“A enfermeira disse para irmos à maternidade quando a dor ficar insuportável.” Se isto não é insuportável, não sei o que é, respondi numa das pausas das contrações. É engraçado como naquele momento eu me sentia, mais do que nunca, duas pessoas. Por um minuto, eu não sabia como acolher entre meus quadris aquela torção que queria me rachar no meio. Alcançava decibéis que nunca imaginei que minhas cordas vocais e pulmões alcançariam, e não me importava que o quarteirão inteiro ouvisse. Mas dez segundos depois, num intervalo da dor, eu fazia graça da situação, ria como se aquilo tivesse sido vivido por outra pessoa em outro tempo, conversava sobre qualquer besteira. Eu me sentia numa bipolaridade natural e saudável.
Num desses momentos felizes, João foi ao banheiro e, ainda de lá, enquanto fechava a braguilha, começou a dizer: “Entrevistei presos políticos que falaram que, quando eram torturados, a dor era tão insuportável que eles preferiam morrer do que continuar naquilo.” Ele foi contando isso conforme se aproximava do quarto onde eu estava, em seu apartamento no subsolo de Lisboa. E concluiu: “Quando sentires isso, vamos para o hospital.”
A cena resume o homem que eu tinha escolhido para ser o pai de meu filho. Eu o admirava pela frieza em situações extremas, fosse o estranho parto de nosso primeiro filho ou a cobertura fotojornalística da guerra do Afeganistão. Ele é dono de um humor ácido a ponto de, naquele momento, me comparar a presos políticos. “Mas como vou saber quando a dor for insuportável assim?”, perguntei, antes de gemer mais alto que qualquer outro som que já fiz. João quase riu e disse: “Vais saber.”
Quando vomitei depois de tomar um gole d’água, pedimos um Uber para a maternidade. Me levaram para a sala da médica. Quando ela me perguntava qualquer coisa, eu respondia com “joinhas” enquanto me contorcia, agachada ao lado da cadeira ginecológica onde deveria estar sentada. “Não tem posição possível, né?”, ela comentou. A bolsa estourou ali mesmo, cheia de sangue. Levantei o vestido largo, arremessei a calcinha na lixeira. Alguém forrou o chão com papel. Vomitei o que já não tinha no estômago. Me vestiram de hospital, disseram: “contração 5.”
Por um momento, senti como se minha mãe tivesse posto a mão nas minhas costas. Logo apareceram minhas irmãs, depois três amigas – Lia, Lu, Lelê. Elas me olhavam serenas, me tocavam sem encostar, me lembravam que era assim mesmo, que todas passamos por isso. Foi uma miragem. Mas sentia que elas estavam ali, mesmo estando do outro lado do Oceano Atlântico. A enfermeira me olhou nos olhos. “Respira fundo.” Fiquei presa nos olhos dela, negros, cercados por cachos. Voltei para a sala da médica, para aqueles dois corpos em fusão que queriam se separar.
Já era hora.
Eu me concentrava na respiração pressionando o útero para baixo, no grito que deveria sair da boca e cruzar da vagina para a terra, em como eu deveria encher o pulmão inteiro depois disso. No meio de uma contração, lembrei de um documentário em que a ex-presidente Dilma Rousseff contava que, quando torturada na ditadura, focava no agora, dizia a si mesma que precisava aguentar só mais cinco minutos, porque se pensasse em aguentar mais um dia, uma semana ou um ano, sucumbiria. Me sentia torturada por meu ventre e destino. O que eu fiz para passar por isso? Tentei me concentrar só naquele minuto, vivê-lo plenamente. Como diz Gilberto Gil em minha música preferida, “O melhor lugar do mundo é aqui, e agora. Aqui, onde, indefinido, agora que é quase quando.”
Comecei a rezar um pai-nosso, esqueci no meio, iniciei então uma ave-maria, que também esqueci, e cantei para Oxum na cachoeira. Nesse momento, chegou Cecília, a enfermeira que me apresentou ao lindo mundo dos opiáceos. O assistente de enfermagem me agarrava enquanto eu me revirava: a agulha me picou, e aquela coisa geladinha foi entrando pelo meu braço. As dores aos poucos diminuíram. Eu sentia as contrações, mas elas agora tinham outra tonalidade, eram algo que fazia parte de mim, e não mais que queria me matar. Meus olhos mal se abriam. Drogada de opiáceo, era mais fácil emanar amor àquele serzinho que sairia de mim.
