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Prisioneiros do absurdo

Não seria o caso de só lançar filmes na era DP (Depois da Pandemia)?

Eduardo Escorel | 16 dez 2020_09h03
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O fim do ano se aproxima – disso ninguém duvida. Mesmo assim, faria sentido dizer que 2020 está no finalzinho? Até quem tem coeficiente de inteligência (QI) abaixo da média sabe que para usar o diminutivo, sem causar pasmo, será preciso esperar o dia 31, pouco antes de meia-noite.

Como admitir, então, o que Ele disse na quinta-feira (10/12) ao inaugurar parcialmente a nova ponte do Guaíba, em Porto Alegre, obra iniciada na Presidência Dilma Rousseff, em outubro de 2014? “Ainda estamos vivendo o finalzinho de pandemia”, anunciou o capitão.

Finalzinho? Naquele dia, tínhamos a lamentar mais de 179 mil mortes, enquanto os infectados com o novo coronavírus passavam de 6,7 milhões, quase todos os estados registravam crescimento expressivo de casos e a situação no Rio Grande do Sul, em especial, era das mais graves. No dia seguinte, os óbitos no país haviam passado de 180 mil, os casos diagnosticados de Covid-19 chegado a mais de 6,8 milhões e 22 estados apresentavam alta na média móvel de mortes.

Em resposta à pergunta sobre o “efeito de uma frase do presidente da República, nesta altura, com 180 mil mortos, quando ele diz que a pandemia está no finalzinho”, feita por Eliane Cantanhêde na GloboNews, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta disse: “É uma total falta de inteligência… O presidente pode ter um QI razoável, mediano, mas tem um coeficiente emocional muito próximo de zero – não mede as consequências das suas falas. Quando falou que era uma ‘gripezinha’, quando falou que não era ‘coveiro’, quando falou ‘E daí?’ para o número de mortes, quando falou ‘estamos no finalzinho’, tudo isso… é mais uma falta de inteligência, é uma inconsequência e é extremamente prejudicial você falar que está acabando. Não está acabando. Dezembro, nós estamos aumentando o número de casos, e não deveria estar aumentando se nós estivéssemos fazendo o dever de casa… A gente tem grandes obstáculos pela frente. Esse tipo de fala, esse tipo de comportamento, desde o início, eu muito tentei explicar, com muita paciência, a ele, individualmente, aos outros ministros, ao ministro da Economia: ‘Calma! Não se precipite’… Estamos em uma dívida absurda e um presidente que ainda permanece preso a um resultado do absurdo, da lógica do absurdo que a gente está colhendo hoje.” (11/12. Entrevista disponível da íntegra em https://g1.globo.com/bemestar/vacina/noticia/2020/12/11/mandetta-diz-que-nao-havera-vacina-para-todos-e-sera-preciso-priorizar-grupos-em-plano-que-esta-atrasado.ghtml ).

Ascânio Seleme já havia relacionado “uma dúzia de crimes de responsabilidade cometidos pelo presidente da República” (O Globo, 12/11) quando o capitão voltou à carga e “mentiu categoricamente” ao afirmar que “a CoronaVac causava morte, invalidez e anomalias. Foi um crime contra a dignidade, a honra e o decoro do cargo que ocupa, previsto na lei do impeachment…”. Há quase duas semanas (5/12), Seleme voltou a denunciar o que “o presidente negacionista mais deseja” – evitar que São Paulo saia na frente – e fez um aviso: “Não estranhem se ele mandar a Polícia Federal ocupar o Instituto Butantan para impedir a produção ou a distribuição das vacinas. Seria um absurdo, claro. Bolsonaro não deve ser tão alucinado assim. O resultado seria catastrófico, e o crime imperdoável já cometido se agravaria e se tornaria doloso.”

No sábado (12/12), Merval Pereira avaliou como sendo “devastadora a revelação de Guilherme Amado, na revista Época, de que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) fez pelo menos dois relatórios para orientar a defesa do senador Flavio Bolsonaro, na tentativa de anular as investigações do Ministério Público do Rio de Janeiro sobre o esquema da ‘rachadinha’ montado por ele e por outros deputados estaduais na Assembleia Legislativa do Rio… o caso da Abin é gravíssimo, e passível de impeachment do presidente por improbidade administrativa. É o presidente usando órgãos de investigação do Estado brasileiro para proteger seu filho. E para desmoralizar outros serviços públicos, como a Receita Federal e o Coaf. Não se pode aceitar isso. Estamos vivendo num país em que coisas anormais viram normais… É um coquetel de malfeitos…”.

“Quando falamos em democracia liberal”, declarou Ilona Szabó ao Globo (11/12), “falamos numa democracia plena de direitos. Se você olhar o que estamos perdendo, eu diria que não somos uma democracia liberal. Os conselhos foram fechados, a imprensa é atacada todos os dias. Todas as estratégias vão em cima da supressão do livre debate, da mobilização, da participação social. Hoje a sociedade civil já perdeu o assento à mesa. Isso acontece num momento de negacionismo da ciência e no qual as políticas públicas perdem qualidade.”

