Uma ameaça às mulheres, à legitimidade dos partidos e à própria democracia ronda a pauta do Congresso Nacional neste reinício de trabalho após o recesso de julho: a retomada do debate sobre a Proposta de Emenda Constitucional 09/23, a chamada PEC da Anistia. A proposta isenta de sanção todas as eventuais irregularidades encontradas nas prestações de contas de partidos políticos, incluindo a falta de repasse de recursos para campanhas de mulheres e negros, nas eleições de 2022 e anteriores. Se aprovada, a PEC livrará de punição, por exemplo, partidos que não cumpriram a aplicação proporcional de recursos do fundo eleitoral para campanhas de grupos considerados minorizados. Como se admite, nos bastidores, que praticamente ninguém cumpriu nem essa regra nem outras que tentam garantir maior diversidade, a tramitação da PEC da Anistia ganhou até aqui uma rara unanimidade. Até o Congresso entrar em recesso, no início de julho, só haviam se posicionado contra a PEC o partido Novo e a federação integrada por Psol e Rede.
A aprovação da PEC da Anistia pode significar mais um capítulo de um longo enredo da crise de representatividade dos partidos políticos. Guardiões dos interesses democráticos e arrimos estabilizadores do regime, partidos costumam estar, entretanto, entre as instituições menos confiáveis na percepção da população, juntamente com o Congresso Nacional. É sintomático que confiemos menos naquelas organizações sobre as quais justamente temos o poder de escolher nossos representantes.
Após o golpe de 1964, a partir do ano seguinte passaram a existir apenas dois partidos, a Arena e o MDB. Nas eleições de 1990, 36 partidos concorreram. Hoje são 30. Nos últimos 12 anos, entre os dois Censos, deu-se uma estagnação do interesse também refletida no número de filiados: enquanto a população cresceu 6,5% e o eleitorado, 11%, o número de filiados se manteve no mesmo patamar (15 milhões).
A desconfiança da população em relação aos partidos e a estagnação do interesse destoam de três coisas. Primeiro, da relevância atribuída a eles pela Lei dos Partidos Políticos, segundo a qual são eles os asseguradores do sistema representativo e da defesa dos direitos fundamentais definidos na Constituição. Também destoa da importância que têm na prática. Em virtude do sistema proporcional, que elege boa parte dos legisladores, são os partidos os principais organizadores do jogo parlamentar. Tudo gira em torno deles. Muito dinheiro, inclusive.
Por quase sessenta anos, mesmo que não tivessem representantes eleitos, todos os partidos registrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) contaram com algum recurso do Fundo Partidário.
Em 2013, o fundo de 294 milhões de reais foi dividido entre os 32 partidos da época. Dez anos depois, os valores cresceram mais de quatro vezes. A tentativa de diminuir o número de partidos instituiu a cláusula de barreira progressiva, que limita o acesso ao Fundo a partidos que cumprirem requisitos mínimos de cadeiras e votos válidos no Congresso. Essa alteração, de 2017, foi um avanço importante, mas não suficiente, para melhorar o uso do dinheiro público. Somente em 2022, 24 partidos receberam de 3 milhões a 150 milhões de reais. Em 2023, 14 deles receberão, somados, 1,1 bilhão de reais.
Mas a conta não se encerra aí. O Fundo Eleitoral saltou de 1,7 bilhão para custear campanhas para 5,7 bilhões de reais na janela de uma eleição. Foram anos de prosperidade para os recursos partidários.
Num sopro de século XXI, veio do Senado em 2022, por meio da Emenda Constitucional 117, a constitucionalização e, portanto, o reforço de conferir aos partidos a responsabilidade de incentivar a presença de mais mulheres na política, o que deveria se dar de duas formas: de um lado, a aplicação de no mínimo 5% dos recursos do fundo partidário na criação e na manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres; de outro, o montante do Fundo Eleitoral e da parcela do fundo partidário destinada a campanhas eleitorais, bem como o tempo de propaganda gratuita no rádio e na televisão, devem ser proporcionais ao número de candidatas, não podendo ser inferior a 30%.
Agora, pouco mais de um ano depois da aprovação da emenda, a PEC da Anistia quer proibir qualquer punição a ilegalidades cometidas pelos partidos até aqui. Isso inclui o desrespeito no repasse dos recursos, mas não se limita a isso. Assinada por mais de 1/3 dos parlamentares e por mais da metade dos partidos com assento na Câmara dos Deputados, a PEC em tramitação é um gesto de fraternidade parlamentar e interesses compartilhados, independentemente das diferenças ideológicas.
Diante da crise de representatividade dos partidos, caminhos existem e devem ser buscados. Reestruturações internas e mudanças visando o aumento de candidaturas de mulheres e negros chegaram a ser implementadas em alguns partidos, mas ainda de forma isolada e incipiente. Paridade de gênero e raça nas instâncias decisórias e executivas dos partidos e a limitação de recondução nas direções – facilitando assim o surgimento de novos quadros – são bons começos para promover a oxigenação interna das agremiações. Barrar a PEC da Anistia, e toda sorte de irregularidades e ilegalidades que ela perdoa, poderia dar novo fôlego ao compromisso dos partidos políticos com a sociedade brasileira, renovando assim o seu importante e necessário papel em regimes democráticos.