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    Thamyres Oliveira com a camiseta com a foto do amigo morto no ponto do ônibus - FOTO DE FELIPE FITTIPALDI, COM INTERVENÇÃO DE PAULA CARDOSO

anais da tragédia brasileira

“Poderia ter sido eu a morrer ali no ponto de ônibus”

Como a morte espreita a juventude negra no Rio de Janeiro, estado com maior taxa de homicídios em ações policiais

Caio Barretto Briso | 10 set 2019_10h00
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“A gente estava aqui”, e Thamyres aponta a pequena varanda da casa de três andares onde mora com a mãe desde que nasceu. A menina não se lembra, mas a mãe, Enedina Silva de Oliveira, não esquece a tarde de 15 de maio de 2003. Policiais subiram o Morro do Borel e encurralaram bandidos no Terreirão, ponto mais alto da favela na Usina, Zona Norte do Rio. Thamyres, então com 2 anos, pediu colo. A mãe ia pegá-la nos braços, mas desistiu e a mandou brincar com sua irmã. De repente uma rajada ecoou no morro, e um tiro atingiu a mãe de Thamyres pelas costas, atravessando seu corpo. Enedina teve que ser carregada para fora da favela no meio da operação policial, com tiro por todo lado. “Eu ia pegar a Thamyres no colo, mas na hora mudei de ideia. É cada livramento na vida dessa garota. Deus tem algo muito bom guardado para ela”, diz dona Dininha, como Enedina é conhecida no morro.

Dezesseis anos depois, Thamyres Silva Rosa de Oliveira e Gabriel Pereira Alves descem juntos a ladeira íngreme do Borel. Ele estava atrasado: havia perdido o primeiro tempo de aula, num colégio público da Tijuca. Chegaram juntos à Rua Conde de Bonfim e aguardavam a mesma linha na calçada do antigo Carrefour. A morte chegou antes do ônibus 426. Quando tiros soaram, durante uma operação policial no Borel, o garoto levou a mão ao peito. “Para de brincadeira”, Thamyres teve tempo de dizer. Antes de cair “em câmera lenta”, segundo ela, o estudante e jogador de futsal só conseguiu responder: “Não tô brincando, fui baleado.” Eram 7h15 de sexta-feira, 9 de agosto, numa semana em que seis jovens inocentes foram mortos a tiros na Grande Rio, quatro deles durante operações policiais, caso de Gabriel. 

Ninguém sabe ao certo de onde veio a bala que atingiu o peito do rapaz. A Polícia Militar alega que policiais da UPP foram recebidos a tiros no Borel, e que não revidaram. De acordo com a Delegacia de Homicídios da Capital (DHC) as investigações estão em andamento e até o momento não há informações a serem divulgadas sobre o caso. Gabriel entrou na estatística de “mortes por bala perdida” durante operações policiais.

Num momento em que a violência policial cresce no país, o Rio de Janeiro é o estado onde a polícia mais mata. De acordo com os dados do Anuário de Segurança Pública,  divulgado nesta terça-feira pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Rio está em primeiro lugar em dois rankings diferentes: tem a maior taxa de mortes provocadas pela polícia, de nove a cada 100 mil habitantes, e também a polícia que mais aumenta a estatística estadual de assassinatos. Em outras palavras, a proporção de vítimas de operações policiais, em comparação com o total de assassinatos, é maior no Rio de Janeiro do que no restante do país. De cada cem homicídios no Rio em 2018, 23 foram cometidos por policiais. É o dobro da média nacional. Dessa forma, se não fosse a polícia fluminense, os números de pessoas assassinadas no Rio de Janeiro cairiam drasticamente. Na mira estão jovens negros e pardos (85% dos mortos pela polícia).

O pai de Gabriel, Fabrício Alves, diz que até agora não sabe o calibre da bala que matou seu filho. “Não tive informação nenhuma, não sei o que houve, ninguém me procurou, estou de mãos atadas. Como sempre, no pensamento deles, meu filho é só mais um na estatística.” Nos últimos meses, a exacerbação da violência policial no Rio transformou morros e favelas em palco de tiroteios constantes, e no Borel não tem sido diferente. Em maio, uma operação policial deixou quatro mortos na favela, com apreensão de um fuzil. No dia 30 de julho, policiais mataram um dos chefes do tráfico, e os bandidos mandaram fechar o comércio das ruas do entorno. Na véspera da morte de Gabriel, houve nova operação. Na manhã em que ele morreu, os grupos de WhatsApp dos moradores estavam em alerta: uma nova ação policial era esperada por todos – só não imaginavam que seria na hora em que crianças e adolescentes estivessem indo para a escola. 

