Esta reportagem faz parte do Luanda Leaks, projeto do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, o ICIJ, com sede em Washington, DC. O Luanda Leaks reúne 120 profissionais do ICIJ e mais 36 veículos de 20 países, que investigaram negócios da empresária Isabel dos Santos, a mulher mais rica da África. No Brasil, participam do projeto a revista piauí, a Agência Pública e o site Poder360. Esta reportagem foi produzida por Allan de Abreu e Thais Bilenky (apuração), José Roberto de Toledo e Fernanda da Escóssia (edição), Marcella Ramos (checagem), Sergio Lima (imagens), Sergio Lima (fotos e vídeos), Júlia Sena (edição de vídeo) e Kátia Regina Silva (revisão).
Colher um cacho de dendê exige força, agilidade e precisão. Quando o dendezeiro chega à fase adulta, ele fica tão alto que é necessário acoplar a foice a uma longa haste metálica para alcançar os cachos que nascem e crescem próximos ao topo da palmeira. Empunhando a geringonça desde o chão, 20 ou 30 metros abaixo, e atrapalhado pela densa folhagem, o cortador mal enxerga o cacho em formato de coração. Mesmo assim, ele dá um jeito de fazer duas incisões rápidas e cirúrgicas nas hastes que sustentam o cacho maduro. E lá se vão de 35 kg a 100 kg de frutos e espinhos palmeira abaixo. Os frutos alaranjados intercalam-se com longos espinhos, o que torna impossível pegá-los com as mãos. A tarefa caberá a um trator com garra mecânica que parece recém-saído dos filmes Mad Max. A rotina repete-se centenas, milhares de vezes por dia em Tailândia, Moju e Tomé-Açu, no Norte do Pará, há quatro décadas – tempo suficiente para a região se tornar conhecida como Triângulo do Dendê. Das plantações da região sai um óleo que, beneficiado, é usado nas indústrias de alimentos, cosméticos e biocombustíveis.
Mais recentemente, após intervenção do então presidente Lula, a Petrobras decidiu entrar nesse mercado para produzir biocombustível. Em poucos anos, porém, a estatal se viu em uma situação tão ou mais espinhosa que os cachos do dendê. A empreitada se transformou em um sumidouro de dinheiro: a Belém Bioenergia Brasil S.A. (BBB), nome da joint venture da Petrobras com a petrolífera portuguesa Galp para extrair óleo de palma em solo paraense, acumulou perdas milionárias. A assessoria da Petrobras admite prejuízo de R$ 267 milhões e diz que esse valor expressa a reavaliação do ativo da BBB ao longo dos anos, motivada por sucessivos déficits em seus orçamentos. A conta da estatal brasileira é conservadora: de 2011 a 2018, os balanços da BBB somam prejuízos de R$ 720 milhões – como a Petrobras tinha metade das ações da empresa, ficou com metade do rombo, R$ 360 milhões.
O prejuízo não foi só da petrolífera. Agricultores que assinaram contratos se comprometendo a vender suas safras de dendê à BBB também se queixam de terem perdido dinheiro porque seus contratos não foram reajustados. Pudera: enquanto a Petrobras foi sócia, a BBB não produziu nem um litro de biocombustível. Iniciada nos anos Lula, a operação dendê se estendeu pelas gestões de Dilma Rousseff e Michel Temer. Em 2019, já no governo de Jair Bolsonaro, a Petrobras saiu do negócio e vendeu seus ativos na BBB por R$ 24,7 milhões — apenas 11,1% do valor real a que teria direito, considerando a participação da estatal brasileira no patrimônio líquido da BBB em 2018 (R$ 221,7 milhões).
Por seis meses, a piauí reconstituiu a saga da Petrobras no dendê paraense, como parte do projeto Luanda Leaks, do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, na sigla em inglês). O consórcio se aprofundou nos negócios da empresária angolana Isabel dos Santos, a mulher mais rica da África, com patrimônio estimado em US$ 2,2 bilhões. A investigação do ICIJ revela como esses negócios se beneficiaram de recursos públicos e como a empresária, filha do ex-presidente de Angola José Eduardo dos Santos, criou um labirinto de mais de 450 companhias, muitas em paraísos fiscais. Participaram do projeto veículos como Le Monde, The New York Times, The Guardian, Süddeutsche Zeitung, BBC e, no Brasil, revista piauí, Agência Pública e Poder360.