“Vem, meu filho, vem, vem, meu filho, vem”, eu cantava, em mantra. A sala foi ficando branca. “Coragem para nós dois, pode vir, pode sair, coragem, filho.” Lembrei da cena que um dia vi em um filme. Um potro saindo de dentro de uma égua, todo gosmento. Me senti o potro e a cavala ao mesmo tempo, nem sei explicar como isso é possível, mas ali eu soube. “Acho que saiu.” João deu dois passos para o lado, esticou o pescoço olhando entre as minhas pernas e então tocou a campainha.
Manuel tinha tomado coragem e saído de dentro de mim. Cecília voltou, cortou o cordão umbilical e perguntou se eu queria ver meu filho. Tinham me dito que, para que eu lidasse bem com o trauma, seria melhor vê-lo. Ele estava envolto em um paninho azul, e eu, sem óculos e chapada, achei aquilo a coisinha mais linda do mundo. Como podia uma pessoa ser tão miúda? Ter o narizinho igual ao do pai? Aquele ombro tão esguio? Costelinhas, perninhas, todo quase perfeitinho… Eu acabava de virar mãe.
Chorei de alívio e de tudo mais que ultrapassa qualquer palavra que conheço. Tocava com cuidado aquela pele meio gelatinosa e transparente, aqueles grandes olhos fechados com um pontinho entre eles. Por que eu não consegui fechar direito aquela cabecinha tão linda? Eu me perguntava isso há semanas, me perguntarei para sempre e me perguntava ali enquanto olhava pela primeira e última vez o meu filho, tão pequeno e gelado. Meu filho que, havia duas semanas, tinha sido diagnosticado com uma malformação “incompatível com a vida”.
Não é justo uma mãe não poder escutar o choro de seu primeiro filho, não poder descobrir sua voz, a cor de seus olhos, se teria o humor do pai, se falaria português com acento lisboeta ou capixaba. Mas naquele instante, com aquele bebê de dezesseis semanas na palma de minha mão, eu sentia um alívio misturado com um estranho e profundo amor por alguém que só conheceu meu interior. Que nunca descobrirá quão cruel e maravilhoso é o mundo. E que eu nunca, jamais, verei me olhar.
Nunca imaginei que um aborto pudesse ser tão dolorido fisicamente, nem que era possível um abismo tão grande se abrir depois da perda de um filho desejado, tão pequenino. Eu me sentia à beira da insanidade. Sentia a parede do quarto me engolindo. Estava com 40 anos e ainda não sabia que uma a cada sete brasileiras da minha idade já fez um aborto. Já sabia que 30% das gravidezes terminam em perdas, mas, mesmo assim, me sentia a única mulher do mundo que passou por isso.
Depois do aborto, eu soube de muitas amigas que tinham vivido situações parecidas em silêncio. Todas com culpa, seja por ter falhado na bem feitura de um filho desejado, seja pelo medo de confessar o aborto, que é crime em nosso país arcaico. Lembrei de tantas outras que haviam me contado suas histórias, com as quais eu não havia me conectado emocionalmente, pensando ser exagero o “mimimi” sobre um filho tão pequeno. “Vai ficar tudo bem” e “daqui a pouco vocês têm outro” foram frases que um dia falei. Será que eu diria num velório: “Sinto muito pela passagem de seu marido, mas daqui a pouco você conhece outro”? Ou “Sinto muito pela perda de sua irmã mais velha, que bom que a caçulinha segue aqui”?
Entendi outras camadas da nossa dificuldade social em lidar com a morte, sobretudo a morte antinatural de um filho: “Eu queria que você ficasse aqui até eu ficar velhinha”, eu disse a ele, na despedida. Eu achava difícil assumir a dor pela perda de um filho que ninguém viu, uma espécie de luto do invisível, um serzinho que existiu mais como projeção do que como pessoa. Mas essa ausência doía de forma dilacerante. Depois aprendi que parte desse processo é químico. Se ao fim da gravidez muitas mulheres passam pelo chamado baby blues, depressão causada pela queda abrupta dos hormônios, e o que as ajuda é ter o filho no colo e mamando, o que dizer dessa queda hormonal seguida de útero e colo vazios?