Thamyres, de 18 anos, nasceu doze dias antes de Gabriel, ambos em maio de 2001. Como as mães são amigas, cresceram juntos no Borel. Quando viu o amigo de infância no chão, Thamyres quase foi atropelada ao atravessar correndo a rua para pedir socorro em um ponto de motoristas de Uber, na entrada da favela. Um dos motoristas levou-os até o vizinho Hospital São Francisco de Assis. Ao contrário da mãe de Thamyres, Gabriel não resistiu: morreu no banco de trás do automóvel, com a cabeça no colo da amiga, antes mesmo de chegar ao hospital.

Na última segunda-feira de agosto, dezessete dias depois da morte de Gabriel, Thamyres ainda não conseguia parar de pensar na tragédia. Ligou de madrugada para o celular da mãe dizendo que estava no Arpoador pensando na vida. Antes de voltar para casa, parou na porta do hospital onde Gabriel chegou morto. Sentada na Praça Professor Pinheiro Guimarães, em frente ao hospital, chorou até o amanhecer. 

Não é de hoje que jovens negros são as principais vítimas da violência no Brasil. Os homicídios por arma de fogo das pessoas com esse perfil aumentaram 428% em vinte anos, segundo relatório divulgado este ano pela Fundação Abrinq, baseado em informações do Ministério da Saúde. Foram 1 450 assassinatos em 1997 – em 2017, 7 670. O número de jovens brancos assassinados no mesmo período subiu 102%, de 772 para 1 563. No Rio de Janeiro, 78,1% dos jovens assassinados em 2017 eram negros. 

Para o economista e pesquisador do Ipea Daniel Cerqueira, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e coordenador do Atlas da Violência, “a juventude negra é vitimada duas vezes”. Segundo ele, “antes da morte por assassinato, já houve uma morte simbólica e econômica desses jovens. A sociedade brasileira relegou a uma vida de severas restrições uma grande parcela da população. São pessoas que não tiveram oportunidade de um bom desenvolvimento infantil. A dificuldade de conseguir o primeiro emprego é total. Muitos vão se juntar a gangues, e reproduzir essa espiral de violência e vingança”, afirma. “Ao invés do ‘tiro na cabecinha’, modelo que já sabemos há décadas que não funciona, deveriam ser elaboradas políticas públicas qualificadas, baseadas em planejamento, com ações de prevenção social. E uma polícia moderna que funcione à base de investigação e inteligência, para identificar e prender os mais perigosos, principalmente homicidas e milicianos.”

Segundo Cerqueira, o chamado “pacote anticrime”, levado ao Congresso pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, “é fake, não tem nada de anticrime, é um acúmulo de inúmeras ações que não se sabe ao certo para que servem. Pode gerar um efeito contrário ao esperado e a uma política totalmente equivocada”. Cerqueira critica o que chama de “populismo penal”: “Vamos endurecer e aumentar as penas para manter o criminoso preso. O Brasil tem 79 facções criminosas, todas elas nasceram na cadeia. Nossas prisões estão superlotadas de ladrões de galinha. Só investindo em polícia qualificada vamos identificar e prender corretamente. Isso não pode ser feito por lei, mas por um trabalho intensivo de gestão”, argumenta.

Os tiros que matam os jovens atingem famílias inteiras. Após perder seu irmão caçula, Roberto, de 16 anos, na chacina de Costa Barros, Vinicius Souza, de 26, viu a família desmoronar, e a vida de sua mãe se esvair. Joselita de Souza morreu de tristeza apenas oito meses após perder seu caçula. Ele e quatro amigos, todos negros, foram assassinados com 111 tiros por quatro policiais militares, quando voltavam de uma lanchonete após passarem o dia no Parque Madureira, onde foram comemorar o primeiro salário de Betinho – que era jovem aprendiz em um supermercado, primeiro e último trabalho de sua vida. 

Joselita era uma mulher cheia de vigor, dona de um salão de beleza, mas mergulhou tão fundo na depressão que nunca mais abriu seu negócio. Vivia trancada em casa, sem comer, sem conseguir dormir, até que o filho a levou para morar com ele, em Vilar dos Teles, São João de Meriti. Pouco tempo depois, ela deu entrada em um posto médico da rede pública com parada cardiorrespiratória, antes de descobrir um quadro de pneumonia e anemia. Morreu três dias depois, sem sequer conseguir transferência para um hospital, onde teria mais chances de sobreviver. Tinha 44 anos.

“Agora estou trabalhando numa lanchonete e fazendo uns bicos como segurança. Parece que tudo desandou de uma maneira que só Deus sabe. Mas vou levando a vida, completo em dezembro dois anos de casamento. Passei o Dia dos Pais com meu pai. Daquele jeito, uma ausência enorme na casa. Se eu não for forte, meu pai cai junto”, afirma Vinicius.