A base de dados que deu origem à investigação do ICIJ inclui mais de 715 mil documentos, entre e-mails, planilhas e relatórios mostrando detalhes do funcionamento das empresas de Isabel dos Santos. A organização PPLAAF (Platform to Protect Whistleblowers in Africa) teve acesso aos arquivos e compartilhou-os com o ICIJ. A partir desses documentos, a piauí investigou a sociedade entre a Galp e a Petrobras para a produção do óleo de palma. E o que a mulher mais rica da África tem a ver com o Triângulo do Dendê e a Petrobras?
Isabel dos Santos adquiriu 6% das ações da Galp em 2005, por meio de uma holding holandesa que pertence a ela e à Sonangol, estatal petrolífera de Angola. A Belém Bioenergia Brasil começou a ser desenhada dois anos depois, em maio de 2007, quando o então presidente Lula e o primeiro-ministro português José Sócrates anunciaram parceria entre a Petrobras e a Galp, com participação minoritária do governo de Portugal, para um projeto de produção de biodiesel a partir do óleo de palma. A estatal brasileira já era sócia da empresa portuguesa na exploração de campos de petróleo na bacia de Santos, litoral do Brasil. A nova parceria foi formalizada no mesmo ano, e quem assinou o documento pela Petrobras foi o então diretor da área internacional, Nestor Cerveró, que ganharia fama anos depois ao protagonizar casos de corrupção desvendados pela Lava Jato.
Petrobras e Galp formaram a joint venture Belém Bioenergy BV, com ações distribuídas meio a meio entre as duas sócias. Baseada na Holanda devido a vantagens tributárias concedidas pelo governo daquele país, a Belém Bioenergy criou a Belém Bioenergia Brasil S/A, empresa brasileira com sede na capital do Pará. Os planos da BBB eram ambiciosos: financiar o plantio de dendê na região de Tailândia, produzir 300 mil toneladas por ano de óleo em três unidades industriais e exportar o produto para Portugal, onde uma refinaria da Galp transformaria o óleo em biodiesel e o venderia na Europa por meio de uma trading na Irlanda – na época, o continente tinha meta de reduzir em 20% o volume de poluentes nos sistemas de transporte até 2020. Estudo inicial da Petrobras apontava que o projeto tinha 86% de chance de sucesso, com “ganho máximo” de US$ 525 milhões e “perda máxima” de US$ 83 milhões de dólares. A história trataria de desmentir esses números, sempre para pior.
O plantio
As primeiras mudas da BBB, 1 milhão no total, começaram a ser cultivadas em 2010, a partir de sementes de dendê importadas do Peru, Equador e Costa Rica. Executivos da Petrobras e da Galp começaram a procurar donos de terras na região de Tailândia. Queriam cultivar 38 mil hectares em terras arrendadas de médios e grandes produtores e outros 3 mil em parceria com agricultores familiares, donos de até 10 hectares cada. Nesse último caso, o Banco da Amazônia financiaria R$ 65 mil para as mudas, e a BBB forneceria assistência técnica.
Naquela época, dois pareceres internos da Petrobras, um de 2008 e outro de 2009, a que a piauí teve acesso, apontavam para riscos relevantes do projeto: nem Petrobras nem Galp tinham experiência agrícola; as metas de uso de biocombustível na Europa poderiam ser revistas; o produto poderia ser barrado pelos europeus caso a produção de dendê no Brasil não fosse ambientalmente sustentável. Além disso, o biodiesel de segunda geração, ou green diesel, que seria produzido pela BBB, não possuía cotação no mercado, pois só era fabricado em pequena escala por uma empresa na Finlândia.
Mas nada parecia frear a parceria da Petrobras com a Galp. “Eu não acho que a BBB tenha surgido porque a Petrobras achou que óleo de palma era um bom negócio. Acho que surgiu por imposição política, e não por uma ideia econômica. […] Ou [a imposição] veio do Lula ou do Sergio Gabrielli, que eram os dois que poderiam mandar nesse processo”, afirma Marcello Brito, ex-CEO da Agropalma, concorrente da BBB e pioneira na cultura da palma no Pará. José Sergio Gabrielli presidia a Petrobras quando a BBB foi gestada. Depois que deixou a estatal, em 2012, ganhou uma cadeira no conselho da Galp. Ele negou que o convite da petrolífera portuguesa tenha sido em retribuição por seu engajamento na criação da BBB. “Fui convidado por ser considerado um dos melhores dirigentes de empresas de petróleo do mundo, com vários prêmios internacionais”, disse Gabrielli à piauí.
