No dia 20 de outubro, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, proferiu uma decisão que combinaria melhor com o timbre da Congregação para a Doutrina da Fé, no Vaticano, do que com o de uma corte laica brasileira. A partir daquela data, segundo determinação dos desembargadores, as Católicas pelo Direito de Decidir – uma das mais antigas e atuantes ONGs do país em defesa do direito sexual e reprodutivo das mulheres – ficavam proibidas de continuar a usar o termo “católicas” em seu nome. Nenhum material produzido por elas pode conter o adjetivo e nenhuma de suas integrantes tem o direito de se identificar assim publicamente, sob pena de multa diária de mil reais. Para fundamentar a decisão, os desembargadores citaram, entre outros argumentos e referências, um artigo de jornal escrito por Olavo de Carvalho, guru da extrema direita.
A decisão respondia a uma ação movida pelo Centro Dom Bosco de Fé e Cultura, organização ligada à direita católica, cuja missão, segundo seu site, é a de formar “soldados de Cristo por meio da via espiritual e intelectual para atuar na cultura defendendo a fé verdadeira”. A história do Centro Dom Bosco se cruza com a mais recente onda conservadora da política nacional. E o confronto de seus associados com defensoras dos direitos sexuais e reprodutivos precede o conflito judicial provisoriamente resolvido pelo desembargador.
Em agosto de 2018, por exemplo, conforme reportagem da revista Época, um grupo de integrantes do Centro Dom Bosco do Rio de Janeiro organizou uma manifestação que tinha como objetivo imediato “converter abortistas” e defender a tradição da Igreja. Reagiam à convocação, para aquele mesmo dia, de demonstrações públicas em defesa ao direito ao aborto. A longo prazo, o grupo religioso conservador almejava a “recristianização do Brasil” e o fim do estado laico. A passeata seguiu pela Avenida Presidente Vargas, no Centro do Rio, em direção à Igreja da Candelária. Dela participavam manifestantes carregando cartazes com imagens de fetos mortos, monarquistas rezando em voz alta e senhoras idosas de organizações “pró-vida”. Muitos vestiam camisetas estampando apoio ao então candidato Jair Bolsonaro.
Na Candelária, a marcha do Centro Dom Bosco foi recebida por aplausos. Isso porque manifestantes em apoio à passeata já se concentravam nas imediações da igreja – haviam sido convocados por outra ativista, Sara Winter. Reunidos afinal em uma única passeata, os grupos se dirigiram à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, mas não sem antes demonstrarem uma espécie de disposição simbólica para proteger o patrimônio da Igreja – deixando à vista alguns bastões, escudos e até espadas, ao melhor estilo medieval. Não houve confronto, porque não havia qualquer outro grupo na praça ou dirigindo-se a ela, tampouco, naquele local, uma das manifestações em defesa dos direitos sexuais e reprodutivos convocadas para o mesmo dia na cidade.
Uma das articuladoras da marcha do Centro Dom Bosco era a advogada do grupo – e à época também pré-candidata a deputada federal – Christine Tonietto. Então com 27 anos, ela seria eleita deputada poucos meses depois, pelo PSL, angariando quase 39 mil votos. Na função de advogada do Centro Dom Bosco, Tonietto foi a responsável por ajuizar ação indenizatória contra o grupo de humor Porta dos Fundos, numa reação aos vídeos satíricos com temas religiosos produzidos pelos comediantes.
Nota-se, portanto, que a ação recentemente julgada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo não foi um episódio isolado. Ao contrário, para os membros do Centro Dom Bosco, tratava-se de mais uma etapa em sua missão maior de proteger o cristianismo e de cristianizar o Brasil. No banco dos réus estavam as Católicas pelo Direito de Decidir, que, além de atuarem na promoção de direito à saúde da mulher e de escolha sobre sua própria gestação, também defendem o Estado laico. Articuladas em uma rede internacional que congrega associações de mesmo tipo em outros doze países, as Católicas têm presença frequente em manifestações públicas, além de destacada atuação em audiências públicas sobre a criminalização da interrupção voluntária da gravidez.
A decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo é uma peça de sessenta páginas que acaba por confundir quem a lê sobre a natureza daquela corte, se eclesiástica ou cível. A decisão que fundamentalmente proíbe as Católicas de se apresentarem como católicas estabelece um novo marco no Judiciário brasileiro: para além dos casos de juízes que se tomam por Deus, agora também há quem se outorgue a competência de dizer quem pode ser fiel.
A acusação do Centro Dom Bosco argumenta que o uso do termo católicas pelas Católicas é ilícito, uma vez que elas defendem “homicídio de bebês no útero materno”, o que estaria em “descompasso com a doutrina absolutamente clara da Igreja”. E prossegue, utilizando letras garrafais: “No que diz respeito à fé, os católicos não são democráticos. Se católica fosse, [a organização] estaria em plena comunhão com a Igreja. É estranha para verdadeiros católicos a afirmação ‘professar a sua fé da forma como bem quiserem e entenderem’. As representantes do grupo recorrido podem professar a fé que quiserem. Mas NÃO SÃO CATÓLICAS!”
