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Por Deus, contra o racismo, pela legalização do aborto

Com pautas progressistas, candidatos evangélicos se opõem aos “coronéis da fé”

Fabiana Moraes | 02 set 2018_09h53
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Deus está cansado: há anos, no Brasil, vem trabalhando pesado – e compulsoriamente – como cabo eleitoral. Nas eleições de 2018, vai ter que se desdobrar para dar conta não apenas de todos aqueles que reclamam (ou criticam) sua participação nas urnas, mas especialmente dos evangélicos que lutam para se afastar da imagem de intolerantes e preconceituosos semeada por seus próprios pares a partir do púlpito do Congresso Nacional. São batistas, luteranos, neopentecostais e integrantes de uma série de outras denominações que alinham Jesus a questões como o feminismo, a legalização/descriminalização do aborto e das drogas, o combate ao racismo e o casamento LGBTQ. Trata-se de pautas combatidas com ferro, fogo e cruz pela parcela mais visível e poderosa dos religiosos que infelizmente mesclam Bíblia com política. Além de brigarem internamente, os evangélicos progressistas ainda precisam lidar com a enorme desconfiança de grande parte da esquerda, golpeada continuamente em nome do Senhor.

A relação entre pautas progressistas e o Evangelho pode até soar nova, mas o fato é que essa justaposição é uma realidade nacional há décadas. Coordenadora executiva da Frente Evangélica pelo Estado de Direito, Nilza Valéria Nascimento lembra que cresceu em uma casa na qual o avô, evangélico que aprendeu a ler usando a Bíblia, participava de sindicatos, greves e comícios ao lado dos colegas do porto do Rio de Janeiro. “Não há nenhuma incompatibilidade nisso. O problema é que os ‘coronéis da fé’ ganharam muito espaço, mas eles não representam todos os evangélicos nem falam por eles”, observa, referindo-se a nomes como o senador Magno Malta (PR) e o deputado Marco Feliciano (Podemos), cujas aparições midiáticas ajudaram a criar um pensamento homogêneo sobre essa população formada por 42,3 milhões de pessoas (22,2% dos brasileiros), segundo o censo do IBGE de 2010. Nascimento está correta: já em 1934, foi criada a Confederação Evangélica Brasileira, cujo congresso Cristo e o Processo Revolucionário, realizado em Recife, em julho de 1962, entrou para a história. Ali, um grupo formado por uma maioria protestante reuniu teólogos, estudantes e operários, além de intelectuais como Gilberto Freyre, Celso Furtado e Paul Singer, para discutir a crise nacional – dois anos depois, aconteceria o golpe que afastaria João Goulart da Presidência.

 

Ocupar as cadeiras do Legislativo é uma das estratégias adotadas por evangélicas e evangélicos progressistas que brigam para quebrar a narrativa conservadora instaurada na política brasileira e que se fortaleceu após outro golpe, desta vez o parlamentar, em 2016. É o caso do pastor batista Zé Barbosa, candidato a deputado federal em Belo Horizonte pelo PCdoB e criador do projeto Jesus Cura a Homofobia. Barbosa (cujo slogan de campanha é “Boto fé! Voto Zé!”) ganhou projeção ao falar publicamente sobre a intolerância de certos setores evangélicos – no ano passado, discursou na Parada LGBT de São Paulo e pediu desculpas pelo comportamento de alguns de seus pares. Também há, pelo PSOL, o Pastor Simões (CE), que se declara a favor da descriminalização do aborto e das drogas. Outra pessoa que tenta um lugar ao sol no Congresso Nacional é a religiosa Waldicéia de Moraes Teixeira da Silva, a Pastora Wall, candidata a deputada distrital pelo PT que faz parte da Assembleia de Deus Liberdade e Vida, em Brasília. Assim como ela e o Pastor Simões, mais 566 candidatos e candidatas à Câmara registraram seus “nomes de urna” usando um marcador religioso para concorrer nas próximas eleições (em 2014, foram 511). Destes, 524 são evangélicos, 20 católicos e 24 de religiões de matriz africana. O levantamento foi feito pelo UOL, a partir de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Já ao Senado, concorrem 26 evangélicos. Outros sete disputam o cargo de governador. São evangélicos também dois candidatos à Presidência: Marina Silva (Rede) e Cabo Daciolo (Patriota).