Acho que eu poderia ter acolhido melhor a dor se já tivesse tido contato com os impactos emocionais do aborto por meio das artes ou do jornalismo. Senti então que, se eu não fosse capaz de virar a câmera para mim e me colocar como objeto, eu não teria mais o direito de registrar a vida alheia. Tinha o privilégio de poder contar sobre o meu aborto pelo fato de ele ter sido feito em Portugal, onde a interrupção da gravidez é legal.
Eu já vinha fazendo filmagens caseiras de minha gravidez ao lado de João – nossa família se expandindo em tempos pandêmicos. Quando soube que meu filho não sobreviveria, seguimos filmando. Será que eu conseguiria fazer um documentário sobre o meu próprio aborto?
Nos momentos em que eu normalmente baixaria a câmera caso estivesse gravando outra mulher, eu começava a me filmar. Sabia que, se depois me arrependesse, bastava quebrar os HDs em mil pedacinhos. Então me gravei como jamais permitiria que fizessem comigo, e como jamais faria com ninguém. Sem pudor. Queria transformar a raiva e a tristeza em algo que prestasse. Para que uma em cada sete brasileiras soubesse que não é a única. Para que as 30% se sentissem abraçadas. Eu queria fazer um filme-cura, e a primeira a ser curada tinha que ser eu.
Assisto ao parto repetidas vezes, até conseguir apenas chorar sem soluçar. Levo mais de dois meses resumindo o pior momento da minha vida em duas horas. Envio a edição para um laboratório de documentários que recebe filmes que estejam precisando de ajuda para chegar ao corte final. O projeto não é selecionado, normal. Um dos responsáveis pelo laboratório liga para a produtora do filme, o que não é normal. Talvez com a melhor das intenções, ele diz que não há história no meu documentário, ainda mais considerando que estávamos num momento de pandemia e fome, e que é normal perder gestação, que éramos um casal jovem e logo engravidaríamos de novo. Diz que o projeto deveria ser engavetado, e que em dez anos eu deveria rever esse material para decidir se queria mesmo fazer um filme, “como o João Moreira Salles¹ em Santiago”. Para eles, trata-se somente de uma diretora narcisa querendo exibir sua dor.
As pessoas do laboratório ficaram incomodadas porque a fotografia do meu filme é bonita. Talvez também tenha incomodado o fato de eu entrar em trabalho de parto vestindo uma calcinha bonitinha. Para um documentário ser sério, imagino, a câmera tem que estar torta, na contraluz, deixando ver uma marca de dedo engordurada na lente, e a personagem quando sofre tem que estar com uma calcinha furada. A protagonista não pode ser a cineasta. Nós cineastas só registramos a dor dos outros, somos sempre altruístas, além de nunca sofrermos.
Nunca mais vou fazer um filme na vida. Foda-se. Posso tirar foto subaquática de turistas ricos em Noronha. Posso virar massagista na Bahia. Posso ser produtora de festas infantis. Nunca mais vou fazer um filme. Nenhum. Nem de fome, nem de morte, nem de superação. Joguei na Mega Sena que estava acumulada em 39 milhões de reais.
Não ganhei.
Só de raiva decidi então levar o filme adiante. Mas agora no plural. Vou:
- Procurar mulheres que, como eu, tenham tido seus fetos diagnosticados como “incompatíveis com a vida”;
- Entrevistar essas mulheres;
- Ir a hospitais para tentar acompanhar outros abortos de fetos malformados;
- Falar da dor que te faz ter vontade de sumir porque você foi uma bosta que nem soube fabricar seu filho;
- Falar da vergonha;
- Da culpa;
- Questionar: o que é “incompatível com a vida”? Não seria todo aborto uma incompatibilidade com a vida – econômica, social ou emocional – da mãe?;
Conheci, através de um podcast de notícias, a história de uma menina de 10 anos que, assim como eu, cresceu no Espírito Santo. Estuprada repetidamente pelo tio, ela acabou engravidando e não conseguiu abortar em nenhum hospital do estado. Quem se ofereceu para recebê-la foi uma maternidade no Recife, o Cisam (Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros), dirigido por Olímpio Barbosa de Moraes Filho, um médico que tinha sido excomungado pela Igreja Católica duas vezes por realizar abortos legais em crianças violentadas. De forma intuitiva, fui até o Recife para começar meu filme. Olímpio me recebeu e me pôs em contato com outros médicos e hospitais.
