A Anunciação, Fra Angelico, 1437-1466, Museu Nacional São Marcos, Florença.
39º no verão do Rio. Na mesma semana, em Londres, a temperatura chegou abaixo de zero. Indiferente à estação do ano, Precisamos falar sobre Kevin, dirigido por Lynne Ramsay, co-autora também do roteiro adaptado do premiado romance de Lionel Shriver, está em exibição nas duas cidades.
Haveria diferença entre ver o filme fugindo do frio ou do calor? Para tirar a dúvida, propus à editora Livia Serpa vermos o filme, ela lá, eu aqui, e conferir.
Em princípio, nada indica que o ar condicionado ou o aquecimento alterem a reação a um filme. Vejam o resultado e concluam por si mesmos.
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A caminho da academia de ginástica no Shopping da Gávea, ao lado dos cinemas, minha amiga Tânia é abordada por uma senhora: “Você está indo ao cinema?” E apesar da resposta negativa, completa: “Não veja esse filme sobre o Kevin. É um horror!”
“Chorei a caminho de casa pelo dinheiro gasto para comprar o ingresso e a perda de duas horas. É um dos piores filmes que já vi”, escreveu A.G., de Los Angeles, ao New York Times (9/2).
Reações extremadas, do Rio a Los Angeles, sugerem que Precisamos falar sobre o Kevin toca em algo sensível. Narrado em forma de quebra-cabeça sem que todas as peças cheguem a se encaixar, é um filme de terror, sendo compreensível que provoque reações violentas. Carente de qualquer gratificação, salvo para apreciadores de Tilda Swinton e de algumas belas imagens, o fato de não responder as questões que levanta causa rejeição aguda sendo, ao mesmo tempo, uma de suas maiores virtudes.
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Tragédias inexplicadas provocam dose adicional de angústia. Na vida, além do sofrimento, é preciso aceitar que nem sempre é possível saber a causa e identificar quem ou o quê é responsável pelo que ocorre. No cinema, a história é outra. O espectador foi educado para esperar que a motivação dos personagens seja claramente enunciada e que, no final, haja uma resolução. Quer esteja fazendo calor ou frio, o público admite o horror mas quer sair do cinema apaziguado. Quando isso não ocorre, como em Precisamos falar sobre o Kevin, tende a recusar o filme. Assim, certas narrativas, como a do roteiro de Lynne Ramsay e Rory Kinnear, não se ajustam à noção de entretenimento que predomina no mercado cinematográfico.
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O resultado de bilheteria no Brasil confirma esse descompasso. Lançado em 37 salas, na tentativa de aproveitar a temporada de premiações na Europa e nos Estados Unidos, teve média de apenas 342 espectadores por sala no primeiro fim de semana (27, 28 e 29 de janeiro). Não foi um grande lançamento, mas poderia ser suficiente para uma carreira expressiva. O fracasso comercial ficou configurado, porém, na segunda semana, com a redução do circuito para 25 salas, queda de 61% de frequência em relação à primeira, e média de minguados 199 espectadores por sala no fim de semana de 3, 4 e 5 de fevereiro. Na terceira semana, ficou em apenas 6 salas e acumulou só 38.147 espectadores.
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Fora do Brasil, os dados disponíveis também não são animadores, estando longe de ser um grande sucesso. Produção inglesa de porte médio, com orçamento de 7 milhões de dólares financiados pela BBC Films e pelo Conselho de Cinema do Reino Unido, além de pelo menos outras oito produtoras européias, rendeu 4.8 milhões de dólares no mercado mundial até a semana passada, sendo apenas 10.4% no Reino Unido. A boa acolhida da crítica, a participação em festivais e os prêmios não impediram o mau resultado comercial.
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O tema de Precisamos falar sobre o Kevin – ausência de sentimento materno da personagem principal – não tolera indiferença. Não há como deixar – mães ou filhos, e por extensão pais ou filhas, que somos – de nos envolver pela tragédia de Eva Khatchadourian que só tem alívio do choro ininterrupto do seu filho Kevin quando para o carrinho do bebê ao lado de uma britadeira.
No filme esse tema central do romance de Lionel Shriver é encoberto, em parte, pelo massacre na escola e em casa que banaliza a adaptação, estruturada mais do que o livro com o propósito de fazer da mortandade o clímax.
Romance e filme, apesar da diferença de formas narrativas, coincidem no final. Eva diz ao filho Kevin: “Você matou onze pessoas. Meu marido. Minha filha. Olhe nos meus olhos e me diga por quê.” E Kevin responde: “Eu achava que sabia. Agora não tenho certeza.” No livro, Eva estende a mão e agradece.
No encerramento, só o que ela sabe é que no dia 11 de abril de 1983 teve um filho e não sentiu nada.
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Tilda Swinton como Eva em Precisamos falar sobre o Kevin.
Com a palavra agora nossa correspondente em Londres, Livia Serpa.
Domingo, 12 de Fevereiro, às 17:30, com o céu já negro, em Londres a zero grau. Foi nessas agradáveis condições que fui assistir tardiamente Precisamos falar sobre o Kevin, filme muito comentado por aqui.
Apesar de aclamado por boa parte da crítica inglesa, o filme que estreou no final do ano passado agora está restrito a uma única sala – o Prince Charles. Como essa seria provavelmente minha última chance de assistir ao filme no cinema, não me importei muito com o fato da cerimônia de premiação da BAFTA [Academia britânica de cinema e televisão] estar acontecendo nesse mesmo horário a apenas alguns metros do Prince Charles e enfrentei a multidão para chegar ao cinema no horário.
Se tivesse que resumir em uma única palavra minha sensação enquanto via o filme seria desconforto. Apesar de já conhecer um pouco da história do filme e ter notado várias vezes as expressões de pessoas enquanto liam o livro de Lionel Shriver no metrô, acho que não me lembro de outro filme que tenha tido tanta dificuldade de assistir quanto esse. Difícil de assistir principalmente pela maneira engenhosa com que a história se desenrola na tela.
Claustrofóbico, tenso e perturbador, o filme tem narrativa não linear ao tratar da relação conturbada entre uma mãe e seu filho. A história é contada do ponto de vista de Eva, a mãe, decadente e solitária em uma casa de subúrbio. Em apenas alguns minutos de filme se percebe que Eva é atormentada por lembranças da família que teve um dia, e logo fica claro que ela se tortura e se culpa por algo terrível que aconteceu.
Ao ler sobre o filme, descobri que o livro se desenvolve inteiramente por meio de cartas que Eva escreve ao marido falando sobre o filho Kevin. Deve ter sido tentador usar o mesmo artifício, recorrendo a uma narraçao off, quando o livro foi adaptado para o cinema. E um dos maiores acertos do filme talvez tenha sido justamente resistir a essa tentação. Sem a ajuda do texto off a narrativa se desenvolve apenas pelo poder das imagens e sons da memória de Eva. Memória sem tempo ou espaço definidos, num vai e vem constante que forma um labirinto terrível do qual Eva não consegue escapar.
A sensação para quem assiste é a de sentir de perto (talvez perto demais) um dos maiores dramas familiares que se pode imaginar – a relação entre pais e filhos, mostrando a distância e os limites de entendimento entre pessoas tão próximas.
Não sei ao certo qual a impressão que o filme causa nos espectadores brasileiros que tem a sorte de poder aproveitar a luz e o calor do sol tropical, mas para mim que ainda tenho quase dois meses de inverno pela frente esse vai ser um filme difícil de esquecer e que vai ocupar meus pensamentos por um bom tempo.