Os últimos, assim como a Pastora Wall e o Pastor Simões, fazem parte de uma parcela numerosa entre os evangélicos, aquela relativa às pessoas pardas e pretas. São mais de 20 milhões de fiéis (segundo Marco Davi de Oliveira no livro A Religião Mais Negra do Brasil), cifra que deve aumentar consideravelmente no censo de 2020. É entre eles que se organizam alguns dos grupos progressistas mais combativos dentro das igrejas evangélicas, onde posições racistas não são incomuns, a exemplo de uma declaração de Marco Feliciano no Twitter, quando afirmou que “africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé”. Lidar com esse tipo de estreiteza dentro do próprio ambiente religioso é o desafio do Movimento Negro Evangélico, que tem representantes em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Porto Alegre e Recife. Na capital de Pernambuco, um dos pontos em que o grupo atua é a neopentecostal Igreja Imperial, localizada no bairro de Joana Bezerra, popularmente conhecido como Coque, área estigmatizada pela violência. “Sentimos dificuldade de debater esse tema dentro da igreja, onde a maioria das lideranças é de homens brancos. Por isso, criamos o movimento. A polarização que vemos lá fora também acontece aqui dentro”, diz Jackson Augusto Marcelino Júnior, integrante do MNE e estudante universitário. Ele, assim como outro participante do grupo, Eliel David, entende que a Bíblia foi usada historicamente como forma de controle, mas que isso pode sofrer um revés. “A fé cristã já serviu para defender a escravidão e o estupro. Mas ela também pode estar a favor da defesa dos direitos humanos, das mulheres e de pessoas das mais diversas orientações sexuais”, diz David. Usando esse farol, o grupo investiu contra uma declaração extremamente preconceituosa da vereadora evangélica Michelle Collins (PP), que em fevereiro postou estar reunida na praia de Boa Viagem, com seus fiéis, “orando para quebrar toda a maldição de Iemanjá”. Collins, no Brasil chegado não somente ao vermelho, verde e amarelo, mas também aos tons surreais, é presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal do Recife. É dela outra fala famosa que mostra o tamanho da luta que evangélicas e evangélicos progressistas estão travando: em plena tribuna, a vereadora afirmou que as mulheres precisam ser submissas aos homens. A declaração, é claro, foi parar nos jornais – e, mais acertadamente, em programas de humor.

O problema é que a visibilidade conseguida com falas anacrônicas, preconceituosas e machistas como as da vereadora do Recife (e do pastor Feliciano) terminam tanto maculando a imagem dos evangélicos para a população quanto solapando ações importantes realizadas por outra parcela desses religiosos. Diversos coletivos de protestantes, batistas, luteranos e pentecostais, entre outras dominações, estão atentos a questões vivenciadas justamente por mulheres. Uma das mais gritantes: 40% das vítimas de violência doméstica são evangélicas, como demonstrou a teóloga Valéria Vilhena no livro Uma Igreja sem Voz – Análise de Gênero da Violência Doméstica entre Mulheres Evangélicas. Há outro dado que merece atenção inescapável e que diz respeito a todas as religiões: entre 2010 e 2014, a Organização Mundial de Saúde realizou um levantamento internacional no qual detectou que 73% dos abortos intencionais são feitos por mulheres casadas, muitas delas já mães. Apenas 27% são feitos por mulheres solteiras.

Tanto a violência doméstica quanto o aborto mobilizam grupos evangélicos progressistas que sofrem enorme pressão de várias religiões. É o caso da Frente Evangélica pela Legalização do Aborto. A página do coletivo no Facebook atrai inúmeros haters, cujos comentários incluem montagens com figuras demoníacas. “De forma geral, as evangélicas são favoráveis à descriminalização do aborto, mas não reconhecem isso devido ao sistema conceitual religioso que é tão dogmático e tão pouco reflexivo. É possível perceber que os homens evangélicos têm muito menos empatia, solidariedade e consciência em relação à pauta do que as mulheres”, dizem as integrantes do grupo em resposta coletiva enviada à piauí, frisando que a maioria dos ataques nas redes sociais vem deles. “Como disse Frei Beto em um de seus textos: ‘Desconfio, entretanto, que há algo de verdade nesse provérbio feminista – se os homens parissem, o aborto seria um sacramento.’”

No começo de agosto, outra evangélica falou publicamente sobre a legalização do aborto, a pastora luterana Lusmarina Campos Garcia, durante audiência pública realizada no Supremo Tribunal Federal. Agora, ela se tornou grande desafeto de evangélicos conservadores, que questionam seu título de pastora. Um representante deles, porém, vem se revelando um ponto fora dessa curva: o bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, já deixou circular em um Maracanã lotado um jornal no qual afirmava que não condenaria o aborto se “uma família está passando fome, a mulher fica grávida e não tem peito para dar de mamar à criança, devido à sua desnutrição”. Em seu blog, Macedo, que sofre menos ataques do que as mulheres evangélicas progressistas, publicou um texto no qual usa a Bíblia para embasar sua defesa (o trecho trata de Judas e a Santa Ceia). “O Filho do homem vai, como está escrito a seu respeito, mas ai daquele por intermédio de quem o Filho do homem está sendo traído! Melhor lhe fora não haver nascido!” (Mateus 26:24).

É só uma pequena mostra de como o livro mais antigo do mundo passa, mais uma vez, por uma acirrada disputa de narrativa: agora, o palco é o Brasil, onde Deus foi historicamente evocado para referendar um impeachment. Dois anos depois, Ele é visto por muitos religiosos como aquele que pode nos ajudar a superar parte do caos na política nacional – isso, principalmente, se estiver fora dela.

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