Acusados pelo massacre de Betinho e seus quatro amigos, em 28 de novembro, estão presos os soldados Antônio Carlos Gonçalves Filho e Thiago Resende Viana Barbosa, o cabo Fábio Pizza Oliveira da Silva e o sargento Marcio Darcy Alves dos Santos. Eles têm julgamento marcado para o dia 24 de setembro.

Caçula de três filhos, Wylbert Cunha, de 25 anos, também perdeu Rafael, o irmão do meio. Todos os dias, os dois iam e voltavam do colégio particular que a mãe pagava com sacrifício no bairro do Riachuelo. Foi Rafael quem deu para Cunha seu primeiro videogame. “Era um herói para mim”, ele recorda enquanto faz bico numa lanchonete do Jacarezinho. Também é maqueiro no Hospital do Andaraí, mas demorou a retomar a vida após o assassinato do irmão, então com 20 anos, durante uma operação policial no dia 5 de dezembro de 2006. 

Após três passagens pelo Degase (Departamento Geral de Ações Socioeducativas), Rafael entrou para o tráfico de drogas e se instalou no Jacarezinho antes de ir para a favela do Rato Molhado. “Ele era muito querido lá. No dia do enterro dele, fiquei impressionada com a quantidade de pessoas que eu nunca tinha visto. Não estou falando de molecada, mas de pessoas de idade”, conta Mônica Cunha, mãe dos meninos. Ela se tornou uma das mais importantes defensoras dos direitos humanos na cidade, fundadora do Projeto Moleque, que trabalha pela garantia dos direitos da criança e do adolescente.

“Passei muito sufoco, pois eu era apegado a ele. Eu o via como ponto de referência. Quando ele morreu, fiquei revoltado. Mesmo hoje ainda sofro”, afirma Cunha. “Foi com o tempo que eu amadureci, e passei a entender que sofrer não faria ele voltar.” Negro como o irmão, Cunha já sentiu medo de morrer uma vez, quando policiais algemaram ele e sua ex-mulher, na entrada da favela, pensando que fosse traficante. “Fizeram covardia com a gente, bateram em mim, esculacharam minha ex-esposa, deram um tiro para o alto e me levaram para a delegacia. Foi o caso mais grave, mas foram muitos outros episódios de violência.” Para se proteger, procura sempre andar com o crachá do trabalho, e já chegou até mesmo a carregar consigo as folhas de ponto do hospital. “O Rio de Janeiro é perigoso, agora piorou. Tenho medo de andar por aí. Eles [policiais] são covardes.”

Desde a morte de Gabriel, que completou um mês nesta segunda-feira, 9 de setembro, a situação está tensa no Borel. Os moradores temem por suas vidas, especialmente no Terreirão, foco das operações desde que Thamyres era bebê. A morte de Gabriel em seus braços fez a jovem repensar a vida. Terminou com o namorado e, quando não está na escola ou no pré-vestibular, tem passado as tardes na casa de uma tia, também no Borel. Tem medo de ficar só. Visita os pais de Gabriel quase diariamente. Parou de pegar a linha 426. Para evitar aquele ponto de ônibus, agora anda um pouco mais e espera o 603. Está voltando a sair à noite com amigas, uma das poucas alegrias em sua vida. A mãe acha que ela está bebendo demais – sua bebida preferida é whisky. “Estou preocupada. Ela precisa fazer terapia, conversar com um psicólogo”, diz Dininha. A menina ainda busca palavras para descrever sua dor. “Às vezes estou rodeada de gente, mas me sinto sozinha.” Estudar não tem sido fácil, mas ela está confiante e se prepara para o Enem e os vestibulares.

Thamyres sonha em ser médica. Quer isso desde a morte da avó Maria, que ela acompanhou tantas vezes em hospitais. Começou a se preparar no primeiro ano do Ensino Médio, quando conseguiu uma bolsa por desempenho escolar no colégio MV1. Aos 9 anos, soube por um médico da rede pública que a avó tinha pouco tempo de vida e começou uma campanha de oração na igreja evangélica que frequentava. A avó melhorou após as orações, e a família passou a acreditar que Thamyres tem uma relação especial com Deus. Três anos depois, outro médico disse para Thamyres, sem que a avó escutasse, que a senhora tinha apenas seis meses de vida. A menina escondeu a informação como um segredo. “Deus guarda essa garota”, repete Dininha, que trabalha como diarista em casas da Tijuca e do Leblon. Sentada em sua cama – a mesma que pertencia à avó Maria –, Thamyres chora.

Assim que puder, quer tirar a mãe da favela. As duas cansaram de ser alvo e sabem que a morte chegou muito perto, cada vez mais perto. “Dói muito a morte do Gabriel. Era um menino cheio de sonhos, ia se formar no Ensino Médio, começaria a autoescola, fazia curso de administração”, conta Thamyres na laje de casa, de onde vê os morros da Formiga, Coreia e Cotingo. “Poderia ter sido eu a morrer ali no ponto de ônibus.”

 

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