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questões epidemiológicas

Pouco teste para muito vírus

Ministério da Saúde diz que fez 46 mil testes até agora, mas admite que faltam kits

Camille Lichotti | 18 mar 2020_19h26
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Na manhã do dia 17 de março, o gerente de negócios Julio Brito, 39, acordou com um pouco de febre. O termômetro marcava pouco mais de 37 graus. Na madrugada, vomitou e teve diarreia. Brito decidiu ir ao hospital quando apresentou alguns sintomas relacionados à Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus. Além da febre, sentia falta de ar e cansaço. Às 9h34, enviou um áudio pelo celular informando os filhos sobre sua situação. Brito havia procurado o pronto-socorro do hospital particular Galileo, o mais próximo de sua casa, em Valinhos, a 10 km de Campinas, em São Paulo. Seu plano de saúde cobria o atendimento. O gerente queria fazer o teste para diagnóstico do novo coronavírus, mas não conseguiu. Só poderiam realizar o teste pessoas que apresentassem febre alta – acima de 39 graus –, histórico de viagem para o exterior ou contato direto com algum doente. Brito foi orientado a voltar para casa com uma máscara cirúrgica descartável. “Agora vou aguardar para ver se melhoro até a noite”, disse, pelo WhatsApp. Passou o resto do dia de cama. 

O laboratório CDC, que faz os exames para o hospital em Valinhos, disse à piauí que o número de testes disponíveis era restrito – mas o número não foi informado. Por isso, o serviço, que custa R$ 230, estava suspenso para quem não se enquadrasse no perfil de risco estabelecido no pronto-socorro – mesmo sendo pago pelo convênio. Brito reiterou que pediu para fazer o teste, mas o médico informou que seu caso não cumpria os requisitos para solicitar o exame.  

No mesmo dia 17 de março, foi confirmada a primeira morte em decorrência do novo coronavírus no Brasil. Um homem de 62 anos morreu em São Paulo, onde o Ministério da Saúde já confirmou, até agora, 164 casos. Ele apresentou sintomas no dia 10 de março, foi internado no dia 14 e morreu na tarde do dia 16. Segundo David Uip, coordenador do Centro de Contingência do Coronavírus no estado, o paciente tinha diabetes e hipertensão, mas não apresentava dado epidemiológico forte, ou seja, não tinha viajado para fora do país nem teve contato com um caso confirmado. O resultado do teste que diagnosticava a infecção por coronavírus só foi encaminhado às autoridades no dia seguinte, junto com o anúncio de sua morte. “Provavelmente ele não estava na última contagem de casos”, disse Uip em entrevista coletiva na tarde da terça-feira. Isso indica que mesmo os números oficiais apresentados pelo Ministério da Saúde podem estar abaixo da realidade, o que afeta diretamente o desenvolvimento de estratégias de contenção. 

Os casos de Brito e do paciente morto revelam um dos principais gargalos brasileiros no controle da nova pandemia – a testagem. Até esta quarta-feira, o Brasil tem 291 casos confirmados e uma morte confirmada pelo Ministério da Saúde – outras duas foram informadas em São Paulo por uma operadora de saúde em um de seus hospitais. Outros 1.890 casos foram descartados no Brasil, e 8.819 estão sob investigação. O Ministério da Saúde informou que até o dia 18 de março realizou 45.708 testes pelo SUS, mas que, daqui para frente, não haverá teste para todos. Por isso, recomenda que pessoas com sintomas leves fiquem em casa e não procurem esse tipo de serviço.

Essa orientação contraria o alerta da Organização Mundial da Saúde, que já sinalizou que testes em larga escala são essenciais para dimensionar e conter a disseminação do vírus. “Não se pode combater um incêndio de olhos vendados”, disse Tedros Ghebreyesus, diretor-geral da OMS. “Não podemos parar esta pandemia se não soubermos quem está infectado.” Ghebreyesus ressaltou também a importância de testar todos os casos suspeitos. 

Para os próximos dias, o Ministério da Saúde planeja usar as unidades sentinelas no atendimento aos pacientes com sintomas mais leves. Hoje, essas unidades realizam a investigação de síndrome gripal. Assim que outros estados entrarem em transmissão comunitária, os casos de coronavírus nas unidades sentinelas serão confirmados pelo diagnóstico clínico, sem exame laboratorial. Isso deve aumentar muito o número de casos, como ocorreu na China quando o país mudou a metodologia de contagem de casos na província de Hubei. Com a mudança, os casos foram automaticamente confirmados após análises clínicas. 

Pelas orientações do Ministério da Saúde, além dos internados, apenas pessoas com sintomas graves estão sendo testadas. “É impossível que a gente tenha o registro quantitativo da nossa população porque não vamos conseguir testar todos”, disse o secretário-executivo do ministério, João Gabbardo. 