Quando me dei conta, estava numa sala de ultrassom para gravidezes de risco. Oito funcionários lá dentro. Uma grávida entrou, e a médica residente continuou o papo como se ela nem estivesse ali. “Sua bexiga está muito cheia, esvazie”, foi sua primeira interação com a paciente. A grávida foi ao banheiro e voltou. Não recebeu um “bom-dia”.
Feitos os preparativos, a enfermeira mostrou na tela como estavam os gêmeos dentro da barriga. Os coraçõezinhos batiam. Entre os funcionários, comentou-se que um dos bebês era bonitinho.
Eu lembrava da minha angústia durante os ultrassons. Lembrei da médica que, ao me atender pela segunda vez, deu o diagnóstico do meu filho e pediu para eu não chorar. Quando João me abraçou e disse a ela que eu deveria chorar o quanto quisesse, a médica respondeu: “É que se ela chorar, eu vou chorar também. Ontem saí daqui pensando como daria a notícia sobre a encefalocele… Tive dor de cabeça e tomei remédio para conseguir dormir.” Pena que ela não me abraçou para chorarmos juntas. Deve ser difícil você ser treinada para dizer “é menina!” e ter que falar “a cabeça do seu filho tem um buraco e parte do cérebro vazou”.
Na sequência, outra grávida se deitou. “Não consigo visualizar esta perninha, nem a parte debaixo desta”, disse a médica, em tom doce, tocando o corpo negro da mulher, que não falava nada. “Os bracinhos também estão com problema, a coluna, e o coração.” Quando a mãe saiu, perguntei à médica: “Incompatível com a vida?” Ela respondeu: “Possivelmente.”
Saí da sala, e a mulher virou no fim do corredor à direita. Janaína, o seu nome. Sentou-se na cama e chorou. Na sua frente, outra cama e um berço com luz neon. Nele, um bebê com um tapa olho que parecia óculos escuros. Fazia dez dias que a bolsa de Janaína tinha estourado. Ela veio do sertão sozinha. O marido depois trouxe as roupas. “O que eu vou falar para a minha filha quando voltar para casa sem o irmãozinho dela?”
Janaína achava que passaria por uma cesárea, mas ninguém lhe explicava nada. “Não pára de cair água, tá secando, meu bebê vai morrer dentro de mim”, ela dizia, angustiada. O almoço de Janaína chegou e ela nem notou. O telefone tocava e ela desligava. Entrou numa espécie de transe enevoado. À noite, lhe mandei uma mensagem, avisando que retornaria ao hospital no dia seguinte: “Você está precisando de alguma coisa?”
“Tô precisando de um milagre na minha vida”, ela respondeu.
Visitei outros hospitais até iniciar de vez as filmagens. Me impressionou que, mesmo indo a maternidades públicas, quase sempre eu só encontrava mulheres brancas, de classe média ou alta que haviam abortado legalmente fetos incompatíveis com a vida. Segundo as estatísticas, a maioria das mulheres que abortam no Brasil são negras. Por que eu não as via?
Ao conversar com o dr. Olímpio, caiu a ficha: grande parte das mulheres pobres nem obtêm o diagnóstico de incompatibilidade com a vida porque não têm um pré-natal de qualidade, porque os médicos talvez não se deem ao trabalho de explicar, porque nem recebem orientação sobre o que fazer. Um médico deveria esclarecer à mulher que ela tem as seguintes possibilidades: levar a gestação adiante e perder o filho na barriga ou um pouco depois do parto. Caso a criança nasça, será preciso entubá-la ou submetê-la a cuidados paliativos. Se optar pelos cuidados paliativos, a mãe terá que assinar uma autorização, dizendo ser responsável por essa escolha. Ou a mulher pode entrar na Justiça, comparando a situação de seu filho à de um feto anencéfalo, cujo aborto é permitido no país.
Olímpio é do grupo de médicos pelo qual tenho imenso respeito, que luta pela dignidade das pessoas e pela justiça. Em uma das cenas que gravamos, mas que acabou não entrando no filme, ele explica que “no Brasil, dois terços das gravidezes não são planejadas e metade dessas mulheres não desejam a gravidez. Ou seja, é um sofrimento, é uma tortura para essas mulheres. E o que acontece quando essas crianças crescem, que não receberam afeto, amor? Eu acho que isso tem muito a ver com a violência no nosso país, com a falta de respeito.”
