do filósofo, tristes modelos.

Então por que o poeta insiste em imitar tipos humanos reprováveis? Por que não personagens inteiramente exemplares? Platão responde que o poeta é tentado a emular tais caracteres não por alguma depravação moral, mas pelas necessidades de sua arte. Tipos extremados, movidos por acessos de cólera e paixão, acabam por oferecer material dramático de mais interesse – são homens mais pitorescos, espetaculares e cativantes do que os tipos mais sóbrios.

Deve-se ter em mente que, para Platão, o mecanismo psicológico da empatia descarta o filtro da razão. Ao se dirigir à parte sensível e irracional da alma, à sensibilidade e à afetividade, a imitação de tipos extremados alimenta no espectador sentimentos ruins, quando, nos termos do filósofo, o melhor seria deixá-los “secar”. A alma é, assim, ameaçada por sua parte irracional. Acaba por fortalecer emoções indesejadas, que deveriam ser mantidas em sleep mode.  É por isso que devemos expulsar da cidade os poetas cuja arte, por suas formas e conteúdos, sustenta e desenvolve a face sombria do homem. O prazer não é, em definitivo, um bom critério de avaliação das artes – outros valores tomam-lhe a dianteira.

Mas nem tudo em Platão é censura e proibição. Como a arte deve ter um papel ativo na construção da pólis ideal, certos modelos são altamente recomendáveis. No próprio texto da República, ele aconselha a educação dos corpos pela ginástica e também pela musiké. Por essa palavra os gregos designavam uma combinação de poesia, música e dança. Na Antiguidade, a música possuía uma função catártica, de purificação. Colocava o corpo em equilíbrio, harmonizando-o com a ordem cósmica, preparando-o para a aparição do divino. Possuía também uma função mimética e indutora: se a poesia imitava os homens em ação, a música imitaria os estados de alma, suas emoções e virtudes. A cada modo musical atribuía-se um éthos, um caráter específico que o ouvinte associava de imediato a um significado psíquico, que poderia infundir ânimo e potencializar virtudes do corpo e do espírito.

Platão submete a música ao mesmo exame severo ao qual estão sujeitas as outras artes. Na visão do filósofo, existem harmonias boas e más, ritmos bons e maus. Certos modos (o lídio ou o jônico) devem ser censurados porque amolecem a alma; outros (o dórico ou o frígio) devem ser incentivados, pois exaltam a alma e inspiram coragem. Alguns ritmos chegam a ser proibidos, assim como certos instrumentos e inovações musicais. A ideia central da concepção platônica é resumida numa fórmula célebre e ainda hoje impressionante, justamente pelo poder que concede à música: “Introduzir uma nova forma de música, eis uma mudança da qual devemos nos precaver como de um perigo global. É que em lugar algum alteram-se os modos da música sem que se alterem as leis mais importantes da cidade.”

Ao contrário do que ocorre com a poesia, a música atua sobre as almas não pelo viés da empatia, mas de uma maneira subconsciente. Coloca em cena um novo tipo de influência, perigosamente eficaz. Porque nada mergulha mais fundo no cerne da alma do que os ritmos e as harmonias. Em um de seus últimos escritos, As Leis, o filósofo afirma que os cantos e as danças permitem acalmar os desequilíbrios emocionais, ensinam a dominar as manifestações somáticas dos afetos e das paixões. De todas as artes, a música é, sem dúvida, aquela cujos efeitos são os mais profundos e insidiosos.

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