O ministro Paulo Guedes, da Economia, não estava preparado. Auxiliares que convivem com ele no ministério relatam que demorou para o economista entender a dimensão global e o ineditismo da crise. Tomou ainda mais tempo para que se convencesse, ou fosse convencido, de que a sua cartilha da austeridade fiscal, desta vez, não funcionaria. Eis por que se passaram dez dias de pânico e falta de rumo entre a primeira grande turbulência na economia mundial, em 8 de março, e o envio do decreto de estado de calamidade pública no Brasil, no dia 18. A solução enfim anunciada pelo governo Bolsonaro para enfrentar uma crise sem precedentes partiu de técnicos, que didaticamente apresentaram o ministro da Economia ao artigo 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal.
No domingo, dia 8, à noite no horário de Brasília, tornou-se público que a Rússia se recusara a diminuir a produção de petróleo, como pleiteava a Arábia Saudita, membro da Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo). Com o impasse e a queda abrupta do preço do produto, a expectativa do mercado para a segunda-feira, que era ruim, se confirmou. O Ibovespa, principal índice da Bolsa brasileira, despencou mais de 12%, um recorde em vinte anos. O dólar, que já vinha subindo nas semanas anteriores, disparou de R$ 4,65 para R$ 4,79. O Banco Central interveio e a moeda americana fechou valendo R$ 4,72.
A epidemia do novo coronavírus já tinha chegado ao Brasil (em dias, ela seria reclassificada como pandemia, com transmissão sustentada em todos os continentes). Estava, contudo, restrita. Havia 25 casos confirmados e nenhuma morte. Mas, com cerca de 110 mil diagnósticos e 4 mil óbitos no mundo, autoridades sanitárias e especialistas alertavam que era uma questão de tempo. Com contaminações em progressão geométrica, pessoas com a Covid-19, doença causada pelo vírus, testes, internações e mortes inevitavelmente sobrecarregariam o sistema de saúde e desacelerariam a economia.
Guedes achou que lidava com o conhecido. “Nós estamos absolutamente tranquilos. Já vivemos isso várias vezes”, subestimou. Ele ainda insistiu que a melhor resposta do governo federal seria manter intocada a agenda de reformas estruturais na qual insiste desde antes da eleição do presidente Jair Bolsonaro. “As reformas são a melhor resposta à crise. Nós vamos mandar a reforma administrativa, o pacto federativo já está lá, nós vamos mandar a reforma tributária e vamos seguir o nosso trabalho”, disse.
Na mesma segunda-feira, um debate até então restrito a economistas esquentou. Nomes como o da pesquisadora Monica de Bolle defenderam a flexibilização do teto de gastos, para permitir que o Estado investisse, gerasse empregos e distribuísse renda, apesar das limitações da emenda que obriga o governo a não gastar mais do que no ano anterior, atualizada a inflação. Reformas estruturais têm efeito a médio e longo prazo, argumentou-se. Era preciso agir imediatamente. A ideia bateu no Posto Ipiranga e voltou.
Para Guedes, formado sob a égide ortodoxa da Escola de Chicago, o Estado deve ser mínimo, sem distribuir isenções e subsídios, nem ter papel ativo na redução da desigualdade, na distribuição de riqueza e no combate à miséria. O Bolsa Família, voltado à população mais vulnerável, acumulou uma fila de 1 milhão de pessoas no governo Bolsonaro.
Dois dias se passaram e a equipe econômica não mandou para o Congresso as reformas que faltavam. Mandou, sim, um ofício pedindo a votação de projetos como a privatização da Eletrobras, que em tempos de incerteza, fugas de capital e recessão, não encontra eco entre investidores.
Na análise de um membro da equipe econômica, o diagnóstico tardou por ser complexo: a crise não tem raiz econômica, como em 2008. Agora, a resposta que precisa ser dada é a recessão, ou seja: manter as pessoas dentro de casa e os serviços, interrompidos. É preciso, entretanto, garantir que a população saia viva também financeiramente. É como quando caem máscaras de oxigênio no avião, comparou o auxiliar: os passageiros não estão doentes, mas se não usarem o equipamento morrem de asfixia.
Por esse raciocínio, o governo precisa oxigenar a população: adiar o máximo que puder as cobranças de dívidas e tributos. Ajudar a empresa que suspender atividades, o autônomo que terá menos trabalho, como o motorista de aplicativo que não fará corridas, o mendigo que não terá a quem pedir um trocado. Mas na cabeça de Paulo Guedes não faz sentido o Estado ajudar aqueles que não se sustentam por conta própria, seja com subsídio do BNDES, seja com repasses e assistencialismo.