Olímpio me explicou que nos países onde o aborto é legalizado, as mulheres, ainda no hospital, recebem educação sexual para não engravidar de novo, além de contraconceptivos. Isso faz o número de abortamentos cair ao longo dos anos. Se as pessoas ditas “pró-vida” estivessem mesmo preocupadas com vidas, a gente já teria descriminalizado a interrupção da gravidez. Não haveria meio milhão de abortos anuais no país. O Brasil, quem sabe, chegaria a um momento em que quase nenhuma mulher morreria, e que quase todos os bebês nascidos seriam amados.
Talvez se todos nós fôssemos amados ainda na infância, pessoas adultas não iriam a uma maternidade chamar de “assassina” uma criança de 10 anos de idade, grávida do tio que a violentava.
Ao contrário da maioria das mulheres negras ou das periferias do Brasil, Laís recebeu o diagnóstico e as opções. Decidiu levar a gravidez até o fim e ser coerente com suas crenças. “Só Deus pode tirar uma vida”. Quando Sussu nasceu, Laís escutou o choro e logo soube que sua filha seria levada para a UTI. Passou a noite aguardando um quarto. Perguntava para os funcionários do hospital como estava sua bebê, mas ninguém sabia. No dia seguinte, quando perguntou novamente, informaram que ela havia morrido. Laís não pôde nem ver Sussu enquanto viva. Não deu um abraço. Não sentiu o cheiro.
Quando Priscila recebeu o diagnóstico, lembrou de seu tio entubado, com o desespero estampado no rosto, desejando que desligassem os aparelhos. “Como eu poderia fazer isso com uma recém-nascida?” Priscila decidiu interromper a gravidez e seu avô, pastor da Assembleia de Deus, pai do tio que foi entubado, apoiou sua decisão: “Lá na Igreja dele, todo mundo é contra. Mas quando acontece com a gente, nossa opinião muda.”
Passei tempos em uma UTI neonatal gravando imagens que, mais tarde, decidi não usar no filme. Fiquei hipnotizada por um bebê que estava no centro da última fileira. Não sei que problema ele tinha, mas soube que o pai nunca foi pai e a mãe um dia também desapareceu. Ele estava há seis meses sozinho na UTI. Não tenho palavras para descrever o que senti vendo aquela solidão. No canto esquerdo, um bebê magrelinho se tremia inteiro enquanto chorava. “Vai dar tudo certo, bebê, vai dar tudo certo.”
Quando saí, gravei por um tempo a rampa vazia do hospital. Uma das mães sentou atrás de mim. Tinha os olhos vidrados no chão, que se abria num fosso infinito. Falando com alguém no celular, ela contou que tinha ficado o dia inteiro na UTI, tentando dar de mamar para o filho, o bico do peito em carne viva. Passou o dia, a semana, a vida toda ali, com um bebê que talvez nunca pudesse sair do hospital. Ela contou que o marido tinha ido buscá-la ontem. Que, quando os dois se encontraram, ele reclamou de sua demora. Ele disse que passou o dia no trabalho, e estava irritado por ter esperando tanto tempo dentro do carro, em frente à maternidade.
A vida às vezes não faz sentido.
Isabela e Danilo estavam novamente grávidos, já no oitavo mês de gestação, e pairava no ar uma tensão. Dois anos antes, eles tiveram outra gravidez. A cada ultrassom, um novo problema aparecia. Aos seis meses, veio o diagnóstico de incompatibilidade com a vida. Eles cogitaram o aborto, mas optaram por viver cada segundo da vida daquela bebê. Para isso, tiveram que entrar com uma ação judicial pedindo para a filha não ser entubada e ficar sob cuidados paliativos durante os breves momentos em que viveria.
Quando Danilo pegou Juju no colo pela primeira vez, a pequena seguia seu olhar: “Ela parecia que só queria dar um oi e um tchau.” Toda vez que vejo ele dizer isso no filme, eu choro. Juju passou no colo de toda a família, e dois anos depois, os olhos da mãe, da avó e da irmã de Isabela ainda mareavam ao contar do amor daquele dia. “Tem gente que vive 100 anos, tem gente que vive 30 anos, ela viveu 15 horas. Aqui em casa a gente teve uma aceitação tão grande da vida, que passa pela aceitação da própria morte”, disse Isabela. Ela foi aprendendo que o luto não é uma linha reta, aprendendo a aceitar os meses em que a dor aguda retornava. Em casa eles se acolhiam. Na rua, começaram a ser citados como “o casal que havia deixado a filha morrer”.
