Originalmente, eu pretendia refletir apenas sobre a influência do bolsonarismo na Polícia Federal. Todavia, a diferença de tratamento dispensada pelas Polícias Militares aos manifestantes pró e contra o governo que ocuparam as ruas neste domingo (31) no país reforçou a sensação da segurança pública como um setor fraturado e partidarizado. Enquanto manifestantes pró-democracia eram dispersados da avenida Paulista, em São Paulo, com dezenas de bombas de efeito moral, um vídeo que circula nas redes sociais mostra um policial abraçando uma manifestante bolsonarista, munida de um taco de beisebol com a inscrição “Rivotril”, para afastá-la para longe da manifestação pró-democracia.
A filmagem mostra que a manifestante estava visivelmente alterada. Mesmo assim, o policial militar não só não apreendeu o taco de beisebol que poderia ser usado como arma branca como, mais grave, deixou sua arma de fogo ao alcance da mão da manifestante, que poderia tê-la sacado e atirado no policial ou em quem estivesse ao redor. O policial assumiu um padrão de risco completamente diferente daquele recomendado. Fica a pergunta se fez isso por simpatia à causa defendida pela mulher.
Cenas de aparente proteção aos grupos pró-Bolsonaro também ocorreram no Rio de Janeiro. Elas já deveriam ter servido de alerta para o Ministério Público exercer seu papel de controle externo da atividade policial e cobrar isonomia de tratamento e neutralidade política. Nesse clima de tensão, pautas legítimas das polícias, abandonadas à própria sorte por diversos governos, vão servindo de pretexto para a transformação de policiais em políticos e vão sendo apropriadas pelo bolsonarismo.
É na Polícia Federal que as fronteiras entre polícia e política, duas dimensões fundamentais da vida republicana, ficam mais tênues. Não são poucas as histórias da PF envolvendo escândalos políticos. As denúncias do ex-ministro Sergio Moro de que o presidente Jair Bolsonaro quis fazer mudanças na PF para ter acesso a informações sigilosas sobre inquéritos que poderiam afetar sua família são versões repaginadas de histórias recorrentes nos últimos anos.
Durante o governo FHC, Vicente Chelotti foi demitido do cargo de diretor geral da PF em 1999, após vazamento de versão de que ele dispunha de gravações comprometedoras envolvendo o então presidente. Poucos meses depois, o cargo de diretor-geral foi assumido por Agílio Monteiro Filho, que era filiado ao partido do presidente (PSDB) ao mesmo tempo que ocupava o principal cargo da Polícia Federal.
Já no primeiro governo Lula, o delegado Paulo Lacerda, muito próximo ao falecido ex-ministro Márcio Thomaz Bastos, aproveitou que, em 2001, mais de 500 delegados tinham sido contratados para viabilizar um amplo projeto de modernização da PF, que focou na contratação de novos quadros e no investimento em tecnologia e inovação. Este seria um dos momentos mais importantes da história recente da corporação, pois foi a partir dele que ela reforçou seu projeto institucional de independência e autonomia. Porém, isso não livrou o delegado de protagonizar uma crise política.
Em 2008, no segundo mandato de Lula, Paulo Lacerda, que havia sido deslocado para a direção da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), foi exonerado após ser responsabilizado por um grampo de uma conversa entre o então presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, e o senador Demóstenes Torres (DEM-GO). Fora do governo, Lacerda passou a prestar consultoria para empresas de segurança privada que eram reguladas e fiscalizadas pela PF.
Luiz Fernando Corrêa assumiu o posto de diretor-geral após ter sido Secretário Nacional de Segurança Pública e ter estimulado que dezesseis secretarias estaduais de segurança pública fossem ocupadas por delegados federais. Ele também foi um dos criadores do sistema Guardião, que armazena milhares de interceptações telefônicas, e prestou serviços ao Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos. Em seu lugar, durante o mandato de Dilma Rousseff, assumiu Leandro Daiello Coimbra, que ficou à frente da direção-geral da PF por seis anos e dez meses. Foi ele que garantiu liberdade de funcionamento da Operação Lava Jato e notabilizou-se por ser um dirigente que se equilibrava em uma delicada gangorra de pressões políticas internas e externas.