A pressão em cima do Ministério da Economia só aumentava. No final da semana passada, então, caiu a ficha de que caberia ao Estado “cumprir o papel, digamos, de manter a sociedade funcionando”, nas palavras de um auxiliar. Países desenvolvidos têm de onde tirar em urgências assim, mas não o Brasil. É como a cigarra e a formiga, disse o mesmo auxiliar. Estados Unidos e países europeus pouparam mantimentos para o inverno. Aqui gastou-se tudo.
O Brasil enfrentou dois anos de retração (2015 e 2016) e desde então vinha se recuperando timidamente. As taxas de desempregados (11%) e de informais (41%) nunca voltaram a patamares anteriores à recessão. Por isso, economistas sustentavam que as medidas para essa nova queda brusca tinham que levar em consideração o consumo das famílias, já baixo, e os volumes de investimento ainda aquém do desejado.
As primeiras conversas começaram na Secretaria Especial da Fazenda. Técnicos como o adjunto da pasta, Jeferson Luis Bittencourt, que conhecem a máquina e a burocracia pública por dentro, discutiram a ideia com o titular, Waldery Rodrigues Junior, e seu colega Mansueto Almeida, secretário do Tesouro (cujo nome é mencionado quando se especula sobre a permanência de Guedes). O raciocínio era o seguinte: o déficit primário aumentará com a perda de arrecadação, a queda no preço do petróleo e a expansão exigida de gastos com saúde e economia. Para respeitar a responsabilidade fiscal, haveria duas alternativas: anunciar um contingenciamento, isto é, cortar despesas, ou revisar a meta de déficit na Lei de Diretrizes Orçamentárias.
A primeira opção é difícil, porque não se tem mais de onde cortar. A segunda também, porque não se sabe o volume de recursos que serão gastos no total com a crise nem quanto tempo ela durará. Qualquer previsão, como a que vige agora, de aumento de R$ 124 bilhões para R$ 200 bilhões de déficit primário, será prematura, alega-se. A alternativa para aumentar os gastos, descumprir a meta e não ser enquadrado na Lei de Responsabilidade Fiscal é o seu artigo 65, que estipula que, em casos de calamidade pública, a obrigação fica dispensada.
A ideia começou a circular no Ministério da Economia uma semana antes de vir a público. Mansueto e Waldery a levaram a Paulo Guedes, que, segundo relatos, desconhecia o instrumento.
Na segunda-feira, 16, nenhum martelo tinha sido batido. Mas os mercados não acordavam do pesadelo. Naquele dia, a Bolsa despencou mais 14%, acumulando perdas de 40%, com cinco interrupções do pregão em uma semana, devido às quedas bruscas (o chamado “circuit breaker”). O dólar, pela primeira vez, fechou na casa dos R$ 5 – o real é a moeda mais desvalorizada do mundo no ano. O preço do petróleo caiu mais. As Bolsas de Tóquio, Xangai, Paris, Madri e outras fecharam o dia em queda. Os números de desaceleração já estavam sendo recalculados. Bancos como o JP Morgan revisaram o desempenho do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro em 2020 de uma alta esperada de 1,6% para uma queda de 1%, com expectativa de “profunda recessão” já no primeiro semestre.
Foi necessário mais um dia inteiro até a terça, 17, para, depois de Paulo Guedes levar a ideia de decretar calamidade pública a Bolsonaro, o presidente aprová-la. Na quarta de manhã, o governo enviou o decreto ao Congresso. Neste dia, o Brasil registrou a quarta morte pela Covid-19 e confirmou 428 casos do novo coronavírus. Bolsonaro decidiu dar uma entrevista ao lado de Paulo Guedes e outros ministros, todos usando máscaras, para esclarecer quais medidas tomarão para enfrentar o vírus. Dois ministros e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, entre outras autoridades, foram infectados.
Com a agenda de reformas escanteada pela premência da recessão, a equipe econômica mudou de cartilha. Sugeriu a redução de salários e jornadas durante a crise, a oferta de auxílio de R$ 200 por mês a trabalhadores informais, entre outras medidas.
Para Monica de Bolle, o governo não fez errado ao propor decretar calamidade, mas inevitavelmente terá de pensar a longo prazo. No próximo ano, o decreto terá perdido a validade, a economia ainda estará abalada e precisará de novos estímulos. “Não se pode viver de crédito extraordinário a perder de vista. Para fazer direito, tem que mexer no teto de gastos”, insiste. “O Congresso, os economistas, a equipe econômica, seja lá quem a compuser, têm que ter flexibilidade. Não pode haver tabu.”