Em maio de 2010, Lula foi a Tomé-Açu lançar o “Programa Nacional de Estímulo à Produção de Óleo de Palma” – o objetivo era atrair o agricultor familiar da região para a cultura do dendê. “Ô gente, até eu vou querer plantar palma. Pego os 65 mil ‘réis’ emprestado, planto a muda e fico lá, em pé, olhando a bichinha, de vez em quando jogamos um pouquinho de ureia nela. […] Benza Deus!”, discursou o então presidente.
O plantio das primeiras mudas começou em janeiro de 2011, quando foi criada formalmente a BBB S/A. Como a palmeira começa a produzir aos 3 anos de vida, ainda que em pequena escala, a perspectiva era de que os primeiros cachos fossem colhidos em 2014. Um ano antes, porém, devido à baixa perspectiva de lucro, a Galp desistiu de refinar o óleo de palma em Portugal, e o projeto do biodiesel acabou engavetado. A BBB então mudou o seu foco de atuação: passaria a produzir óleo para a indústria de cosméticos e de alimentos, um mercado seguro, já que, segundo a Associação Brasileira de Produtores de Óleo de Palma, Abrapalma, o Brasil consome 506 mil toneladas do produto por ano, enquanto produz apenas 360 mil toneladas – a diferença é importada principalmente da Indonésia e da Malásia, maiores produtores mundiais.
Sem usina
Quando chegam à indústria, os cachos de dendê são cozidos a vapor por 50 minutos, a uma temperatura média de 1.300ºC, para que todos os frutos amoleçam e se desprendam. Os frutos, um pouco menores do que um limão ou uma ameixa fresca, são moídos para a extração do óleo de palma, de forte cor laranja. Em seguida, outro equipamento limpa a pequena noz localizada no meio do fruto e quebra a casca fina, deixando à mostra apenas a amêndoa esbranquiçada, que é esmagada para a extração do óleo de palmiste.
Tanto o óleo de palma quanto o de palmiste são então refinados e vendidos à indústria: o de palma é utilizado na fabricação de alimentos como azeite de dendê, chocolates, doces e sorvetes; o de palmiste, para cremes, sabonetes e xampus. O processamento dos cachos agrega muito valor ao produto. Na região de Tailândia, enquanto a tonelada do cacho in natura é negociada a R$ 300, a tonelada do óleo de palma não sai por menos de R$ 2,5 mil, e a do óleo de palmiste chega a R$ 3 mil.
No fim de 2014, a BBB obteve R$ 89 milhões do Fundo de Desenvolvimento da Amazônia, FDA, de um total de R$ 576 milhões que seriam destinados, em sua maior parte, à construção das duas usinas, unidades industriais onde seria feito o beneficiamento do dendê, ou seja, onde o fruto seria esmagado. Entretanto, já no ano seguinte, a Petrobras desistiu do financiamento. Em meio à forte crise econômica causada pela queda do preço do barril do petróleo e às denúncias de corrupção investigadas pela Lava Jato, a então presidente da estatal, Graça Foster, desistiu de construir as usinas. A BBB passou então a colher os cachos e revendê-los a processadoras de menor porte da região, como a Dentauá. “Há trinta anos eu trabalho no mercado de palma. Desconheço um projeto no mundo que tenha feito 40 mil hectares de plantação sem usina”, afirma o ex-CEO da Agropalma, Marcello Brito.
Os prejuízos anuais da BBB, que começaram com R$ 8,3 milhões em 2011, chegariam a R$ 368,2 milhões em 2016. Procurada, Graça Foster não quis se pronunciar. Assim que ela visualizou as perguntas encaminhadas por mim no WhatsApp, bloqueou-me no aplicativo.
Mau negócio
Altamiro Rodrigues, 63 anos, capixaba radicado em Tailândia, arrendou 787 hectares para a BBB por 25 anos. Foi o pior negócio de sua vida, diz. “Ganho menos de R$ 300 por hectare no ano. Se tivesse arrendado para a soja, ganharia R$ 500”, compara. “Quero que o tempo passe logo para que eu pegue a terra de volta.” Seu plano é plantar mogno na área.