Em estados como Rio de Janeiro e São Paulo, que apresentam transmissão comunitária – quando a origem da disseminação não é identificada –, são submetidos a teste pacientes com quadros graves, problemas respiratórios e doenças crônicas. Nos outros estados, ainda é preciso que o paciente tenha tido contato com algum caso confirmado ou viajado para o exterior. Em São Paulo, Uip disse que o governo estuda a ampliação de centros de diagnóstico, mas qualquer medida precisa ser tomada dentro dos limites da gestão pública. “Existe o mundo ideal e o real”, disse. “Fazer exames em todo mundo não é real.” 

A Coreia do Sul aprendeu a lição depois de passar por um surto de MERS – Síndrome Respiratória do Oriente Médio, doença provocada por uma variante de coronavírus. Em 2015, no auge da crise, a falta de testes disponíveis fazia com que pessoas doentes percorressem vários hospitais em busca de confirmação para saber se tinham o vírus. Para enfrentar o novo coronavírus em 2019, o país investiu em um esquema de testagem rápida e eficiente. O objetivo é monitorar as pessoas infectadas e isolar os doentes mais rapidamente, diminuindo a propagação do vírus e, consequentemente, o número de mortes. Um retrato preciso do avanço da doença ajuda na adoção de medidas preventivas, que quebram a cadeia de transmissão. Em pouco tempo, a Coreia do Sul criou um sistema capaz de avaliar 10 mil pessoas por dia. 

De início, os esforços se concentraram no epicentro da crise coreana – uma igreja em Daegu. Depois, foi ampliado para as grandes cidades, incluindo a capital, Seul, em estações de teste no estilo drive-through. A Coreia do Sul utilizou o modelo de teste da OMS, garantindo, já no primeiro momento, a validade dos exames. A partir dessas amostras, passou a fabricar e exportar seus próprios testes. O primeiro caso foi no dia 20 de janeiro. Em menos de dois meses, a Coreia já havia testado mais de 248 mil pessoas e confirmado mais de 8 mil casos. Hoje é o sexto país com maior número de ocorrências, mas com uma das taxas de letalidade mais baixas – cerca de 1%. A Itália, por exemplo, tem uma taxa de 8,3%.

A Itália está vivendo o pior cenário dessa pandemia. Com uma taxa de letalidade alta e 35.713 casos confirmados, o país sofre com a superlotação de seu sistema de saúde. Mas uma cidade no centro do surto italiano conseguiu zerar o número de novos casos. E a estratégia é clara: testagem em massa. O experimento realizado na cidade de Vò, próxima a Veneza, testou e retestou todos os 3.300 habitantes, independentemente dos sintomas. Os casos positivos foram colocados em quarentena e, com um retrato epidemiológico da doença, as autoridades de saúde conseguiram interromper a cadeia de transmissão. 

A infectologista Andrea Crisanti, que faz parte do projeto Vò, disse ao Financial Times que a testagem fez toda a diferença. “Fomos capazes de conter o surto aqui porque identificamos e eliminamos as infecções potenciais”, disse. Na primeira rodada de testes, 3% da população estava infectada, apesar de mais da metade não apresentar sintomas. Após o isolamento, o número havia caído para 0,3%. Nessa segunda testagem, pelo menos seis pessoas estavam infectadas sem apresentar sintomas. “Se eles não tivessem sido identificados, a propagação da doença teria sido retomada”, explicou Crisanti. Isso ilustra como a decisão do Brasil de testar apenas sintomas graves e pacientes internados não ajuda a interromper a transmissão do vírus. 

No Brasil, a Fiocruz é responsável por produzir os testes diagnósticos da rede pública. Até agora, foram entregues 30 mil kits de testes. Segundo o Ministério da Saúde, a fundação ainda vai entregar mais 40 mil até abril. O objetivo é aumentar o ritmo de produção. Além disso, o ministério anunciou uma chamada pública para produzir novos kits de testagem. Segundo Gabbardo, empresas e laboratórios privados podem encaminhar suas amostras de kits para análise do ministério. Caso a qualidade seja comprovada, o órgão poderá fazer a aquisição desses materiais. “Mas tem que ter ciência”, lembrou o ministro Luiz Henrique Mandetta, ressaltando a importância da validação científica no processo.  

Os hospitais particulares têm seus laboratórios e, consequentemente, seus próprios parâmetros. Podem, em tese, testar pessoas sem nenhum sintoma que estejam dispostas a pagar. Mas, com o risco de desabastecimento, muitos também restringiram a oferta de exames para detectar o vírus causador da Covid-19. O Hospital Albert Einstein, que acabou se transformando numa das unidades de referência para a testagem do coronavírus, anunciou que vai restringir a oferta para casos mais graves que necessitam de internação. O hospital, que até hoje realizou mais de 8 mil testes, afirmou em nota que a medida é uma forma de racionalizar a utilização dos exames. Com a restrição de testes nas redes pública e privada, o cenário que se desenha no país é preocupante frente ao avanço do novo coronavírus. “Vamos passar entre sessenta e noventa dias de muito estresse”, disse Mandetta. 

 

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