De fazer faxina por 62 reais a dormir na fila para marcar exames alheios no meio da pandemia: no Brasil da fome, Maria das Graças da Silva, de 53 anos, faz de tudo para dar de comer à família. Mãe de seis, passou a sustentar a casa depois que se separou do marido, há quase 18 anos. Atualmente, mora com quatro filhos jovens adultos, no bairro de Areia Branca, na cidade de Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador, na Bahia. Maria e seus filhos integram a estatística de cerca de 30 milhões de famílias brasileiras chefiadas por mulheres, 45% do total de domicílios. Na pandemia, essas mulheres são as mais atingidas, porque enfrentam sobrecarga de tarefas, dificuldades financeiras e exposição ao vírus. No ano passado, Maria das Graças recebeu os 600 reais do auxílio emergencial, mas, este ano, a quantia foi reduzida para 375 reais – e não tem sido suficiente. Os filhos não conseguem trabalho. Maria sempre trabalhou como diarista, mas na pandemia perdeu algumas diárias. Para complementar a renda, passou a agendar consultas e exames médicos para pessoas que não querem pegar fila ou se expor ao coronavírus. Ela sai de casa pelo menos uma vez por semana para passar a noite em centros de regulação ou postos de saúde para realizar as marcações. Concilia o “bico”, como prefere definir, com as faxinas – e contou sua rotina à piauí.
Em depoimento a Milena Teixeira
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Eu comecei a marcar exames antes da pandemia. Marcava pra mim, porque sempre tive dor nas costas e nos joelhos, especialmente por causa das faxinas pesadas que faço. Depois, para o pessoal da família. Mas, nos últimos meses, eu passei a ir mais para a fila da regulação para conseguir exames para quem precisa e para quem não quer dormir na fila. Eu chego na fila por volta de 21 horas, boto um lençol no chão e durmo na rua mesmo. Fica cheio de gente na porta, não tem só eu. Eu e outras pessoas ficamos lá toda a madrugada para conseguir uma ficha e agendar o exame. De manhã, por volta de 6 horas, vou embora. Mas, quando eu não consigo marcar, volto no outro dia e passo outra madrugada na fila da regulação. Eu fico até conseguir o exame da pessoa. Se você não vai de madrugada, não pega a vaga, entendeu? De manhã, acabam as fichas que a prefeitura daqui distribui.
Eu marco todo tipo de exame e para qualquer pessoa que pedir. É só me dar o cartão do Sistema Único de Saúde (SUS). Eu marco abdome total, cardiologia, ginecologista. Já marquei também para pessoas que tiveram Covid e ficaram com sequelas. Precisavam de novos exames. Marco o que precisar. Cada pessoa me dá um trocado de 20, 25, 30 reais. É pouco? É! Mas já é um dinheiro de um pão para meus meninos, de um transporte. Querendo ou não é o que tem, e eu preciso trabalhar! A fome não espera. Às vezes, faço duas marcações por noite. O preço aumenta a depender de quanto custa o exame em uma clínica particular, mas não passa de 30 reais. Eu vou marcar sempre que pedem, pelo menos uma vez por semana. Eu fiquei conhecida no bairro, e o pessoal já me procura para isso. Tem outras pessoas que fazem o serviço também, o preço é o mesmo.
Quando a pessoa precisa fazer exame, geralmente já passou pela consulta. Então, o pessoal me dá o cartão do SUS, o RG e a requisição do médico. Com isso, eu chego na regulação e consigo marcar. É bem tranquilo. Quando consigo agendar, levo o comprovante de agendamento com a hora e o dia que a pessoa precisa ir. Entrego e eles me dão o trocado. Quando me pagam antes, eu fico na fila até conseguir. Não sou só eu que faço isso. Se você for em um hospital que marca exame de câncer, vai ver que muitas pessoas ficam na fila para outras.
Eu fico mais cansada quando saio da regulação, de lá da fila, e vou direto fazer a faxina. Aí é “punk” demais. Porque, pensa aí, eu durmo na rua, e no outro dia faço um esforço danado. Aí meu joelho não aguenta, estala muito. A coluna também. O médico já me mandou parar, mas não tenho muito o que fazer. Às vezes eu sento e demoro muito para levantar porque o joelho trava e fica inchado.
Sei que me exponho ao coronavírus, mas botei na mão de Deus. Peço para ele me livrar. Se eu pegar coronavírus, nem sei o que vai ser de mim. Estou acima do peso e tenho pressão alta. Aliás, eu acho que já peguei, mas agora pode pegar duas vezes e isso me preocupa. Eu rezo, boto a máscara e vou trabalhar. O problema é que fica todo mundo perto na fila, não tem muita distância. O ônibus também sempre está cheio. Para o pobre, é muito difícil. Não tenho como ficar em casa. Se meus filhos conseguissem trabalho, seria diferente, porque praticamente só tem eu para dar de comida aos quatro e ainda tem gente que chega lá para comer. Aí eu preciso me virar mesmo.
Eu pari muito nova, com 16 anos, mas não me arrependo. Tive seis filhos, quatro meninos e duas meninas, que graças a Deus são bem casadas e com filhos. Elas não me dão trabalho, mas procuro ajudar também, dividindo a diária da faxina com elas. Às vezes elas me acompanham e me ajudam a limpar. Se a diária for 100 reais, fica 50 para cada. É bom que a gente se ajuda porque eu já não aguento mais dar tanto duro.
Tenho trabalhado muito ao longo dos últimos anos, desde minha separação. O pai dos meninos não ajudou com nada depois que a gente se largou, então eu tive que ir para casa de família. Eu já trabalhava quando estava junto com ele, mas, depois da separação, fui pegando vários trabalhos e nunca consegui organizar minha vida, porque o dinheiro que pego é para comer.
Eu nunca casei de novo. Hoje, moro com os meus quatro filhos homens. Todos vivem de bico de pedreiro, de pintor ou até de pegar frutas na Ceasa aqui. Mas não está aparecendo nada. Então, eu vou para rua. Eu sei que se eles tivessem me dariam, mas não têm. Eles não estudaram. Sem estudo, vai conseguir o quê? Como eu, só foram até a quarta série. Eu lutei muito para não deixar eles passarem fome, mas não consegui ver essa parte do estudo. Mas mando eles estudarem todo dia, inclusive o menor, de 19 anos. Só que eles não vão.
Eu sei que esses tempos são difíceis para todo mundo, mas está apertando demais esses dias. Às vezes me pergunto se é o final do mundo chegando. Esse vírus está matando tanta gente! Perdi meu pai ano passado por um problema do coração, e achamos que pode até ter sido Covid. Na última semana, minha filha mais velha, de 26 anos, perdeu um bebê. Ela chegou a ter o menino, mas ele morreu dois dias depois porque nós não conseguimos transferência para um hospital maior. Não tinha vaga. Ele nasceu com falta de ar, pelo menos foi o que o médico disse, mas até hoje não entendemos direito. Eu fiquei três dias com ela em casa para ajudar, mas depois já voltei a trabalhar.
Eu falei disso tudo aqui, mas, por outro lado, agradeço a Deus porque aparece trabalho. É disso que pago minhas dívidas. De comida não deixo faltar nada. Sempre tem. Aperta, mas tem. Eu me viro, mas eles comem. Um dia minha vida vai melhorar.