Completa vinte anos este mês uma iniciativa notável que oferece uma alternativa à forma como os cientistas divulgam seus trabalhos. Trata-se do arXiv, um grande repositório no qual são postados artigos antes que sejam aceitos para publicação nas revistas especializadas. Adotado por boa parte dos físicos e por pesquisadores de outras ciências exatas, o portal aponta para o que pode ser o futuro da publicação científica.
As revistas técnicas – que os pesquisadores chamam de periódicos – são hoje as responsáveis pela validação e pelo controle de qualidade da ciência. Antes de serem publicados, os artigos submetidos são lidos e questionados por especialistas daquela área. Esse processo de revisão por pares permite vetar trabalhos de qualidade duvidosa e aprimorar estudos que contenham erros ou lacunas (leia outro post do blog sobre o universo da publicação científica).
Uma das desvantagens desse processo é a demora entre o envio de um artigo e a sua publicação. O arXiv (pronuncia-se ‘arcaive’) nasceu da necessidade dos cientistas de compartilhar seus trabalhos de forma descomplicada enquanto ainda estão em processo de revisão. O repositório foi lançado em agosto de 1991, quando a world wide web ainda estava engatinhando. Num artigo publicado esta semana na Nature para celebrar os vinte anos do portal, o pai dessa iniciativa, Paul Ginsparg, se lembra como esse processo era custoso:
“É difícil acreditar, mas tempo e esforço consideráveis eram gastos para imprimir, xerocar e mandar pelo correio os manuscritos não publicados para um grupo privilegiado de amigos e colegas antes de sua publicação formal em periódicos. A ideia de um repositório central era permitir que qualquer pesquisador no mundo com acesso à rede submetesse e lesse artigos na íntegra.”
A expectativa inicial era que cerca de 100 textos fossem publicados por ano no repositório. O serviço não demorou a conquistar adeptos entre físicos, matemáticos, estatísticos e cientistas da computação. Antes do fim da década, ele já recebia mais de 2 mil artigos por mês. Hoje, mais do que uma prática corriqueira, a publicação no arXiv é a principal forma de comunicação para pesquisadores de várias áreas.
“Existem poucas áreas da física moderna em que o ‘quente’ não esteja nos arXivs”, explicou o brasileiro Daniel Doro Ferrante, pesquisador da Universidade Brown, nos Estados Unidos. “Praticamente ninguém lê outra coisa.” Ele acrescentou que, na área de física teórica de altas energias – a primeira a adotar o sistema –, a publicação formal em periódicos passou para o segundo plano. “Essa comunidade lê apenas os arXivs – publicar para eles é apenas uma questão da ‘numerologia da ciência’.”
Para ilustrar a reputação desse repositório, Ferrante citou o exemplo da prova da conjectura de Poincaré – uma demonstração que os matemáticos perseguiram durante um século e que era considerada um dos maiores problemas em aberto de sua disciplina. Quando o russo Grigori Perelman resolveu o problema no início da década passada, não se deu ao trabalho de submeter sua prova a um periódico – os três artigos com a demonstração foram publicados apenas no arXiv (uma excelente reportagem na piauí_12 conta em detalhes a história da demonstração). “Perelman foi agraciado com a Medalha Fields e outros prêmios por isso sem ter feito uma única publicação com revisão por pares”, lembrou Ferrante. “Ele disse claramente que não acredita na avaliação de seus pares.”
Os números atuais de adesão ao arXiv evidenciam sua penetração. Segundo o artigo de Ginsparg, o repositório armazena atualmente quase 700 mil textos e recebe 75 mil novos artigos por ano. A cada semana, cerca de 400 mil usuários fazem em média um milhão de downloads.
Para o futuro, o arXiv se vê diante de desafios para se tornar uma alternativa à revisão por pares em escala mais ampla. Uma dificuldade será convencer pesquisadores de outras áreas a aderir a esse modelo – biólogos, por exemplo, são mais refratários à ideia de tornar públicos trabalhos ainda não validados pela comunidade. Outro desafio consiste em dotar o arXiv de recursos que permitam uma avaliação informal e orgânica feita pela comunidade. Hoje, o portal apenas armazena os artigos, e essa avaliação é feita nas caixas de comentários de blogs que referenciam o arXiv – o repositório não conta com esse recurso porque isso exigiria um alto investimento de tempo e recursos para a moderação da discussão.
No artigo da Nature, Ginsparg expôs sua expectativa para o futuro do arXiv e da publicação científica de forma geral: “Minha esperança é que, mais do que simplesmente usar a infraestrutura eletrônica como um meio mais eficiente de distribuição, a revolução iminente leve no final a uma estrutura de conhecimento mais poderosa, transformando na essência os meios que usamos para processar e organizar os dados científicos.”
Que os próximos anos do arXiv permitam caminhar nessa direção.