 

A incompetência do capitão, somada à sua leviandade e ignorância, reflete-se na inação e trapalhadas do desgoverno federal, visível na barafunda em que se tornou a aquisição de vacinas e no atraso em apresentar o plano de vacinação, assim como em outros setores, inclusive o do cinema. A Agência Nacional de Cinema (Ancine), embora devesse atuar com autonomia, parece inoculada pela mesma inoperância e desorientação do poder Executivo, o que a torna incapaz de definir prioridades e a faz assistir impassível ao despejo de filmes brasileiros no mercado interno – um circuito exibidor em crise por conta da pandemia. A queda de frequência levou o Grupo Estação de Cinema a fechar de novo as suas quinze salas em Botafogo e na Gávea, no Rio de Janeiro, deixando de estrear novos títulos a partir de 10 de dezembro. “Houve negligência de quem podia ter se preservado melhor, pouca fiscalização, pouca testagem… Deu nisso. Temos que esperar os números da pandemia melhorarem e as pessoas começarem a se sentir seguras novamente”, conforme disse Adriana Rattes (O Globo, atualizado em 9/12).

Exigência contratual de exibir certas produções em sala de cinema tem levado distribuidores e produtores a despejar seus filmes no mercado, mesmo sabendo que estão sendo condenados de antemão ao fracasso comercial. Dada a excepcionalidade da situação atual, não seria o caso de a Ancine, distribuidores e produtores atuarem de forma conjunta e só lançarem esses filmes na era DP (depois da pandemia)?

 

Gravado entre abril e junho deste ano, Cercados – a imprensa contra o negacionismo da pandemia é identificado nos créditos finais como sendo “um documentário original Globoplay”. Dirigido por Caio Cavechini, estreou na plataforma de streaming da produtora em 3 de dezembro, e tem certo valor devido, principalmente, à sua atualidade. Na verdade, porém, está mais para aglomerado de breves reportagens do que propriamente para o que se considera um documentário. Abrangente em demasia e confuso além da conta, falta unidade ao conjunto de cenas reunidas, além do princípio ordenador que se requer de um documentário. Sem isso, resulta superficial o tratamento dado a cada um de seus inúmeros personagens e às variadas situações em que mal se detém. Lançado este mês, mais parece uma retrospectiva do ano feita de matérias jornalísticas. A destacar, por sua dramaticidade e ineditismo, há algumas cenas. Entre outras, a do Cemitério Municipal, em Manaus, no terreno aberto para receber vítimas da Covid-19, e a que foi gravada no Hospital Geral Vila Penteado, em São Paulo, na qual a médica que pede demissão diz que “está insuportável” e completa: “Quase todos meus pacientes morreram. O paciente morre às 11 horas da noite e ninguém avisa a família. Aí a bucha fica para mim. Aí eu tenho que ser chamada de assassina pela família… Não vai ficar uma pessoa normal depois disso tudo.”

Cena no Cemitério Municipal, em Manaus, do documentário “Cercados – a imprensa contra o negacionismo da pandemia” –

 

Além do agrupamento de cenas da cobertura da imprensa que desmentem o negacionismo, Cercados permite rememorar algumas das declarações disparatadas de você sabe quem (“Quando vocês pararem de fazer fofoca eu falo com vocês”; “Nós temos que ter coragem de enfrentar o vírus. Tá morrendo gente? Tá. Lamento.”), além de revelar momentos de sofrimento vividos por vítimas anônimas da pandemia e profissionais de saúde. A lastimar é o longo final choroso em que se abusa da tristeza alheia para causar emoção.

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Na próxima terça-feira, 22 de dezembro, às 11 horas, Piero Sbragia, Juca Badaró e este colunista conversam, no canal 3 em Cena, com Amanda Kamanchek e Fernanda Frazão, diretoras do documentário Chega de Fiu-Fiu (2018), disponível no Globoplay.

Na semana seguinte, em 29 de dezembro, às 11 horas, o canal 3 em Cena exibirá a conversa com Cristina Amaral e Geraldo Sarno, na qual tentaremos fazer um balanço do cinema brasileiro em 2020.

As duas conversas, gravadas previamente, estarão disponíveis nos dias e na hora indicados. Basta acessar  https://youtube.com/3emCena .

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A 9ª edição do Cinecipó, Festival de cinema insurgente, iniciado em 30 de novembro, prossegue até 28 de dezembro com mostras semanais online. O Festival tem “o objetivo de fazer o público refletir e consumir as produções audiovisuais nacionais realizadas por indígenas, negros, LGBTQIA+ e brancos dissidentes aliados nas lutas”, segundo o release. Mais de sessenta produções são exibidas gratuitamente no site www.cinecipo.com.br . No encerramento, dia 28, será exibido O que Há em Ti (2020), de Carlos Adriano. Uma oportunidade única de ver ou rever.

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Estarei de férias nas próximas semanas. Cuidem-se. A coluna voltará a ser publicada em 20 de janeiro de 2021. Fiquem bem até lá e sempre.

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