No caso dos 115 agricultores familiares parceiros da BBB, o descontentamento é ainda maior. Diferentemente dos grandes e médios produtores, os pequenos foram os responsáveis pelo plantio, com financiamento pelo Banco da Amazônia, e também cuidam da colheita dos cachos. Francisco Jaime Batista da Silva, 60 anos, é conhecido em Tailândia como Chico da Moto – ganhou o apelido nos anos 1980, quando chegou à região no único bem que possuía, uma motocicleta. Em 2012, ele foi procurado pela BBB para plantar palma nos 10 hectares de terra dele e nos outros 10 hectares do filho, no povoado de Nova Paz, zona rural de Tailândia. Analfabeto funcional, assinou o contrato sem ler. E se arrepende. “A minha sorte é que também tenho plantados um pouco de açaí e pimenta-do-reino.” Hoje arrasta no Banco da Amazônia uma dívida de R$ 60 mil, dinheiro utilizado para a compra das mudas. “Todo ano preciso pagar R$ 10 mil.”
Enquanto a BBB paga aos agricultores familiares R$ 224 pela tonelada do cacho, a concorrente Agropalma paga R$ 312, de acordo com Rodrigo Campos, 32 anos, presidente do Sindicato dos Empregados Rurais de Tailândia, que reúne os pequenos produtores de dendê do município. “Hoje a BBB se tornou uma atravessadora da produção dos agricultores familiares. Paga pouco aos produtores para ter algum lucro quando revende os cachos para as esmagadoras, porque não dá conta de processar toda a produção”, afirma. O contrato, segundo ele, previa reajuste nos preços a cada quatro anos, o que nunca ocorreu. Também houve falhas na assistência técnica prometida pela empresa. “Nas reuniões do sindicato, não há um parceiro da BBB satisfeito. Muitos desistiram e venderam as propriedades.” Campos, também parceiro da empresa desde 2013, quer negociar seus 10 hectares. “Se tivesse a terra nua e desimpedida ou um contrato com a Agropalma, venderia fácil. Mas palma vinculada à BBB ninguém quer.”
Tailândia já nasceu sob o signo da bala. Nos anos 1970, a construção da rodovia PA-150, que cruza o Pará de Norte a Sul, levou a um intenso conflito entre fazendeiros, grileiros (que se apoderavam da terra para fins especulativos) e posseiros (trabalhadores rurais que se instalavam na beira da pista), dando origem a um pequeno vilarejo. Para conter a violência, em 1978 o governo estadual decretou uma intervenção da Polícia Militar na região, enquanto o Instituto de Terras do Pará, Iterpa, demarcava e distribuía lotes às margens da estrada. Mesmo assim, os conflitos fundiários permaneciam, o que levou um tenente da PM na época a batizar o povoado de Tailândia, em alusão ao país asiático que na época enfrentava violenta disputa de terras com países vizinhos.
Dez anos mais tarde, o vilarejo tornou-se município, e sua economia se fundava basicamente na grilagem de terras e no desmatamento em larga escala, com os crimes de pistolagem como efeito colateral. Em 2007, Tailândia chegou à sétima posição no ranking dos municípios mais violentos do país, com 104,9 homicídios para cada 100 mil habitantes. Em fevereiro do ano seguinte, no dia 25, a cidade amanheceu cercada por policiais federais e membros da Força Nacional, acompanhados por técnicos do Ibama e do Incra. Era o início da Operação Arco de Fogo, de combate ao desmatamento ilegal. Um total de 53 madeireiras e carvoarias, além de algumas casas de particulares, foram multadas em R$ 23 milhões. A população reagiu e, durante um protesto contra a operação, depredou os prédios da prefeitura e do Judiciário local.
Desde então, Tailândia tem procurado reduzir a dependência do setor madeireiro, afirma Josefran Almeida, que acumula os cargos de secretário de Produção do município e presidente do Sindicato dos Produtores Rurais. Almeida me recebeu em um fim de tarde de outubro na sede do sindicato. “A Arco de Fogo transformou a economia local de puramente extrativista em agrícola, com culturas diversificadas”, disse o secretário, diante de uma ampla mesa feita de angelim, árvore comum na Amazônia.
A palma faz parte dessa tentativa de diversificação na agricultura. Dos 220 mil hectares já desmatados em Tailândia, os palmares ocupam 60 mil. Só perdem para a pecuária, com 100 mil hectares de pastagem. A cultura da palma emprega atualmente 2 mil pessoas na cidade, confirma o secretário. Mas, para um forasteiro que chega a Tailândia, é difícil ver, na rotina da cidade, a prosperidade apregoada por esses 2 mil empregos.