Danilo, em dado momento, achou que havia de fato sido responsável pela morte da filha, se sentiu à beira da insanidade, e depois de Isabela abrir e relembrar todos os laudos médicos, ele procurou terapia. Isabela terminou a entrevista falando do medo que tinha de se tornar uma pessoa mais fria, mas que se sentia mais aberta para a vida. É bonito ver alguém que consegue se fortalecer e ter mais fé no amor depois de levar uma rasteira. Desejei isso para mim.
Depois de meses em edição, o filme estreou no festival É Tudo Verdade. Dei a ele o título do diagnóstico do meu filho: Incompatível com a Vida. Nunca estive tão ansiosa. Temia estar cristalizando os momentos mais tristes que vivi, e que assim eles nunca mais deixassem de existir. Que eu estaria eternamente gritando no chuveiro, chorando com meu filho morto nas mãos.
Na plateia, estavam as mulheres da tela: Isabela e Danilo com a filhinha Manuela que já andava, Laís grávida novamente, Alana e Andersson que se deram de presente de aniversário as passagens de João Pessoa para São Paulo, a família toda de Tainah e Priscila. Já havíamos assistido todas juntas ao documentário. Depois disso, Shuane me disse que o filme havia encerrado seu luto, que não precisava chorar mais por Pedrinho, e que por isso não iria à estreia. No festival, quando a exibição terminou, o cinema seguiu em silêncio. As luzes acenderam depois dos créditos e alguns espectadores continuaram afundados nas poltronas. Me contaram que, no banheiro, algumas pessoas tentavam acalmar o choro e limpar a maquiagem borrada.
Quando levantei da primeira fileira, meus pés pareciam flutuar. Armou-se um cortejo fúnebre. As pessoas nos abraçavam pelas mortes daqueles bebês. O funeral que muitas de nós não tivemos – meu filho e tantos outros viraram lixo hospitalar – acontecia ali. As mulheres do filme me agradeceram por fazer do momento mais triste de suas vidas algo que ajudaria outras mulheres. “Meu luto se encerra aqui”, escutei de algumas delas e dentro de mim.
Eu consolava as pessoas que choravam por outras mortes. Uma mulher me abraçou e disse que tinha abortado, mas que nunca tinha contado isso para ninguém. Um homem em prantos disse que só agora entendia a mãe que havia se trancado no quarto depois de perder uma gravidez. Uma obstetra me disse que o filme será transformador para sua equipe e muitas outras, que ela seria uma melhor profissional a partir dali. Ouvi muitas histórias de pessoas desconhecidas, histórias que haviam sido silenciadas e que passaram a ser conversadas no hall daquele e de outros cinemas, nos bares e semanas que seguiram. Fui aplaudida no debate quando falei que entendo que a cena do feto natimorto em minha mão causa repulsa, mas que esse é um debate político essencial: que não são os “pró-vida” que tem o direito de exibir fetos. Quem tem esse direito somos nós, 30% das grávidas que têm suas gravidezes terminadas em aborto.
Recebi muitas mensagens de desconhecidas e conhecidas, agradecendo por sentirem que suas histórias foram narradas no filme. Recebi o prêmio de melhor longa-metragem do É Tudo Verdade, o que qualifica meu filme para o Oscar. No momento em que subi no palco, depois do anúncio, minhas pernas estavam bambas. Contei à plateia que a primeira coisa que me falaram, quando terminei o filme, é que eu devia colocar aquela história na gaveta. Ao dizer isso, a raiva que eu sentia lá atrás deu lugar a um amor profundo. É como se eu entendesse o que Isabela havia me dito lá atrás, sobre o medo de se tornar fria. Senti que o receio que eu tinha de me transformar em uma pessoa em desespero, que nada espera da vida, havia se esvaído. Que falarmos juntas sobre tudo o que foi silenciado, com afeto, é cura para todas. Eu nunca tinha entendido em primeira pessoa, com tanta intensidade, que a arte pode ser cura. Sentir essa cura em mim, e a partir do filme em outras pessoas, me deu uma estranha sensação de amor profundo. De criar sentido no sem sentido.
[¹] João Moreira Salles é fundador da piauí.