No governo Temer, Fernando Segovia assume e logo depois é acusado de tentar proteger o ex-presidente em inquérito que investigava irregularidades no Porto de Santos. Segovia deixou a direção-geral depois de apenas 99 dias. Digno de nota, Segovia foi uma indicação direta do presidente Michel Temer. O mesmo ocorre agora com o delegado Rolando Alexandre de Souza, indicado pelo presidente Bolsonaro. Souza montou uma equipe sem a participação de policiais mais antigos, o que tem incomodado delegados de turmas do final dos anos 1990 e começo dos 2000. Há um desconforto dos antigos com essa situação, em que pese ele ter sido habilidoso, por exemplo na tramitação da MP 918. Antes de ser DG, Souza havia se destacado por fazer funcionar, mesmo que ainda não em todas as unidades da polícia, o sistema Atlas, que acessa diferentes bases de dados para a obtenção de informações sobre um investigado.
Essa breve galeria de alguns dos ex-diretores-gerais da PF nos ajuda na compreensão da importância estratégica, para um político, de ter um aliado na direção-geral da corporação. A PF tem uma estrutura que dá grande poder ao diretor-geral e aos seus superintendentes, que podem, no limite, nomear delegados para investigações específicas e/ou fixar os recursos logísticos com que cada inquérito poderá contar. Isso mostra que nenhuma instituição é imune ao uso político, ainda mais quando seus próprios integrantes militam e fazem parte de um projeto político de poder.
E aqui entra o principal vetor de influência do bolsonarismo. Em 2018, entre delegados e demais policiais federais, foram eleitos seis deputados federais, quase todos por partidos simpáticos a Jair Bolsonaro. Entre eles, o filho do atual presidente, Eduardo Bolsonaro, escrivão licenciado da Polícia Federal. Também foi eleito o policial federal Ubiratan Antunes Sanderson (PSL/RS), hoje um dos vice-líderes do governo na Câmara dos Deputados.
Essa confluência política fortaleceu, em um primeiro momento, a posição da Federação Nacional dos Policiais Federais – Fenapef, que tem uma pauta histórica em torno de uma carreira única na corporação. Até 2018, a Fenapef era composta por dois grandes grupos, sendo um muito próximo às propostas de Eduardo Bolsonaro. A partir de 2019, a Federação tem sido forte apoiadora de vários dos projetos governamentais da gestão Bolsonaro.
Mas esse apoio não é apenas ideológico. É pragmático e está associado às disputas intestinas com os delegados afiliados da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal(ADPF). As duas associações têm travado brigas intensas nos últimos anos e muito do que acontece na PF pode ser traduzido a partir dos embates entre elas. A PF é hoje estrutural e politicamente cindida entre suas diversas carreiras e é quase impossível construir consensos.
Mesmo entre os policiais mais aderentes ao bolsonarismo, a divisão entre os filiados das várias associações mostra-se muito forte e impede a formação de um único bloco hegemônico. Há confluência ideológica de muitos, mas há disputas internas demais. Um exemplo é a MP 918, que cria mais de 450 funções gratificadas. A Medida Provisória é uma vitória da ADPF junto ao governo.
Agregue-se a isso o fato de os delegados federais estarem divididos por turmas de ingresso na carreira. Os mais antigos, que ingressaram antes de 2003, são respeitados, mas, na atual gestão, estão fora dos principais cargos de direção da PF. E isso gera tensão pois são as turmas do início dos 2000 que podem ser vistas como aquelas que fizeram a transição de uma polícia federal política para uma polícia federal técnica.
Há ainda os delegados e agentes ligados à operação Lava Jato e, portanto, próximos ao ex-ministro Sergio Moro, e há um número bastante grande de delegados, agentes e peritos formados na ideia de uma polícia de Estado e não de Governo, com foco no combate à corrupção e nos crimes federais. Só mais recentemente a PF viu-se como parte do sistema de segurança pública e de enfrentamento ao crime organizado de base prisional. Por fim, são poucos os declaradamente contrários ao atual governo.
Como resultado, a PF apresenta um grau de fragmentação e politização muito alto que dificulta as tentativas de cooptação por parte do governo de Jair Bolsonaro. Há, sem dúvida, um ambiente crescente de adesão ao projeto político liderado pelo presidente, mas, em um primeiro momento, ele ainda não tem força para construir coesão em torno de um novo projeto institucional. Até porque o grupo que se mostra mais entusiasta do atual governo foi sendo cedido para ocupar posições em outros órgãos públicos, a exemplo da Abin, do Ministério da Agricultura e o da Cidadania.
Mas esse mesmo grau de politização que impede a tomada de assalto da corporação por parte dos projetos de governo é o mesmo que impede a aprovação pelo Congresso de maior autonomia da Polícia Federal. Nesse jogo de soma zero, a PF fica fragilizada e suscetível às pressões. Para evitar esse risco, é preciso fortalecer mecanismos independentes de transparência e prestação de contas que neutralizem preferências partidárias e fortaleçam a instituição.