De Belém a Tailândia, são 270 km de estradas precárias, um terço delas sem asfalto e o restante repleto de buracos. Logo na entrada da cidade, ainda na PA-150, há, de um lado, uma ampla área recém-desmatada, e de outro, uma máquina retroescavadeira tentando controlar o fogo em grandes montes de pó de serra, resultado da atividade madeireira. Com 106 mil habitantes, Tailândia tem Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) baixo, 0,588. Apenas 5,4% dos domicílios estão ligados à rede de esgoto – o restante possui fossas sépticas. A água dos chuveiros e das torneiras das pias, com restos de alimentos, se acumula pelas sarjetas, o que atrai revoadas de urubus. Os índices de violência deixaram de ser pornográficos, mas ainda são altos: 63,3 assassinatos para cada 100 mil habitantes, quase o dobro da média nacional.
Hoje, a pecuária, a palma e a soja são os maiores empregadores do município. A entrada da BBB na economia tailandense aumentou a oferta de trabalho – são setecentos empregados na empresa, cuja sede fica a apenas 5 km da cidade. Mas os números positivos no emprego foram manchados por uma série de irregularidades trabalhistas. Entre 2017 e 2019, a BBB foi autuada dezesseis vezes pelo Ministério do Trabalho por irregularidades como falta de condições mínimas de segurança e higiene para os empregados, além de jornada de trabalho excessiva. Nesse período, o Ministério Público do Trabalho em Belém constatou que a BBB terceirizava as atividades de plantio e colheita da palma, o que era proibido por lei. Esses trabalhadores terceirizados, segundo os procuradores, atuavam nas piores condições possíveis.
“Os obreiros [trabalhadores] sofrem toda sorte de desmandos, uma vez que o labor era prestado em condições ambientais inadequadas, sem disponibilização de banheiro, água potável e refrigerada, refeitório inadequado ou local digno para alimentação, nas frentes de trabalho, ou local equivalente para descanso (abrigos), obrigando os mesmos a se submeterem ao forte sol que castiga a região, levando, inegavelmente, à fadiga, e ainda, sem todos os equipamentos de proteção individual necessários, em flagrante aviltamento da relação laboral”, escrevem os procuradores na denúncia à Justiça. Em 2017, a BBB foi condenada a pagar multa de R$ 800 mil por irregularidades trabalhistas – a empresa aguarda o julgamento do recurso no Tribunal Regional do Trabalho, em Belém.
A condenação judicial não eliminou o problema das condições trabalho precárias na BBB. Ainda há casos de esgotamento físico por excesso de jornada e falta de equipamentos de proteção individual, segundo Elielson Barros da Silva, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Tailândia, que me recebeu na sede acanhada da entidade. Conversei com trabalhadores da BBB que tiveram problemas com a empresa – por ainda estarem empregados, eles não quiseram se identificar. “Muitas vezes o fiscal não nos deixa nem tomar água. Eu já vi colega passar mal e até desmaiar no meio do dendezal”, disse um deles. Outro problema recorrente são os ônibus precários utilizado no transporte dos trabalhadores, com bancos soltos e portas presas por cabos de madeira. Sobre a situação dos trabalhadores terceirizados, a assessoria da Galp em Portugal informou que “mesmo não havendo qualquer responsabilidade da BBB pela gestão das equipes de trabalho, a empresa procedeu à correção de todas as alegadas irregularidades”.
De saída
Em 2016, a BBB chegou a um impasse: a falta de processamento para as toneladas de dendê colhidas todos os meses tornava a empresa inviável economicamente. Com o aval da Petrobras, a Galp passou então a buscar parceria para viabilizar a construção das fábricas. A Dentauá S.A., controlada pela família Yamaguchi, demonstrou interesse – a empresa já vinha moendo parte da produção da BBB – mas não tinha capital suficiente. Surgiu então o Opportunity Agro, fundo de investimentos do Grupo Opportunity, do banqueiro Daniel Dantas, dono de um currículo que mistura ousadia nos negócios com suspeitas de corrupção e lavagem de dinheiro. Em 2005, Dantas foi indiciado pela CPI dos Correios por gerir fundos de pensão “de forma espúria” por meio do Opportunity. Três anos depois, chegou a ser preso duas vezes pela Polícia Federal na Operação Satiagraha, acusado de tentativa de suborno a um policial para ficar fora das investigações, que miravam em desvio de verbas públicas e lavagem de dinheiro –posteriormente, a operação foi anulada pela Justiça, e o Supremo Tribunal Federal julgou as prisões, inclusive as de Dantas, ilegais. Dantas também foi indiciado em outra CPI, a dos Grampos, na Câmara, por chefiar um suposto esquema de escuta ilegal de empresas concorrentes por meio da empresa Kroll. Os relatórios seguiram para o Ministério Público, que optou por não denunciar ninguém. Nos processos a que respondeu, Dantas foi absolvido pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região.
