A Rádio Novelo apresentou ao vivo na Casa de Histórias, na Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, seu novo podcast, Fio da Meada, que estreia amanhã. O programa de entrevistas, apresentado por Branca Vianna, fundadora e presidente da Novelo, terá novos episódios às segundas-feiras, com conversas a respeito de temas atuais de cultura, política, sociedade e outros tópicos.
Em uma entrevista diante da plateia, que foi gravada e dará origem a um dos episódios a ser publicado em novembro, Vianna recebeu o escritor e sociólogo Evandro Cruz Silva para falar sobre um tema caro a ele: o abolicionismo penal. Ela disse que se deparou com esse conceito durante a feitura dos podcasts Praia dos Ossos e Crime e Castigo, mas que este ainda é um assunto que lhe desperta dúvidas. “Quanto mais eu leio, mais confusa eu fico”, contou, no começo da conversa.
O abolicionismo penal prioriza a prevenção, a conciliação, a descriminalização, a justiça restaurativa, entre outras medidas para desidratar os sistemas penal e carcerário – e, num horizonte utópico, extinguir as prisões. Para ele, colocar pessoas “dentro de uma jaula” é uma prática que fomenta interesses bem particulares – da polícia, que assim cresce em contingente e poder. aos fornecedores de serviços para presídios – enquanto deixa a sociedade menos segura.
Entre o estágio atual de celas superlotadas e o fim absoluto do encarceramento, ele enxerga gradações possíveis. O sociólogo afirma que seria um grande avanço tirar da prisão pessoas presas por tráfico de drogas e crimes contra o patrimônio sem prática de violência (como furto e receptação), que são o motivo de aprisionamento da maioria da população carcerária brasileira, e lidar de outra maneira com esses casos. Ele lembra que hoje não são todos os criminosos que estão na cadeia – mas apenas aqueles que a polícia e Justiça conseguem colocar lá, com um recorte social e racial bastante evidente.
Silva compara o abolicionismo penal, uma ideia hoje estranha aos olhos da maioria, à luta antimanicomial, que se tornou praticamente um consenso. E exemplificou: é preciso avançar para um futuro no qual alguém ficar preso por um ano por furtar uma pasta de dente seja um absurdo tão evidente aos olhos de qualquer um quanto colocar alguém com problemas psicológicos em um manicômio.
O desejo de punir com prisão, lembra Vianna, está em todos os espectros ideológicos, inclusive na esquerda, especialmente em crimes ambientais, raciais ou de ataques à democracia. “Por que o campo progressista cai nessa tentação?”, ela perguntou. Políticos de esquerda também querem “surfar na popularidade do punitivismo”, respondeu ele. “É muito popular a ideia de colocar certas pessoas na cadeia.”
Para ele, “estamos aumentando a autonomia da polícia a um nível inverificável”, ainda que haja avanço em algumas iniciativas, como a adoção (ainda de forma hesitante) de câmeras corporais pela polícia, que ajuda a coibir injustiças e práticas criminosas dos próprios agentes.
Silva tem 32 anos e é doutor em ciências sociais pela Universidade de Campinas e pesquisador do Núcleo de Etnografias Urbanas do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Sua verve criativa tem chamado a atenção nos círculos literários. Em 2020, ele ficou na segunda colocação do Prêmio Nacional de Ensaísmo, da revista Serrote, com um texto que aproxima o filme Orfeu negro, do francês Marcel Camus, baseado na obra de Vinicius de Moraes e vencedor da Palma de Ouro em Cannes, em 1959, do livro clássico de Abdias Nascimento, O genocídio do negro brasileiro: Processo de um racismo mascarado, de 1978, ainda hoje uma referência para se entender a condição do negro no Brasil.
Em 2021, publicou o livro de contos Praia Artificial e, dois anos depois, a novela A dor nas costas. Em abril, lançou o primeiro romance, O embranquecimento, pela editora Patuá, em que discute o ideal de branqueamento da sociedade brasileira a partir da perspectiva de Macária, jovem estudante de história da arte, beneficiada pela política de cotas, que é filha de uma faxineira negra da universidade pública com um funcionário branco da instituição.