Jair Bolsonaro estava em seu quarto mandato de deputado federal quando eu comecei a cobrir o Congresso Nacional, em 2007. Como eu digo no primeiro episódio de Retrato Narrado, só em 2016, já em seu sétimo e último mandato, que eu procurei ter seu telefone na minha agenda de contatos. Isso porque Bolsonaro era considerado um deputado folclórico do chamado baixo clero. Nunca teve poder nem informação sobre o governo de turno. Por isso, não era uma possível fonte no meu radar em busca dos bastidores do Poder. Por que, então, quando ganhou os holofotes homenageando um notório torturador da ditadura durante a votação do impeachment da presidente Dilma Rousseff, Bolsonaro já era recebido aos gritos de “mito” em aeroportos pelo país?
Se fui uma repórter desatenta por não ter percebido seu fenômeno antes, paguei o preço me impondo a missão de ouvir sua voz em todos os meus dias de trabalho desde que ele foi eleito presidente. Enquanto meus colegas jornalistas seguiram em frente, cobrindo o dia a dia do governo, decidi dar um passo atrás para responder: como esse deputado ignorado pela grande imprensa e relegado aos programas de auditório passou a ser visto por metade dos eleitores como a solução para o país?
Ao desembaraçar esse novelo, encontrei detalhes reveladores sobre a personalidade de Bolsonaro e tentei conectar as pontas soltas. No primeiro episódio, por exemplo, encontro a paróquia mental do presidente em Eldorado, no Vale do Ribeira, onde ele cresceu. A pacata cidade fica em uma região rica em minérios, onde a Mata Atlântica ficou preservada pela existência de muitas terras indígenas e quilombolas – demarcações que, para Bolsonaro, são um impeditivo para o progresso econômico da região (e do Brasil).
A passagem do guerrilheiro Carlos Lamarca por Eldorado, durante a ditadura militar, também marcou a juventude de Bolsonaro. Encantado pelos militares que ocuparam a região, entrou para a academia militar. O ódio ao guerrilheiro do seu imaginário também permearia seus discursos na tribuna da Câmara dos Deputados, em Brasília, onde ele passou quase três décadas e fez fama de sindicalista militar antes de se tornar também um líder do campo reacionário.
Ao longo da reportagem, me questionava a todo o tempo: por que, de seis irmãos, cinco levam uma vida pacata no interior e um chega ao cargo mais alto da República? Que decisões, afinal, mudam tão radicalmente o destino de alguém? Minhas dúvidas eram sobre política, mas também sobre a vida nacional. O que a vida de Bolsonaro revela sobre nós?
Essa nunca me pareceu uma questão fácil, mas tampouco imaginei que seria trabalhosa como foi. Comecei essa jornada grávida da minha primeira filha, escrevi os roteiros enquanto a amamentava e concluí algumas entrevistas já durante a pandemia de coronavírus, quando precisei improvisar um estúdio dentro do meu armário de toalhas, que por vezes era o único lugar que fazia silêncio absoluto na minha casa, onde temos duas crianças, dois cachorros e um gato. Quando, por fim, gravei as locuções e montados os episódios, minha filha não só já andava, como corria – e muito – pelo meu escritório.
Entre o caos nacional e o caos doméstico, procurei encontrar o tom ideal para contar essa história. Acostumada com o silêncio do jornalismo impresso, foi um tanto estranho usar minha voz para narrar esse retrato. Mas foi também, admito, gratificante porque represento uma equipe majoritariamente feminina por trás desse projeto. Acredito que tão importante quanto quem faz a política é quem narra a política. Assim, espero não só ajudar a esclarecer o personagem que está no poder, como a firmar nossa voz, a voz das mulheres, na construção da nossa narrativa como país.