Dinheiro não falta a Dantas, dono de um patrimônio estimado em US$ 1,8 bilhão, segundo a Bloomberg, empresa do mercado financeiro – o banqueiro possui mais de vinte fazendas no Sul do Pará. Para associar-se à BBB, em 2017 o Opportunity criou uma joint venture com a Dentauá, formando a Ecotauá – a operação foi aprovada pelo Cade, Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Um ano antes, em setembro de 2016, Nuno Frutuoso, um dos executivos do conglomerado de empresas de Isabel dos Santos, recebeu em Angola o “senhor Daniel Dantas”, conforme consta em e-mails da empresária angolana a que o ICIJ teve acesso. No e-mail, não fica claro se se trata do banqueiro brasileiro ou de algum homônimo. Nem se o “senhor Daniel Dantas” encontrou-se com Isabel dos Santos, acionista da Galp. A assessoria do Opportunity negou que Dantas ou algum representante do grupo tenha estado em Angola ou se reunido com Santos ou algum de seus representantes.
A Ecotauá financiou o término da construção da unidade esmagadora de dendê em Tailândia, que começou a operar no segundo semestre de 2018, com capacidade para processar 60 toneladas de cachos por hora. Para integrar a fábrica à BBB, criou-se uma nova empresa, Tauá Brasil Palma S.A., com participação de 50,1% da Ecotauá (Dentauá e Opportunity) e de 49,9% para a BBB. Assim, a joint venture da Petrobras com a Galp tornava-se minoritária no novo negócio.
Faltava a construção do segundo polo industrial, em Tomé-Açu, município vizinho de Tailândia, com capacidade semelhante ao primeiro. Embora a Dentauá estivesse capitalizada após o ingresso do Opportunity no negócio, foi a BBB quem emprestou R$ 59,5 milhões à Ecotauá para a construção da usina, conforme contrato sigiloso entre as partes a que a piauí teve acesso. Os repasses começaram em novembro de 2018 e terminaram em junho último. Tanto a associação ao Opportunity quanto o empréstimo geraram fortes críticas na Petrobras – em 2019, pelo menos dois diretores perderam os cargos por discordarem do negócio. Segundo as assessorias do Opportunity e da Galp, o empréstimo foi feito para agilizar a construção da usina e integralmente quitado no fim do ano passado.
O último capítulo do imbróglio ocorreu em novembro de 2019, quando a Petrobras, já na gestão do atual presidente Roberto Castello Branco, anunciou a venda das ações da estatal na BBB para a sócia Galp por R$ 24,7 milhões. Esse valor ficará retido até dezembro de 2020 pela empresa portuguesa para “potenciais pagamentos de indenizações” – ou seja, pode ser reduzido até lá. A venda, segundo comunicado da Petrobras, integra a política de desinvestimentos da estatal. Em outubro, os últimos funcionários da Petrobras deixaram a BBB, no Pará.
O fim da participação da Petrobras na BBB provocou prejuízos milionários para os cofres da estatal por basicamente dois motivos. Primeiro: o valor da venda, R$ 24,7 milhões, equivale a apenas 11,1% do valor real a que teria direito, considerando a participação da estatal brasileira no patrimônio líquido da BBB em 2018 (R$ 221,7 milhões). “Não mediram esforços para criar um cenário ultranegativo do projeto e convencer o conselho de administração da Petrobras a decidir pela venda, nas condições conhecidas. Não houve transparência nesse processo. A missão era sair a qualquer valor”, afirma um ex-diretor da estatal, sob a condição do anonimato.