Para qualquer analista minimamente familiarizado com a literatura especializada nesse tema, o equívoco é elementar: confunde-se catolicismo com a Igreja Católica. O catolicismo é maior que a Igreja Católica. Afinal, alguém com honestidade intelectual se autorizaria a dizer que os 64% dos autodeclarados católicos no último censo do IBGE se alinham integralmente com o que roga o direito canônico e o catecismo oficial da Igreja? Se esse fosse o caso, não haveria católicos que nunca frequentam a missa, nem aqueles que eventualmente participam de sessões espíritas; não haveria nenhuma tradição de religiosidade popular, nem lugar para a massa dos quase 35% de autodeclarados católicos que, não obstante, se dizem simpáticos a outras tradições religiosas.
O Tribunal de Justiça, ao acolher e decidir favoravelmente à denúncia de heresia – para dizer o nome que as coisas têm, e que deveria ter sido dado ao processo –, afirmou que a ilicitude das Católicas se declararem católicas é autoevidente. Segundo a sentença, há “PÚBLICA, NOTÓRIA, TOTAL E ABSOLUTA incompatibilidade com os valores mais caros adotados pela associação autora e pela Igreja Católica de modo geral e universal, segundo o qual não dependem de prova dos fatos”. A sentença corre nesses termos, às vezes nem sequer “provas dos fatos” são necessárias.
Vale perguntar, é claro, quais seriam os católicos dignos de nome. Mas a sustentação da sentença percorre outro caminho, optando por deixar claro quem não seria. É imbuído desse espírito inquisidor que o magistrado afirma, na decisão, que segundo o “Direito Canônico quem procurar o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae (aquela em que o fiel incorre no momento que comete a falta previamente condenada pela religião), se traduz em INEGÁVEL DESSERVIÇO À SOCIEDADE, não interessando a quem quer que seja a existência de grupo com nome que não corresponda a sua autêntica finalidade”. E continua, em juridiquês: “Reitere-se que referida doutrina [da Igreja] é absolutamente clara, notória e pública sobre o QUINTO MANDAMENTO (NÃO MATARÁS previsto na Bíblia, em Êxodo 20, 13)”.
Se na decisão não fica claro quem seriam os verdadeiros católicos, o Pontifício Tribunal de Justiça não se furta em afirmar qual deve ser o lugar e o comportamento adequado às mulheres católicas. O relator cita o padre Paulo Ricardo, um líder conservador dentro da igreja, ao registrar na decisão: “O mesmo se diga em relação à pretendida ‘equidade de gênero’ nas Igrejas, como se a Igreja não guardasse um papel sublime, mas específico e próprio às mulheres”. Sem equidade de gênero e, mais importante ainda, como expresso na decisão, ainda citando o padre Paulo Ricardo, obedientes: “Eva ouviu um anjo mau no Paraíso, desobedeceu a Deus e com aquele ato entrou [sic] no mundo a escravidão e o pecado. Maria, num outro jardim, ouviu o anjo Gabriel e obedeceu, dizendo ‘Eis aqui a serva do Senhor’ e nunca uma mulher foi tão absolutamente livre e desapegada. É por isso que ela é chamada de ‘a mais feliz de todas as mulheres’, a bem-aventurada.”
Não satisfeito em interpretar o Gênesis, o relator evoca em sua decisão a “unânime oposição pública” ao aborto por parte dos verdadeiros católicos. Cita com destaque, nos autos, a percepção de dois desses “verdadeiros” fiéis sobre os direitos reprodutivos. Novamente o padre Paulo Ricardo, acompanhado agora de Olavo de Carvalho, bastiões destacados da fé, segundo a sentença. A opinião de Carvalho é extraída de uma coluna publicada por ele no jornal O Globo, em 2005: “Cá com os meus botões, acho mesmo que os seres mais desprezíveis do planeta são aquelas senhoras e senhoritas que querem que tenhamos peninha delas porque a Igreja malvada não as deixa matar seus bebês.” O do segundo tem ares mais escatológicos: “O aborto é simplesmente o autógrafo do demônio nos ventres das mulheres, porque é ele o primeiro abortista.”
A decisão, mesmo que esdrúxula, abre um grave precedente ao judicializar o direito à autoidentificação. Além disso, ataca uma das ONGs mais antigas e organizadas do país na defesa do direito sexual e reprodutivo das mulheres. Cerca de duas semanas depois, uma outra decisão da Justiça – sobre um caso de estupro, em Santa Catarina – veio nos lembrar mais uma vez, de resto, de que a sentença do TJ paulista não era um caso isolado, excepcional. Em um intervalo de quinze dias, brasileiras que lutam pelos próprios direitos tiveram sua ação cerceada, enquanto uma vítima de abuso era atacada ao buscar justiça.
Daí a necessidade de tentar entender a recente onda conservadora no país, o que exige, por sua vez, olhar para a atuação de grupos católicos que dela participam. Aliás, grupos considerados católicos justamente porque se denominam assim – o que não os impede, como a qualquer católico, de ocasionalmente deixarem de seguir o mandamento fundamental, de amor ao próximo, ensinado por Jesus.