Segundo: a venda das ações ocorreu no momento em que a BBB prevê iniciar trajetória de lucro, com a operação das unidades esmagadoras de Tailândia e de Tomé-Açu e também de uma refinaria, em fase final de construção. A piauí apurou que a Galp projeta um fluxo de caixa de R$ 500 milhões com a Belém Bioenergia no primeiro semestre de 2020, enquanto o Opportunity avalia o projeto da BBB em R$ 2 bilhões. “O óleo de palma é uma commodity cuja produção no país ainda não é suficiente para satisfazer o mercado interno, gerando necessidade de importação do mesmo. O cenário de oferta e demanda mundial também apresenta uma perspectiva positiva para os preços, com o envelhecimento dos plantios na Malásia e Indonésia e consequente queda na produção e, como resultado, crescimento da demanda por biodiesel. Diante disso, os gestores acreditam que o negócio tem potencial de ser lucrativo”, informou a assessoria do Opportunity. A piauí não conseguiu contato com representantes da Dentauá. A BBB não respondeu ao pedido de entrevista feito pela reportagem.
Em nota, a assessoria da Petrobras vai na contramão do grupo de Dantas: “A companhia está desinvestindo de alguns ativos que proporcionam baixo retorno sobre o investimento e focando em outros de maior retorno e mais alinhados com sua expertise, que é a exploração e produção de petróleo e gás, buscando assim o incremento da geração de valor para seus acionistas.” A estatal negou que tenha vendido a BBB à Galp por valor muito abaixo do de mercado. A assessoria não se pronunciou sobre os sucessivos rombos financeiros da BBB nos últimos anos nem sobre o empréstimo ao grupo Opportunity.
Colaborou Thais Bilenky
Cronologia de um mau negócio
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Após a publicação da reportagem, o Opportunity enviou à redação a seguinte nota. Para facilitar o entendimento do leitor, a piauí numerou os itens.
“A reportagem “Prejuízo em cacho” publicada na revista piauí, no site Pública e, com o título “Petrobras enterra centenas de milhões em projeto de biocombustível de dendê”, no site Poder 360, cita Daniel Dantas.
Por isso, é preciso esclarecer que:
1) O Opportunity Agro Fip não avaliou o projeto da BBB em R$ 2 bilhões, como cita a reportagem.O Opportunity nunca lidou com recursos públicos.
2) O Opportunity nunca lidou com recursos públicos.
3) Daniel Dantas não foi denunciado pela CPI dos Correios e tampouco pela CPI dos Grampos.
4) O Supremo Tribunal Federal julgou ilegais as prisões de Daniel Dantas durante a operação Satiagraha.
5) Daniel Dantas foi absolvido do alegado crime de corrupção pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3).
6) É de conhecimento público que a Satiagraha obedeceu a interesses privados.
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Nota da Redação:
- A piauí sustenta a informação, checada com pessoas que participaram diretamente do empreendimento. Depois que o Opportunity contestou o dado, a revista perguntou ao banco em quanto ele avaliou o negócio. O Opportunity não disse: “O valor estimado para o negócio é estratégico e, portanto, o Opportunity não tem interesse em divulgá-lo.”
- A nota do Opportunity não contesta a informação publicada pela piauí: a Ecotauá, da qual o Opportunity Agro Fip é sócio, recebeu um empréstimo de R$ 59,5 milhões da BBB, que, por sua vez, tinha a Petrobras como sócia.
- A nota trata de uma informação que não foi publicada pela piauí. A reportagem afirma que Daniel Dantas foi indiciado pelas citadas CPIs, como está registrado nos relatórios finais das comissões parlamentares de inquérito. Ao texto original da reportagem foi acrescentada a informação de que os relatórios das CPIs seguiram para o Ministério Público, que não ofereceu à Justiça denúncia sobre o caso.
- O texto original da reportagem já informava que Daniel Dantas foi preso pela Satiagraha e que a operação policial foi anulada pela Justiça. Foi feito um acréscimo informando também que o Supremo Tribunal Federal julgou ilegais as prisões feitas pela operação, inclusive a de Dantas.
- Foi acrescentada ao texto da reportagem a informação sobre a absolvição.
- Diferentemente da nota da assessoria, a reportagem não faz juízo de valor sobre a Satiagraha.
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Reportagem atualizada às 17h35 do dia 21 de janeiro de 2020 para incluir as notas do Opportunity e da Redação, além de informações acrescentadas ao texto principal.
Veja o vídeo com a reportagem: